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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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GLÁUCIO ARY DILLON SOARES

[EUA]

1. Saí três vezes. Na primeira era estudante; na segunda, estava no Chile e recebi uma oferta para trabalhar na FGV (Fundação Getúlio Vargas), mas cheguei no 13 de dezembro de 1968, dia do AI-5 (soube no aeroporto) e o contrato foi cancelado; na terceira, era professor da UnB (Universidade de Brasília) e entrei na lista negra do regime militar durante a greve dos estudantes de 1978. E isso a despeito de não ser radical nem militar em partido.

2. Em 1958 e em 1962 fui estudar. Em 1978 saí em consequência de uma mistura: a ditadura e a guerra com o baixo clero dentro do meu departamento. Eram ameaças telefônicas, cartas anônimas, pneus furados do meu carro etc. Jogo baixo e duro. Até hoje não sei quem fez.

3. Os EUA abrigam, paradoxalmente, o maior número de pesquisadores que estudam o Brasil -fora do Brasil- e uma população que ignora muito a respeito do resto do mundo, particularmente dos países subdesenvolvidos e de língua não-inglesa, entre eles o Brasil. Não é um problema do Brasil, é um problema da educação e da mídia nos EUA.

4. Os estudantes norte-americanos lêem mais e são muito mais competitivos entre si; os brasileiros colaboram mais uns com os outros. Os contatos entre todos são mais pessoais no Brasil, há mais amor, mais ódio e menos indiferença. As pesquisas e a política departamental e da disciplina ocupam um espaço maior nas conversas de professores nos Estados Unidos, e a política nacional e internacional, um espaço muito menor, assim como as questões pessoais. Sem dúvida os professores têm mais facilidades para trabalhar lá e, efetivamente, trabalham mais. A grande diferença reside nas bibliotecas. Investimos, no Brasil, muito pouco nelas. Nas universidades americanas o controle de qualidade dos professores é muito mais exigente do que aqui. Quase todos dão duas matérias por semestre nas grandes universidades e mais nas menores e nos "colleges" [equivalentes às faculdades". Os professores jovens têm que mostrar muito serviço durante cinco anos antes de receberem estabilidade e promoções. Se não mostrarem, são demitidos. Nas universidades públicas brasileiras não há controle, tudo é burocrático: entrou, ficou, trabalhe muito, pouco ou nada. A elite simbólica é muito mais relevante no Brasil e tem muito mais acesso à mídia e ao poder político, e as demandas extra-universitárias são muito maiores. No Brasil, muitos professores são parte dela. Lá somente os que se tornam muito conhecidos participam dela. Os salários são mais altos lá, mas as diferenças enganam. Recebemos apenas nove meses ao ano, não temos um só dia de férias pago, a aposentadoria não é integral, é proporcional ao tempo de serviço (1,8% do salário por ano trabalhado), tem teto de 50% e só pode ser recebida após os 67 anos (algumas universidades estão propondo 70 anos). As vergonhosas aposentadorias precoces daqui, na faixa de 50 e até 40 anos, são impensáveis lá. O seguro médico termina com a aposentadoria. A participação de consultorias etc. na renda total aqui é muito alta. A simples observação mostra que o nível de vida dos pesquisadores universitários no Brasil e nos Estados Unidos não é muito diferente. Mas o nível de vida da população é. Nos tempos do Médici [presidente entre 1969 e 1974", os professores chegaram a estar nos 2% superiores de renda. O percentual é muito mais baixo nos Estados Unidos.

5. Lá são poucos os professores que não pesquisam; aqui são poucos os que sabem pesquisar. Nossos melhores pesquisadores são muito bons, porque têm acesso a uma ampla literatura em outros idiomas, além de serem tecnicamente competentes. Porém o baixo clero aqui é muito numeroso, pesa muito e faz pouco. Na minha disciplina, 30 e 40 pessoas são responsáveis por quase todas as pesquisas. E, infelizmente, muitas das nossas melhores cabeças se limitam ao trabalho conceitual, frequentemente ao redor das idéias de uma só pessoa ou de uma escola, com pouca atenção aos problemas brasileiros. Não formamos pessoas capacitadas a pesquisar e contribuir para a solução de problemas do nosso país. Examinei uns programas de pós-graduação e havia mais leituras de Habermas [filósofo alemão] do que de todas as referências a autores brasileiros, latino-americanos e do Terceiro Mundo somados! É irônico porque, queiramos ou não, somos parte do Terceiro Mundo. Os programas de pós-graduação não se destinam a formar pesquisadores -e não os formam.

6. Certamente. Há vários estudos que demonstram que os professores de origem latina, com o mesmo número de publicações, nas mesmas revistas, ganham menos do que os norte-americanos. Eu ganhei um processo judicial interno da minha universidade por isso. Há, nos Estados Unidos, vários centros de estudos regionais (asiáticos, africanos e latino-americanos) que raramente ou nunca tiveram um diretor daquela nacionalidade ou descendente dela. Houve, na minha universidade, um concurso no qual um chinês com pedigree (na linguagem acadêmica americana, alguém que estudou numa das principais universidades americanas) e muitas publicações foi preterido na disputa para a cátedra de história da china por um americano que tinha menos publicações e pesquisas e que dominava mal o chinês. Assisti a outro concurso com cartas marcadas no qual uma brasileira com muitas publicações foi preterida por um americano com apenas duas e que não conhecia muito a respeito do Brasil.

7. Já voltei [em 2002]. Sou mais feliz aqui e tenho a ilusão de ser mais útil, embora a alienação da academia brasileira em relação aos problemas do país me provoque úlceras.


Nos EUA são poucos os professores que não pesquisam; aqui são poucos os que sabem pesquisar


Cientista político, 68 Universidade da Flórida Deixou o Brasil em: 1978 Principais obras: "A Democracia Interrompida" (ed. FGV); em parceria com Maria Celina Soares d'Araújo: "Os Anos de Chumbo", "A Volta aos Quartéis" e "Visões do Golpe" (ed. Relume-Dumará)


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