São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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+ brasil 504 d.C.

Livro reúne parte da crítica contemporânea às obras de Machado de Assis, desde as peças teatrais até "Memorial de Aires"

À sombra da consagração

Luiz Costa Lima

Mas o elogio de Veríssimo tinha uma ressalva: o humor de Machado é "um pouco obscuro"

O reconhecimento crescente de Machado de Assis torna mais difícil o êxito do que se escreva sobre ele. Com "Machado de Assis - Roteiro da Consagração" [ed. Uerj, 301 págs., R$ 30], Ubiratan Machado descobre uma variante inexplorada: reunir parte da crítica contemporânea a suas obras, desde as primeiras peças de teatro até o "Memorial de Aires". O autor assim presta um duplo serviço: aos estudos machadianos, por certo, mas também à história da crítica entre nós. Segundo a escolha, o resultado será diverso: se a seqüência de notas e comentários mostra, como bem diz o autor, o abalo que causa a publicação, em 1881, das "Memórias Póstumas de Brás Cubas", por outro lado, o "roteiro da consagração" revela que o susto e a indignação logo se acomodam. Resultado: com exceção dos artigos de Capistrano de Abreu sobre as "Memórias" -"Gazeta de Notícias", Rio (30 de janeiro e 1º de fevereiro de 1881)- e de José Veríssimo sobre o "Quincas Borba" e "Dom Casmurro", conhecidos por suas transcrições, respectivamente, nos "Estudos Brasileiros" (2ª série, 1894 -mas quem tem acesso a eles?) e nos "Estudos de Literatura Brasileira" (3ª série, 1903) e algumas anotações esparsas, a consagração de Machado, ao mesmo tempo, se acompanhava da mediocridade consolidada da crítica. Indagando-nos sobre a singularidade de Capistrano e Veríssimo, indiretamente passamos a ter condições de entender a monótona toada geral. Já pela abertura de seu artigo, Capistrano indicava o impacto que recebera: "As "Memórias Póstumas de Brás Cubas" serão um romance? Em todo o caso são mais alguma coisa. O romance aqui é simples acidente. O que é fundamental e orgânico é a descrição dos costumes, a filosofia social que está implícita". A pergunta supunha que ali não encontrava o romance como o concebia. A resposta, que o crítico não atinava com melhor solução: ultrapassar o caráter de divertimento fluente significaria que o romance fosse "descrição de costumes" e contivesse uma "filosofia social".

"Livro concêntrico"
No primeiro caso, seria visto como prenúncio da pesquisa sociológica -como décadas depois sucederia com o "romance nordestino"; no segundo, daria lugar ao estudo dos que teriam influenciado o pessimismo machadiano -daí as referências a Schopenhauer que logo surgem. Mas o próprio Capistrano adiante indicava como ele próprio era capaz de ir além: "As "Memórias" são um livro concêntrico, i.e., há dentro dele muitos livros, de tendências nem sempre convergentes (...)". Lamentavelmente, porém, não aprofundava seu achado: "Este trabalho (...) não o tentaremos aqui, porque muita coisa existe que não entendemos". Capistrano intuía que, independentemente de costumes e filosofia, a originalidade das "Memórias" tinha a ver com a disposição interna da obra. Seus círculos concêntricos, de direções "nem sempre convergentes", poderiam inclusive mostrar que costumes e filosofias teriam sido integrados e como. As referências àqueles e estas não seriam arbitrárias porque de antemão submetidas a um princípio de organização formal. Mas, se o próprio Capistrano não se sentia pressionado a ir além do que não entendera, quem o sentiria? Era um tópos recorrente entre os contemporâneos de Machado: seus livros não atendem ao nível dos receptores. Já em 1862, a propósito de uma de suas primeiras peças, dizia Quintino Bocaiúva que ela "tem o defeito de não condescender com o gosto do público, ainda não habituado a essas filigranas do espírito (...)". Afirmação que Gama Rosa, tratando, em 1882, dos "Papéis Avulsos", converte em mais genérica: "Nenhum meio social é, mais do que o nosso, desfavorável às produções mentais. A inconsciência pública suprime todas as aspirações". A equação assim se punha: sobretudo a partir das "Memórias Póstumas", a crítica percebia estar diante de um autor em descompasso com seu meio. Como isso, nos perguntemos, repercutiria na produção do próprio crítico? Se a obra de Machado demonstrava que era possível escapar da camisa-de-força da mediocridade, por que o mesmo não poderia suceder com o crítico? Em um brevíssimo relance, Capistrano mostrava que isso era possível. E os artigos de Veríssimo o confirmavam. Destaquemos do artigo sobre "Quincas Borba" os passos indispensáveis. O primeiro incide sobre tópos já acentuado: "No Brasil, (...) o meio (...) forçosamente restringe a produção literária à escassez da procura (...)". A seguir, Veríssimo formula sua restrição ao tópos de maior fortuna: "A obra literária do sr. Machado de Assis não pode ser julgada segundo o critério que eu peço licença para chamar nacionalístico". Veríssimo tinha em mira seu grande adversário, Sílvio Romero, porém mais genericamente os admiradores do chamado "romance brasileiro". Os dois passos anteriores encaminham para o decisivo: acentuava em Machado "o humorismo ligeiramente melancólico e um pouco obscuro (e é o seu defeito) de um espírito que leu e conversou assiduamente os humoristas ingleses". Era a primeira vez que se falava no humor machadiano. Mas o elogio de Veríssimo tinha uma ressalva: o humor de Machado é "um pouco obscuro". Deparamo-nos com limite semelhante ao anotado a propósito de Capistrano. No caso de Veríssimo, o limite é mais sério: constata a obscuridade e ponto. Ou seja, parte do axioma de que a clareza é indissociável da escrita de qualidade. Se Machado já produzia além do que seu público podia absorver, que então dizer de sua obscuridade? Para que o crítico pusesse em discussão o mito da "clarté", seria preciso que se entregasse à prática da reflexividade. Ela não o distanciaria, perigosamente, de seu público?

Critério de objetividade
Em suma, a falta de refinamento do público -nas "terras brasileiras (...) só por desfastio se escreve e (...) há menos leitores que livros", escrevia Valentim Magalhães, em 1895- pressionava para que a crítica, ainda quando favorável a Machado, não ousasse seguir seu exemplo. Por isso a intuição de Magalhães de Azeredo, a propósito do "Quincas Borba", se restringia a uma curta frase: "É como um D. Quixote de outro gênero".
Machado era uma exceção que complicava o exercício da crítica. O problema básico do crítico -e não só do brasileiro- era e é: como julgar o objeto literário se ele não tem um perfil definido nem uma maneira certa de se relacionar com a realidade? A questão se complicava em uma nação há pouco independente e insegura de si mesma: "Lá por fora nenhuma atenção se presta ao que em letras, artes ou ciência produzimos", escrevia José Leão, em 1878. Daí talvez o êxito de Sílvio Romero, que, em artigo a ele atribuído, de 1875, explicava a originalidade do poeta: "A natureza, o clima, a religião, a história, os costumes formam o principal elemento artístico de uma literatura; obedecendo a essas forças, o homem na ficção poética move-se e sente, pensa e crê". O determinismo estabelecia o critério de objetividade para quem o pensar, ao contrário, representa(va) o risco de perder seus poucos leitores.


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).


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