UOL


São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ brasil 504 d.C.

A questão da cultura

Luiz Costa Lima


Empresas têm convertido parte de seus lucros em serviços culturais; tais prestações são tão leves e diluidoras que parecem ter a fumaça por modelo


O termo "cultura" tem duas acepções: (a) conjunto das grandes obras do espírito humano (concepção humanista); (b) conjunto das transformações feitas pelo homem, visando a um resultado pragmático ou não (concepção antropológica). Se a primeira é demasiado restritiva, a segunda é apenas descritiva. Mas não é este o lugar para levar adiante sua crítica iniciada em "O Pai e o Trickster", em "Terra Ignota" (1997). Deixo de lado a indagação especializada para me perguntar que entraves afligem, no momento brasileiro atual, a questão da cultura. De imediato, uma constatação paralela: no plano econômico, os cem primeiros dias do governo presente parecem bastante positivos (digo parecem porque entendo tanto de economia quanto de física atômica). Mas o que dizer do plano cultural? Ou o tema não interessa aos "media" ou não há muito o que dizer. Nos últimos anos, tentara-se estimular a lastimável frente cultural pelos incentivos da Lei Rouanet, ao mesmo tempo em que a miséria cultural era agravada pela escandalosa pauperização das universidades públicas. Sobre esta não há nada de novo. A preocupação, obviamente justa, com o combate ao analfabetismo não supõe uma política para as universidades federais ou estaduais. Se se acrescenta a multiplicação da violência urbana, de onde virá algum sinal de que ainda se considera a cultura uma manifestação de vida? Além do mais, a carência do orçamento federal e os empréstimos a serem pagos não são encorajadores.

Brindes para os bacanas
Quanto à Lei Rouanet, sabe-se que, desde o início do governo atual, sua vigência foi provisoriamente suspensa para reexame. Como não faço parte do jornalismo cultural, procurei ouvir a respeito pessoas capacitadas. Os consultados concordam em que a operacionalização da lei precisava de fato ser repensada. Teria ela servido aos espertos e para a edição de brindes para os bacanas. Levantam-se, contudo, duas objeções: a suspensão da Lei -enquanto escrevo, já se passaram mais de quatro meses- tem impedido a publicação de livros e revistas, exposições, a produção de filmes e espetáculos teatrais não atrativos para o retorno do capital investido. Mais séria é a segunda objeção, o requisito "função social", que teria sido o decisivo, sem que houvesse sido discutido o que se há de entender pela expressão. Daí o temor de que ela se prestasse a um populismo retrógrado -aprova-se um projeto, digamos, de artesania popular, enquanto se nega a reedição ou tradução de um autor de circulação "culta". A exigência de "função social" seria justa, mas por que cercá-la de mistério? Acrescente-se que o silêncio a respeito se agrava pela tendência que se nota nas empresas que têm convertido parte de seus lucros em serviços culturais: sob a forma de revistas, espetáculos, mesas-redondas, tais prestações são tão leves e diluidoras que parecem ter a fumaça por modelo.

Cultura e circo
É evidente que a tendência a confundir cultura com espetáculo circense não pode ser corrigida pelo governo. Isso a torna menos grave? Dou apenas dois exemplos contrários. Durante anos, a Fundação Volkswagen, na Alemanha, se encarregou da realização de simpósios do grupo "Poética e hermenêutica". Deles, resultaram 17 tomos, que hoje formam uma coleção indispensável para se pensar a sério arte, literatura e suas inter-relações. Nunca nem sequer sonhamos com algo de semelhante. Exemplo mais contrastante vem dos Estados Unidos: aí, é costume que ex-alunos enriquecidos dotem a universidade em que se formaram de um capital constante, sob a condição de uma cátedra determinada trazer o nome de quem a mantém. Há algumas décadas eu mesmo ensino em uma universidade particular. Apesar do tempo, nunca soube que algum ex-aluno de posses tenha doado um centavo ao centro em que se formou. Por nossas carências culturais, são responsáveis tanto o governo quanto grandes empresas. Por caminhos diversos, os descasos são de ambos. É o que mostram alguns entre muitos casos. Durante alguns anos, creio que na década de 1950, havia um órgão, o Instituto Nacional do Livro, que se responsabilizava pela edição de autores nacionais e de traduções que, doutro modo, ficariam reservados às bibliotecas ou nunca circulariam em português. Não sei se o órgão foi extinto ou aos poucos desativado. O fato é que os mais jovens desconhecem o serviço que prestava. Um segundo caso concerne ao funcionamento das bibliotecas. Qualquer pesquisador brasileiro sabe do estado deplorável em que sempre estiveram, mesmo em se tratando de autor ou tema nacional. Pelo que a seguir recordo, não só lhes faltam verbas. Lembro que, na legislação passada, sendo amigo de um deputado, sugeri a ele um projeto de lei que consistiria em tornar obrigatório às universidades públicas ou privadas manterem atualizadas as bibliografias editadas no país e referentes aos cursos que oferecessem. Meses depois, o deputado me disse que desistira de apresentar o projeto: os representantes das entidades privadas não permitiriam sua aprovação. Daí a solução descoberta por alguém: a concessão das chamadas bolsas-sanduíche, que permitem a um aluno de pós-graduação, que não encontre a bibliografia de que precisa, passar um certo número de meses em um centro estrangeiro, coorientado por um especialista estrangeiro. Como complemento, a solução é brilhante. Mas por que sua contraparte é a permanente miséria das bibliotecas nacionais? Por aí já se compreende por que é tão raro, entre nós, ao menos na área das ciências humanas, o aparecimento de um especialista de peso. É isso menos digno de atenção que a fome e o analfabetismo?


Compreende-se por que é tão raro, entre nós, ao menos na área das ciências humanas, o aparecimento de um especialista de peso


O jogo das editoras
A iniciativa privada segue nos mesmos passos. Apresento apenas um caso. Desde que a onda inflacionária foi contida no país, os contratos de edição de livros se tornaram semestrais. Como permanece ínfima a margem de público para obras não meramente de consumo ou repetição, o autor já espera receber bem pouco. (Conta-se que Clarice Lispector, ao receber seus direitos autorais, entregava a soma ao primeiro mendigo que encontrasse). Ora, apesar de o pagamento ser pequeno, instalou-se, entre muitas de nossas editoras, o costume de acrescentar ao prazo de vencimento mais dois meses, para "cálculo" das vendas. Outras, mais perfeccionistas, acrescentam outro mês, para que o cheque seja feito e assinado. Que estímulo então pode haver para a elaboração de obras inovadoras, não respaldadas por um nome ou instituição estrangeira?
Estas considerações pretendem tão-só acentuar que, para o governo atual ser de fato outro, precisa reconhecer que, ao lado do combate à fome, ao analfabetismo e à violência do crime organizado, a questão da cultura faz parte de nossas carências elementares. Considerar a cultura escrita coisa das "elites" é um absurdo sem comentários. O cuidado com a cultura talvez não dê muitos votos. Mas significará um país menos desarvorado.

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).


Texto Anterior: ET + cetera
Próximo Texto: Capa 18.05
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.