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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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RUY FAUSTO

[FRANÇA]

1. Eu era "instrutor" (espécie de pré-assistente não-doutor) no departamento de filosofia da Universidade de São Paulo. Mas nós todos tínhamos, no departamento, um peso maior do que sugeriam os cargos.

2. O Ato Institucional nš 5 (13/12/1968) e o início de uma repressão muito violenta contra a esquerda. Eu já estava fora de casa, por causa das minhas intervenções na universidade, quando a pessoa com quem então eu estava casado foi presa. Por engano ou milagre, ela foi solta alguns dias depois. Quando voltaram a procurá-la, decidimos deixar o país.

3. Na França, há bastante tempo se fala da violência no Brasil. E se acompanhou com muito interesse a mudança de governo.

4. Os salários são semelhantes, mas aqui a seguridade social funciona, o que muda tudo. Sobre as condições de trabalho, ver abaixo.

5. Na França, a filosofia existe há pelo menos 500 anos. No Brasil, acho que ela não tem 50. Mas os nossos melhores especialistas não são piores do que os franceses. A França ganha pela quantidade. Entretanto é claro que isso se reflete, de algum modo, na qualidade.

6. Sim, mas isso não teve nada a ver com a minha condição de brasileiro. É preciso não exagerar esse aspecto. Continua-se pensando a França (como também outros países) muito "em bloco", o que em geral leva a sobrevalorizar o que se faz lá. No que se refere à universidade, há, na França, coisas boas, muito boas, más, muito más, conforme a universidade ou o departamento que se considere. Conto a minha história. Trabalhei durante 27 anos na Universidade de Paris 8 (Vincennes, depois Vincennes-Saint-Denis). O departamento de filosofia era o famoso departamento "gauchista" da Universidade "gauchista" de Vincennes, em que ensinavam Deleuze, Lyotard e Châtelet. Era um delírio anarquizante, em que cada um fazia o que queria, o que nunca apreciei muito; mas a verdade é que não era impossível realizar um trabalho sério dentro dele. A coisa se complicou depois, conforme os "pais fundadores" foram morrendo ou se aposentando. Convidaram para a direção do departamento um professor que ensinara no Canadá. Apoiando-se no mito do antigo departamento de Vincennes, em pouco tempo ele cristalizou um lobby de amigos e clientes a quem servia em troca de uma fidelidade total. O interesse do departamento era a última coisa em que pensava. E aqui entra a pergunta a propósito da discriminação e da marginalização, se estas forem tomadas, como convém, no seu sentido mais geral. Juntamente com alguns colegas, fui manifestando as coisas reversas, o que em pouco tempo nos marginalizou. Basta dizer que, embora tivéssemos obtido a muito difícil "qualificação" nacional -título prévio à nomeação- para o cargo de professor nível A (o equivalente ao nosso "titular"), jamais fomos escolhidos em concurso para esse cargo. Claro que essa marginalização não teve nada a ver com a nacionalidade. Mais ainda: a crise chegou ao seu clímax no momento em que o diretor quis impor como "maître de conférences" (mais ou menos o "livre-docente"), e em condições de semilegalidade, uma cupincha sua -de nacionalidade estrangeira- cujos méritos científicos eram menos do que médios. O nosso candidato era francês. Pois os defensores da candidata redigiam manifestos em que se queixavam da discriminação contra os estrangeiros. Falavam até do caso Dreyfuss. Como se vê, as coisas são mais complicadas do que se pensa. Salvo erro, o corte não era, ali, entre franceses e estrangeiros, mas entre "picaretagem" e trabalho sério. Quanto à situação dos estrangeiros na universidade francesa, ela melhorou muito. Hoje um estrangeiro pode ocupar todos os cargos. Claro que, de um modo geral, sua carreira é, efetivamente, mais difícil. Mas não como há 20 anos.

7. Passo nove meses por ano na França e três no Brasil. A proporção poderá se alterar, mas não penso em voltar. Minha filha, com dupla nacionalidade -como eu-, entretanto bem mais francesa do que brasileira, faz seus estudos na França. Além disso, estou acostumado com a vida neste país. Aproveito muito as grandes bibliotecas, que não existem no Brasil. O corte com a nossa terra não é mais tão grande: quase todos os dias, via internet, leio, ou pelo menos "espio", dois jornais brasileiros.


Estou acostumado com a vida na França; aproveito muito as grandes bibliotecas, que não existem no Brasil


Filósofo, 68
Universidade de Paris 8
Deixou o Brasil em: 1969
Principais obras: "Marx - Lógica e Política" (ed. 34) e "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana" (ed. Paz e Terra)



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