São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

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O herói bonachão

Em novo livro, o historiador Francisco Doratioto resgata a biografia do general Osorio e diz que ele foi a maior figura militar do Brasil no século 19


Ele foi uma figura admirável, porque coerente, e um homem completamente honesto; não é pouca coisa


Onde estão hoje as pessoas da história do Brasil que podem servir de referencial? Osorio tem essa dimensão

FABIANO MAISONNAVE
DE CARACAS

Um dos principais especialistas na Guerra do Paraguai (1864-70), o historiador Francisco Doratioto publica agora a biografia de um de seus principais personagens, o militar e político gaúcho Manoel Luis Osorio ("General Osorio - A Espada Liberal do Império", Companhia das Letras, 280 págs., R$ 35,50).
A biografia é claramente simpática a seu personagem (1808-79). Descrevendo-o como bem-humorado, fanfarrão, poeta e jardineiro diletante, Doratioto reconstrói a trajetória de uma criança pobre e sem estudos que entra no Exército em 1821, com apenas 15 anos, iniciando uma carreira político-militar brilhante que o projeta nacionalmente.
Como em "Guerra Maldita" (Cia. das Letras), seu livro sobre a Guerra do Paraguai, o novo estudo de Doratioto costura habilmente as tramas políticas, militares e diplomáticas daquela época, desta vez enfocando os passos do general gaúcho até a sua morte no Rio de Janeiro, aonde chega como senador eleito e se torna o ministro da Guerra.
O livro conta em detalhes a atuação de Osorio nos campos de batalha, quase sempre tomando decisões ousadas e arriscando-se na linha de frente. No plano pessoal, descreve um Osorio preocupado com os estudos dos filhos e com as finanças familiares, dependentes de sua atividade como estancieiro no Uruguai.
Mesmo assim, as evidências coletadas por Doratioto mostram que ele não se aproveitava dos cargos que ocupava em benefício próprio.
Em 1847, numa época em que não havia cartões corporativos, Osorio foi enviado para uma missão na Argentina com 700 patacões. Na volta, devolveu 503 contos de réis aos cofres públicos. Leia, a seguir, entrevista de Doratioto concedida à Folha por telefone.  

FOLHA - Como o maior herói militar brasileiro do século 19 perdeu o espaço na memória e no panteão do Exército ao longo do século 20?
FRANCISCO DORATIOTO
- Os dois maiores militares brasileiros do século 19 foram o general Osorio e o duque de Caxias. Quer dizer, Osorio foi de 1866 até a década de 1920 o herói mais popular.
As qualidades dos dois eram semelhantes, ambos demonstraram momentos de coragem, só que Osorio era uma figura mais popular entre os soldados porque era mais acessível. Era um general com penetração na tropa pelo estilo bonachão, brincalhão.
Agora, creio haver uma dimensão política no fato de Osorio ter sido mais popular no final do século 19, assim como há uma dimensão política no fato de Caxias tê-lo substituído. Osorio era do Partido Liberal.
E, a partir de 1870, o Estado monárquico entrou em crise, houve uma demanda por descentralização política. A oposição aproveitou para realçar a figura de Osorio em detrimento de Caxias, porque Caxias era do Partido Conservador, que havia combatido pela centralização política do Império.
E a perda dele nesse panteão também se deve à questão política. A partir da década de 1920, com o tenentismo, no primeiro momento, o Exército, para se recompor, buscou ressaltar a figura de militares mais centralizadores, conservadores, disciplinadores.
E o Estado Novo, com a ditadura de Getúlio Vargas, foi pegar essa figura do duque de Caxias e ressaltá-la ainda mais. E o mesmo se deu após 1964, com o regime militar.

FOLHA - Em "Maldita Guerra", havia a proposta de mostrar o conflito no Paraguai em seu contexto regional, minimizando a influência inglesa. Na biografia de Osorio, o objetivo é recuperar sua importância para a história militar brasileira?
DORATIOTO
- É recuperá-lo para o Brasil do século 19, e não só para a história militar. Osorio foi uma figura sedutora. José Murilo de Carvalho, falando de seu livro sobre dom Pedro 2º ["Dom Pedro 2º - Ser ou Não Ser", Companhia das Letras], se mostrou seduzido por ele e disse que faltam figuras paradigmáticas.
Na crise de valores por que passa o Brasil hoje, entre mensalões e dossiês, onde estão as pessoas da história do país que podem servir de referencial? Osorio tem essa dimensão.
Nós temos praças, ruas General Osorio, dando a impressão de que ele foi apenas um militar. Mas ele foi um político e, no plano pessoal -o que me surpreendeu bastante durante a pesquisa-, um pai muito preocupado com a educação dos seus filhos. Sacrificou-se financeiramente para que fizessem curso superior.
E, além disso, lamentava a sua própria condição, pois não pôde estudar. Ou seja, o herói nacional da década de 1870 manifestava publicamente que lamentava não ter podido estudar porque no Rio Grande do Sul não havia escolas. Acho isso admirável.
Foi também um político coerente. Manteve-se na mesma posição, a de liberal moderado da década de 1830, na Revolução Farroupilha (1835-1845), até sua morte. Foi uma figura admirável porque foi coerente.
Sendo um militar que teve acesso a fornecimentos -durante a Guerra do Paraguai houve muita notícia de enriquecimento-, toda a documentação, inclusive de seus contemporâneos, mostra um homem completamente honesto. Não é pouca coisa.

