São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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+ sociedade

Corpos fechados

DVD "Olympia", de Riefenstahl, e "A História do Corpo", de Vigarello, enfocam mitificação do atleta

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Em mais um daqueles ápices cíclicos em que o esporte se transforma no maior espetáculo da Terra, dois lançamentos ajudam a entender por que competições atléticas não se reduzem ao ingênuo espírito esportivo.
O primeiro é um ensaio do historiador francês Georges Vigarello publicado no terceiro tomo de "Histoire du Corps" [História do Corpo, Seuil, 519 págs., 39 euros, R$ 112], um monumental conjunto de análises dos significados e práticas físicas desde o Renascimento até nossos dias, lançado neste ano na França, sob a direção de Alain Corbin e Jean-Jacques Courtine, além de Vigarello.
O outro é a edição em DVD, no Brasil, de "Olympia", documentário sobre a Olimpíada de Berlim, de 1936, da cineasta favorita e oficial do nazismo, Leni Riefenstahl, no qual se forjou não apenas a imagem da perfeição humana sob a égide do nazismo como também consagrou um cânone audiovisual dos esportes desde então.
O título do texto de Vigarello ("Estádios - O Espetáculo Esportivo das Tribunas às Telas") resume o recorte cronológico adotado pelo historiador. Sua análise toma como ponto de partida os primeiros Jogos Olímpicos da era moderna, em 1896, em Atenas, e se encerra com as mutações impostas aos esportes a partir do império audiovisual da TV, de meados do século 20 aos nossos dias.
Em todo o percurso, a intenção de Vigarello é enfatizar o processo de espetacularização constituída progressivamente em torno dos esportes a partir do fim do século 19. Enquanto prática de disputas atléticas, até as décadas de 1870-1880, os esportes representavam modelos elitistas dirigidos a uma burguesia que via representados neles alguns de seus ideais distintivos, como o individualismo e a competitividade.
É só com o advento do lazer para as massas urbanas que as competições se tornarão espetáculos. Os estádios como os conhecemos, por exemplo, só passaram a existir com a demanda das multidões.
Outro elemento decorrente dessa conversão ao espetáculo será visto na individualização dos campeões, atletas elevados acima da multidão por conta de seus status de vitoriosos.
Parte dessa tarefa coube à imprensa, que se incumbiu de mitificar vitórias, de transformar atletas em heróis por meio de relatos superdramatizados, freqüentes em textos e nas transmissões radiofônicas.
As conquistas "por diferença de uma cabeça" no ciclismo e as vitórias além dos limites humanos nas competições de resistência e de velocidade são alguns exemplos desse processo romântico de criação de heróis.
Com o advento da TV, segundo Vigarello, o efeito realista da imagem não suavizou essa necessidade do mito no centro da competição. Ao contrário, pois agora o espetáculo local teve de ser convertido em show global, um veículo adaptado às leis agressivas do marketing, com os heróis esportivos sendo ótimos veículos para a publicidade não só de artigos esportivos, mas também de itens que vão de cervejas a contas em banco.
Infalíveis, os deuses do estádio têm suas vidas e histórias reescritas para que dali surjam trajetórias que reiteram suas lendas pessoais.
E, se, por acaso, eles cedem a alguma fragilidade (como a "amarelada" de Ronaldo na Copa de 1998), todo o esforço do espetáculo se concentra em apagar a marca humana.
É com essa marca de superioridade e de perfeição que o esporte foi codificado em imagens pela nazista Leni Riefenstahl no documentário "Olympia". Graças a sua intimidade com o regime de Hitler, Riefenstahl obteve permissão para espalhar seu exército de câmeras no estádio e outros setores de competições.
Foi assim que ela forjou ângulos e enquadramentos considerados hoje, por muitos, como revolucionários na captação da beleza esportiva.
Mas o que a câmera de Riefenstahl criou em "Olympia" foi um recorte olímpico no qual só se sobressaem os mais fortes, os mais aptos, os mais belos e os mais perfeitos.
Uma visão de mundo em total acordo com a ideologia hitlerista, que via nas imperfeições um motivo suficiente para varrê-las da face da Terra.
E que hoje foi assimilada pelas transmissões esportivas e pela publicidade sem que ninguém mais se incomode com sua origem.


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