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O herói bonachão
Em novo livro, o historiador Francisco Doratioto resgata a biografia do general Osorio e diz que ele foi a maior figura militar do Brasil no século 19
Ele foi uma figura admirável, porque coerente, e um homem completamente honesto; não é pouca coisa
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Onde estão hoje as pessoas da história
do Brasil que podem servir de referencial? Osorio tem essa dimensão
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FABIANO MAISONNAVE
DE CARACAS
Um dos principais
especialistas na
Guerra do Paraguai (1864-70), o
historiador Francisco Doratioto publica agora a
biografia de um de seus principais personagens, o militar e
político gaúcho Manoel Luis
Osorio ("General Osorio - A Espada Liberal do Império",
Companhia das Letras, 280
págs., R$ 35,50).
A biografia é claramente
simpática a seu personagem
(1808-79). Descrevendo-o como bem-humorado, fanfarrão,
poeta e jardineiro diletante,
Doratioto reconstrói a trajetória de uma criança pobre e sem
estudos que entra no Exército
em 1821, com apenas 15 anos,
iniciando uma carreira político-militar brilhante que o projeta nacionalmente.
Como em "Guerra Maldita"
(Cia. das Letras), seu livro sobre a Guerra do Paraguai, o novo estudo de Doratioto costura
habilmente as tramas políticas,
militares e diplomáticas daquela época, desta vez enfocando os passos do general gaúcho
até a sua morte no Rio de Janeiro, aonde chega como senador eleito e se torna o ministro
da Guerra.
O livro conta em detalhes a
atuação de Osorio nos campos
de batalha, quase sempre tomando decisões ousadas e arriscando-se na linha de frente.
No plano pessoal, descreve
um Osorio preocupado com os
estudos dos filhos e com as finanças familiares, dependentes de sua atividade como estancieiro no Uruguai.
Mesmo assim, as evidências
coletadas por Doratioto mostram que ele não se aproveitava
dos cargos que ocupava em benefício próprio.
Em 1847, numa época em
que não havia cartões corporativos, Osorio foi enviado para
uma missão na Argentina com
700 patacões. Na volta, devolveu 503 contos de réis aos cofres públicos.
Leia, a seguir, entrevista de
Doratioto concedida à Folha
por telefone.
FOLHA - Como o maior herói militar brasileiro do século 19 perdeu o
espaço na memória e no panteão do
Exército ao longo do século 20?
FRANCISCO DORATIOTO - Os dois
maiores militares brasileiros
do século 19 foram o general
Osorio e o duque de Caxias.
Quer dizer, Osorio foi de 1866
até a década de 1920 o herói
mais popular.
As qualidades dos dois eram
semelhantes, ambos demonstraram momentos de coragem,
só que Osorio era uma figura
mais popular entre os soldados
porque era mais acessível. Era
um general com penetração na
tropa pelo estilo bonachão,
brincalhão.
Agora, creio haver uma dimensão política no fato de Osorio ter sido mais popular no final do século 19, assim como há
uma dimensão política no fato
de Caxias tê-lo substituído.
Osorio era do Partido Liberal.
E, a partir de 1870, o Estado
monárquico entrou em crise,
houve uma demanda por descentralização política. A oposição aproveitou para realçar a figura de Osorio em detrimento
de Caxias, porque Caxias era do
Partido Conservador, que havia
combatido pela centralização
política do Império.
E a perda dele nesse panteão
também se deve à questão política. A partir da década de 1920,
com o tenentismo, no primeiro
momento, o Exército, para se
recompor, buscou ressaltar a figura de militares mais centralizadores, conservadores, disciplinadores.
E o Estado Novo, com a ditadura de Getúlio Vargas, foi pegar essa figura do duque de Caxias e ressaltá-la ainda mais. E
o mesmo se deu após 1964, com
o regime militar.
FOLHA - Em "Maldita Guerra", havia a proposta de mostrar o conflito
no Paraguai em seu contexto regional, minimizando a influência inglesa. Na biografia de Osorio, o objetivo é recuperar sua importância para
a história militar brasileira?
DORATIOTO - É recuperá-lo para
o Brasil do século 19, e não só
para a história militar. Osorio
foi uma figura sedutora. José
Murilo de Carvalho, falando de
seu livro sobre dom Pedro 2º
["Dom Pedro 2º - Ser ou Não
Ser", Companhia das Letras],
se mostrou seduzido por ele e
disse que faltam figuras paradigmáticas.
Na crise de valores por que
passa o Brasil hoje, entre mensalões e dossiês, onde estão as
pessoas da história do país que
podem servir de referencial?
Osorio tem essa dimensão.
Nós temos praças, ruas General Osorio, dando a impressão de que ele foi apenas um
militar. Mas ele foi um político
e, no plano pessoal -o que me
surpreendeu bastante durante
a pesquisa-, um pai muito
preocupado com a educação
dos seus filhos. Sacrificou-se financeiramente para que fizessem curso superior.
E, além disso, lamentava a
sua própria condição, pois não
pôde estudar. Ou seja, o herói
nacional da década de 1870 manifestava publicamente que lamentava não ter podido estudar porque no Rio Grande do Sul não havia escolas. Acho isso
admirável.
Foi também um político coerente. Manteve-se na mesma
posição, a de liberal moderado
da década de 1830, na Revolução Farroupilha (1835-1845),
até sua morte. Foi uma figura
admirável porque foi coerente.
