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Jogando conversa fora
Dos cafés
e salões aos filmes de
John Wayne, declínio da conversação se acentua nas últimas décadas
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Saudosismo à parte, a
verdade é que já não
se conversa como antigamente. Não iria ao
exagero de dizer que a
conversa desapareceu de cena,
mas se tornou excepcional, relegada a um segundo plano, por
novos meios e novos costumes.
No mundo da casa, o ímã da
televisão suprimiu muitas conversas. Estamos todos presos à
tela, das modestas de 14 polegadas às TVs de plasma, estas
últimas a grande atração tanto
dos bem-nascidos quanto dos
malnascidos.
Separados às vezes por gênero, os olhares se fixam nos lances da bola ou nas peripécias
das novelas. Quando muito, comenta-se o que se está vendo
-um hábito que, aliás, invadiu
a sala escura dos cinemas, onde
o silêncio deveria reinar.
No mundo da rua, salvo exceções, os ambientes e os estilos
conspiram para que não se
converse. É o caso típico de
certas festas em que centenas
de pessoas permanecem de pé,
equilibrando precariamente
canapés e pratos mais substanciosos, em risco permanente de
queda. Formam-se rodinhas,
mas elas não se destinam a facilitar conversas, e sim a irritar
as gargantas.
Nesse clima, não há outro
jeito senão forçar a voz, abafada pelo alarido crescente que
parte dos convidados, acrescido do som de uma música que
ninguém ouve.
O tema da conversa nada
tem de trivial. Recentemente,
foi objeto de um livro, "Conversation - A History of a Declining Art" (Conversação - Uma
História de uma Arte em Declínio, Yale University Press, 368
págs., US$ 27,50, R$ 63), de
Stephen Miller, resenhado por
Russell Baker no "New York
Review of Books" (11/5/2006).
A dignidade da conversação
como arte não significa que ela
deva se enquadrar num molde
previsível ou num cânone intelectual. Pelo contrário, diz Miller, a conversação não tem um
curso determinado, não perguntamos para que ela serve.
Como no jogo, seu significado
não consiste em ganhar ou perder, mas numa aventura sem
contornos definidos.
Disputas
A afirmação me parece duvidosa. Quase sempre, a conversa
contém uma disputa, ora por
um argumento intelectual, ora
para ver quem provoca mais
gargalhadas ou mais espanto,
quando ocorre em grupo. A verdadeira conversa tem como
condição que os interlocutores
considerem a fala dos demais
tão importante, ou quase tão
importante, quanto a sua.
Nada mais distante da verdadeira conversa do que um tipo
de "diálogo" descrito pelo escritor Milan Kundera: uma fala
monocórdia em que se ouve vagamente o outro, como concessão para obter ou retomar o direito à própria palavra.
Uma objeção salta à vista.
Diante das longas conversas telefônicas ou, principalmente,
das mensagens trocadas na televisão, nos "messengers",
chats etc., teria mudado apenas
o meio, e não a mensagem, que,
pelo contrário, multiplicar-se-ia por milhões ou bilhões? Ignorar a importância desse fenômeno seria absurdo, para ficar numa palavra. Mas, do ponto de vista da conversação, o
meio muda a mensagem.
A via eletrônica, mesmo
quando, excepcionalmente, é
possível ver o interlocutor, elimina um dos elementos essenciais da conversa, qualquer que
seja seu conteúdo: a interação
face a face, em presença do outro, na qual, tanto ou mais do
que a fala em si, vale a reação
corporal tangível e não virtual
dos circunstantes -os risos, as
gargalhadas, os protestos, a expressão enigmática.
Stephen Miller realiza um
longo percurso histórico, sustentando que, na cultura ocidental, a conversação como arte alcançou seu nível mais alto
na Inglaterra e na França, no
curso do século 18.
Grunhidos de John Wayne
Londres representa o exemplo típico, com suas centenas
de clubes privados e cafés, modelo do que o filósofo David
Hume chamou de "o mundo da
conversação". Paris seria outro
exemplo, e o autor se esforça
em nadar contra a corrente,
afirmando que salões e cafés
não foram centros de difusão
de idéias revolucionárias, pois
Rousseau, por exemplo, odiava
esses lugares.
Seja como for, gradativamente a arte da conversação foi
declinando, por várias razões.
Ao analisar esse processo no
âmbito da cultura norte-americana, Miller assinala que a conversação sempre teve grandes
cultores, mas também grandes
inimigos. Lembra os filmes de
faroeste, especialmente os dirigidos por John Ford, que se
vangloriava de restringir as palavras pronunciadas pelos
enigmáticos John Wayne e
Gary Cooper.
Chama a atenção também
para o declínio do encanto pela
linguagem e pelo fraseado, que,
em certa época, teria caracterizado não só a elite como o americano médio.
O exemplo dos filmes é muito específico e talvez não explique grande coisa, pois o que se
quer aí marcar, como recurso
expressivo, é a dificuldade de
comunicação verbal por parte
de personagens vivendo num
espaço imenso e rarefeito, sob
o aspecto populacional.
Mas, sem dúvida, a segunda
observação faz todo o sentido e
constitui um traço universal da
atualidade, transcendendo a
cultura americana.
Há muitos vilões na explicação do desencanto, e o maior
deles é a internet. Nela, chegamos ao ponto de expressar
"beijos", carinhosos ou formais, com a sigla "bjs".
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura
Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras).
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