FOLHA - O presidente eleito do Paraguai, Fernando Lugo, venceu com o discurso segundo o qual seu país é vítima do Brasil, sobretudo em Itaipu. O sr. acha que a história da guerra será reacesa nessa nova Presidência?
DORATIOTO
- Há alguns meses, já existe um refortalecimento desse setor revisionista paraguaio, de culto a Solano López [1826-70, líder do país na guerra]. É bom ressaltar que o culto a López tem origem no século 19, algo que explico em "Maldita Guerra", por interesses econômicos, mas se torna ideologia oficial do Estado com a ditadura do Alfredo Stroessner. É a extrema direita paraguaia que faz o culto do Solano López. O ditador do passado justificando o ditador do presente.
Em alguns países da América Latina, como no Brasil, foi feita uma leitura pela esquerda autoritária, elogiosa também de Solano López. E é exatamente isto: apologia do autoritarismo.
Com a democratização no Paraguai, isso entrou no ostracismo, mas agora está sendo retomado. Mas, por outro lado, há grandes intelectuais paraguaios que criticam a figura do ditador e as ditaduras. Esse passado autoritário cria um peso que dificulta, nos planos cultural e de pensamento político, a construção da democracia no Paraguai.

FOLHA - O sr. já viu alguma declaração de Lugo sobre Solano López?
DORATIOTO
- Nunca vi, não sei qual é sua opinião. Agora, temos a da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, que deu o nome de Francisco Solano López a um batalhão de artilharia do país. É impressionante.
Os Kirchner são herdeiros de um movimento de esquerda, os Montoneros, dessa esquerda que sempre fez apologia de López. Mas pode ter feito por interesses geopolíticos, para ganhar a simpatia paraguaia, ou por desconhecimento de causa.
Recentemente, o senador Cristovam Buarque [PDT-DF], que foi ministro da Educação, falou que o Brasil cometeu um genocídio na guerra [do Paraguai]. É um desconhecimento absoluto, fruto de leituras de 30 anos atrás e nunca mais atualizadas.

FOLHA - O presidente Hugo Chávez felicitou a vitória de Lugo evocando Solano López.
DORATIOTO
- Não vi, mas não me surpreende. O viés populista autoritário de Chávez é perfeitamente coerente com esse elogio.

FOLHA - Como o sr. imagina o governo Lugo e as condições para a governabilidade?
DORATIOTO
- Os primeiros nomes que estão sendo divulgados e a posição de Lugo me lembram um pouco a posse do presidente Lula. Havia todo um discurso eleitoral de mudança mais forte, mas, quando chegou o governo, a questão essencial, a política econômica, foi a mesma do governo anterior. Lugo está nomeando para a Fazenda Dionisio Borda, ex-ministro do governo atual, de Nicanor Duarte Frutos.
É um economista competente, que conseguiu ajustar a macroeconomia do Paraguai no governo anterior. É um começo moderado, e suas declarações têm sido bastante razoáveis. Quanto a Itaipu, é uma questão de negociação, você pede o máximo para conseguir alguma coisa. E é um governo que irá precisar de dinheiro.
Sobre a questão da governabilidade, a maioria da frente que apoiou Lugo é composta pelo Partido Liberal, o mais importante da aliança tanto no Senado quanto na Câmara. E há uma declaração de um líder liberal dizendo que o presidente é Lugo, mas o governo é liberal. Mas é claro que a esquerda, de onde Lugo vem, saiu muito mal nas eleições -elegeu uma deputada apenas.
Essa esquerda tem uma expectativa de ter posições dentro do governo. Mesmo porque existe a tradição paraguaia e latino-americana de que "agora o Estado é nosso". Essa esquerda vai cobrar, fazer barulho, e depende de Lugo. Creio que existam boas possibilidades de ele ter uma postura moderada, conciliadora. Governa-se um país compondo forças políticas e fazendo o que é possível.

FOLHA - Quem foi Solano López?
DORATIOTO
- Solano López foi um ditador. Evidentemente, uma guerra não é decidida apenas por um homem. Como diz [o filósofo, 1883-1955] Ortega y Gasset, o homem é ele mesmo e suas circunstâncias.
Se não houvesse uma situação regional delicada, cheia de contradições, um homem sozinho não desencadearia uma guerra desse tamanho.
Ao mesmo tempo, a história acontece com um homem: alguém toma uma decisão numa circunstância tensa de fazer ou não a guerra. E quem tomou essa decisão foi López.
Ele invadiu o Brasil, invadiu a Argentina. López foi um ditador que sacrificou o seu povo: o soldado paraguaio foi muito valente na guerra, lutou valorosamente, realmente os paraguaios acreditavam que sua independência estivesse ameaçada, por isso resistiram até o final com López.
Eles se convenceram de seu discurso, porque também não havia outro, nunca existiram jornais no Paraguai, não chegavam informações do estrangeiro. Então, acreditavam que realmente seriam massacrados e o Paraguai deixaria de existir como país. Foram vítimas da guerra.
Agora, Solano López foi um tirano sanguinário, e não um antiimperialista.


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