Sendo um militar que teve
acesso a fornecimentos -durante a Guerra do Paraguai
houve muita notícia de enriquecimento-, toda a documentação, inclusive de seus
contemporâneos, mostra um
homem completamente honesto. Não é pouca coisa.
FOLHA - O presidente eleito do Paraguai, Fernando Lugo, venceu com
o discurso segundo o qual seu país é
vítima do Brasil, sobretudo em Itaipu. O sr. acha que a história da guerra será reacesa nessa nova Presidência?
DORATIOTO - Há alguns meses,
já existe um refortalecimento
desse setor revisionista paraguaio, de culto a Solano López
[1826-70, líder do país na guerra]. É bom ressaltar que o culto
a López tem origem no século
19, algo que explico em "Maldita Guerra", por interesses econômicos, mas se torna ideologia oficial do Estado com a ditadura do Alfredo Stroessner. É a
extrema direita paraguaia que
faz o culto do Solano López. O
ditador do passado justificando
o ditador do presente.
Em alguns países da América
Latina, como no Brasil, foi feita
uma leitura pela esquerda autoritária, elogiosa também de
Solano López. E é exatamente
isto: apologia do autoritarismo.
Com a democratização no
Paraguai, isso entrou no ostracismo, mas agora está sendo retomado. Mas, por outro lado, há
grandes intelectuais paraguaios que criticam a figura do
ditador e as ditaduras.
Esse passado autoritário cria
um peso que dificulta, nos planos cultural e de pensamento
político, a construção da democracia no Paraguai.
FOLHA - O sr. já viu alguma declaração de Lugo sobre Solano López?
DORATIOTO - Nunca vi, não sei
qual é sua opinião. Agora, temos a da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, que deu
o nome de Francisco Solano
López a um batalhão de artilharia do país. É impressionante.
Os Kirchner são herdeiros de
um movimento de esquerda, os
Montoneros, dessa esquerda
que sempre fez apologia de López. Mas pode ter feito por interesses geopolíticos, para ganhar a simpatia paraguaia, ou
por desconhecimento de causa.
Recentemente, o senador
Cristovam Buarque [PDT-DF],
que foi ministro da Educação,
falou que o Brasil cometeu um
genocídio na guerra [do Paraguai]. É um desconhecimento
absoluto, fruto de leituras de 30
anos atrás e nunca mais atualizadas.
FOLHA - O presidente Hugo Chávez
felicitou a vitória de Lugo evocando
Solano López.
DORATIOTO - Não vi, mas não
me surpreende. O viés populista autoritário de Chávez é perfeitamente coerente com esse
elogio.
FOLHA - Como o sr. imagina o governo Lugo e as condições para a governabilidade?
DORATIOTO - Os primeiros nomes que estão sendo divulgados e a posição de Lugo me lembram um pouco a posse do presidente Lula. Havia todo um
discurso eleitoral de mudança
mais forte, mas, quando chegou
o governo, a questão essencial,
a política econômica, foi a mesma do governo anterior.
Lugo está nomeando para a
Fazenda Dionisio Borda, ex-ministro do governo atual, de
Nicanor Duarte Frutos.
É um economista competente, que conseguiu ajustar a macroeconomia do Paraguai no
governo anterior. É um começo
moderado, e suas declarações
têm sido bastante razoáveis.
Quanto a Itaipu, é uma questão de negociação, você pede o
máximo para conseguir alguma
coisa. E é um governo que irá
precisar de dinheiro.
Sobre a questão da governabilidade, a maioria da frente
que apoiou Lugo é composta
pelo Partido Liberal, o mais importante da aliança tanto no
Senado quanto na Câmara.
E há uma declaração de um
líder liberal dizendo que o presidente é Lugo, mas o governo é
liberal. Mas é claro que a esquerda, de onde Lugo vem, saiu
muito mal nas eleições -elegeu
uma deputada apenas.
Essa esquerda tem uma expectativa de ter posições dentro do governo. Mesmo porque
existe a tradição paraguaia e latino-americana de que "agora o
Estado é nosso".
Essa esquerda vai cobrar, fazer barulho, e depende de Lugo.
Creio que existam boas possibilidades de ele ter uma postura
moderada, conciliadora. Governa-se um país compondo
forças políticas e fazendo o que
é possível.
FOLHA - Quem foi Solano López?
DORATIOTO - Solano López foi
um ditador. Evidentemente,
uma guerra não é decidida apenas por um homem. Como diz
[o filósofo, 1883-1955] Ortega y
Gasset, o homem é ele mesmo e
suas circunstâncias.
Se não houvesse uma situação regional delicada, cheia de
contradições, um homem sozinho não desencadearia uma
guerra desse tamanho.
Ao mesmo tempo, a história
acontece com um homem: alguém toma uma decisão numa
circunstância tensa de fazer ou
não a guerra. E quem tomou essa decisão foi López.
Ele invadiu o Brasil, invadiu a
Argentina. López foi um ditador que sacrificou o seu povo: o
soldado paraguaio foi muito valente na guerra, lutou valorosamente, realmente os paraguaios acreditavam que sua independência estivesse ameaçada, por isso resistiram até o final com López.
Eles se convenceram de seu
discurso, porque também não
havia outro, nunca existiram
jornais no Paraguai, não chegavam informações do estrangeiro. Então, acreditavam que
realmente seriam massacrados
e o Paraguai deixaria de existir
como país. Foram vítimas da
guerra.
Agora, Solano López foi um
tirano sanguinário, e não um
antiimperialista.
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