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+ sociedade
Corpos fechados
DVD "Olympia", de Riefenstahl,
e "A História do Corpo",
de Vigarello, enfocam mitificação
do atleta
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Em mais um daqueles
ápices cíclicos em que
o esporte se transforma no maior espetáculo da Terra, dois
lançamentos ajudam a entender por que competições atléticas não se reduzem ao ingênuo
espírito esportivo.
O primeiro é um ensaio do
historiador francês Georges Vigarello publicado no terceiro
tomo de "Histoire du Corps"
[História do Corpo, Seuil, 519
págs., 39 euros, R$ 112], um
monumental conjunto de análises dos significados e práticas
físicas desde o Renascimento
até nossos dias, lançado neste
ano na França, sob a direção de
Alain Corbin e Jean-Jacques
Courtine, além de Vigarello.
O outro é a edição em DVD,
no Brasil, de "Olympia", documentário sobre a Olimpíada de
Berlim, de 1936, da cineasta favorita e oficial do nazismo, Leni Riefenstahl, no qual se forjou não apenas a imagem da
perfeição humana sob a égide
do nazismo como também consagrou um cânone audiovisual
dos esportes desde então.
O título do texto de Vigarello
("Estádios - O Espetáculo Esportivo das Tribunas às Telas")
resume o recorte cronológico
adotado pelo historiador. Sua
análise toma como ponto de
partida os primeiros Jogos
Olímpicos da era moderna, em
1896, em Atenas, e se encerra
com as mutações impostas aos
esportes a partir do império
audiovisual da TV, de meados
do século 20 aos nossos dias.
Em todo o percurso, a intenção de Vigarello é enfatizar o
processo de espetacularização
constituída progressivamente
em torno dos esportes a partir
do fim do século 19. Enquanto
prática de disputas atléticas,
até as décadas de 1870-1880, os
esportes representavam modelos elitistas dirigidos a uma
burguesia que via representados neles alguns de seus ideais
distintivos, como o individualismo e a competitividade.
É só com o advento do lazer
para as massas urbanas que as
competições se tornarão espetáculos. Os estádios como os
conhecemos, por exemplo, só
passaram a existir com a demanda das multidões.
Outro elemento decorrente
dessa conversão ao espetáculo
será visto na individualização
dos campeões, atletas elevados
acima da multidão por conta de
seus status de vitoriosos.
Parte dessa tarefa coube à
imprensa, que se incumbiu de
mitificar vitórias, de transformar atletas em heróis por meio
de relatos superdramatizados,
freqüentes em textos e nas
transmissões radiofônicas.
As conquistas "por diferença
de uma cabeça" no ciclismo e
as vitórias além dos limites humanos nas competições de resistência e de velocidade são alguns exemplos desse processo
romântico de criação de heróis.
Com o advento da TV, segundo Vigarello, o efeito realista da
imagem não suavizou essa necessidade do mito no centro da
competição. Ao contrário, pois
agora o espetáculo local teve de
ser convertido em show global,
um veículo adaptado às leis
agressivas do marketing, com
os heróis esportivos sendo ótimos veículos para a publicidade não só de artigos esportivos,
mas também de itens que vão
de cervejas a contas em banco.
Infalíveis, os deuses do estádio têm suas vidas e histórias
reescritas para que dali surjam
trajetórias que reiteram suas
lendas pessoais.
E, se, por acaso, eles cedem a
alguma fragilidade (como a
"amarelada" de Ronaldo na Copa de 1998), todo o esforço do
espetáculo se concentra em
apagar a marca humana.
É com essa marca de superioridade e de perfeição que o
esporte foi codificado em imagens pela nazista Leni Riefenstahl no documentário "Olympia". Graças a sua intimidade
com o regime de Hitler, Riefenstahl obteve permissão para
espalhar seu exército de câmeras no estádio e outros setores
de competições.
Foi assim que ela forjou ângulos e enquadramentos considerados hoje, por muitos, como
revolucionários na captação da
beleza esportiva.
Mas o que a câmera de Riefenstahl criou em "Olympia"
foi um recorte olímpico no qual
só se sobressaem os mais fortes, os mais aptos, os mais belos
e os mais perfeitos.
Uma visão de mundo em total acordo com a ideologia hitlerista, que via nas imperfeições um motivo suficiente para
varrê-las da face da Terra.
E que hoje foi assimilada pelas transmissões esportivas e
pela publicidade sem que ninguém mais se incomode com
sua origem.
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