São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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Jogando conversa fora

Dos cafés e salões aos filmes de John Wayne, declínio da conversação se acentua nas últimas décadas

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Saudosismo à parte, a verdade é que já não se conversa como antigamente. Não iria ao exagero de dizer que a conversa desapareceu de cena, mas se tornou excepcional, relegada a um segundo plano, por novos meios e novos costumes. No mundo da casa, o ímã da televisão suprimiu muitas conversas. Estamos todos presos à tela, das modestas de 14 polegadas às TVs de plasma, estas últimas a grande atração tanto dos bem-nascidos quanto dos malnascidos. Separados às vezes por gênero, os olhares se fixam nos lances da bola ou nas peripécias das novelas. Quando muito, comenta-se o que se está vendo -um hábito que, aliás, invadiu a sala escura dos cinemas, onde o silêncio deveria reinar. No mundo da rua, salvo exceções, os ambientes e os estilos conspiram para que não se converse. É o caso típico de certas festas em que centenas de pessoas permanecem de pé, equilibrando precariamente canapés e pratos mais substanciosos, em risco permanente de queda. Formam-se rodinhas, mas elas não se destinam a facilitar conversas, e sim a irritar as gargantas. Nesse clima, não há outro jeito senão forçar a voz, abafada pelo alarido crescente que parte dos convidados, acrescido do som de uma música que ninguém ouve. O tema da conversa nada tem de trivial. Recentemente, foi objeto de um livro, "Conversation - A History of a Declining Art" (Conversação - Uma História de uma Arte em Declínio, Yale University Press, 368 págs., US$ 27,50, R$ 63), de Stephen Miller, resenhado por Russell Baker no "New York Review of Books" (11/5/2006). A dignidade da conversação como arte não significa que ela deva se enquadrar num molde previsível ou num cânone intelectual. Pelo contrário, diz Miller, a conversação não tem um curso determinado, não perguntamos para que ela serve. Como no jogo, seu significado não consiste em ganhar ou perder, mas numa aventura sem contornos definidos.

Disputas
A afirmação me parece duvidosa. Quase sempre, a conversa contém uma disputa, ora por um argumento intelectual, ora para ver quem provoca mais gargalhadas ou mais espanto, quando ocorre em grupo. A verdadeira conversa tem como condição que os interlocutores considerem a fala dos demais tão importante, ou quase tão importante, quanto a sua. Nada mais distante da verdadeira conversa do que um tipo de "diálogo" descrito pelo escritor Milan Kundera: uma fala monocórdia em que se ouve vagamente o outro, como concessão para obter ou retomar o direito à própria palavra. Uma objeção salta à vista. Diante das longas conversas telefônicas ou, principalmente, das mensagens trocadas na televisão, nos "messengers", chats etc., teria mudado apenas o meio, e não a mensagem, que, pelo contrário, multiplicar-se-ia por milhões ou bilhões? Ignorar a importância desse fenômeno seria absurdo, para ficar numa palavra. Mas, do ponto de vista da conversação, o meio muda a mensagem. A via eletrônica, mesmo quando, excepcionalmente, é possível ver o interlocutor, elimina um dos elementos essenciais da conversa, qualquer que seja seu conteúdo: a interação face a face, em presença do outro, na qual, tanto ou mais do que a fala em si, vale a reação corporal tangível e não virtual dos circunstantes -os risos, as gargalhadas, os protestos, a expressão enigmática. Stephen Miller realiza um longo percurso histórico, sustentando que, na cultura ocidental, a conversação como arte alcançou seu nível mais alto na Inglaterra e na França, no curso do século 18.

Grunhidos de John Wayne
Londres representa o exemplo típico, com suas centenas de clubes privados e cafés, modelo do que o filósofo David Hume chamou de "o mundo da conversação". Paris seria outro exemplo, e o autor se esforça em nadar contra a corrente, afirmando que salões e cafés não foram centros de difusão de idéias revolucionárias, pois Rousseau, por exemplo, odiava esses lugares. Seja como for, gradativamente a arte da conversação foi declinando, por várias razões. Ao analisar esse processo no âmbito da cultura norte-americana, Miller assinala que a conversação sempre teve grandes cultores, mas também grandes inimigos. Lembra os filmes de faroeste, especialmente os dirigidos por John Ford, que se vangloriava de restringir as palavras pronunciadas pelos enigmáticos John Wayne e Gary Cooper. Chama a atenção também para o declínio do encanto pela linguagem e pelo fraseado, que, em certa época, teria caracterizado não só a elite como o americano médio. O exemplo dos filmes é muito específico e talvez não explique grande coisa, pois o que se quer aí marcar, como recurso expressivo, é a dificuldade de comunicação verbal por parte de personagens vivendo num espaço imenso e rarefeito, sob o aspecto populacional. Mas, sem dúvida, a segunda observação faz todo o sentido e constitui um traço universal da atualidade, transcendendo a cultura americana. Há muitos vilões na explicação do desencanto, e o maior deles é a internet. Nela, chegamos ao ponto de expressar "beijos", carinhosos ou formais, com a sigla "bjs".


BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras).

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