São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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Lição de casa

Obra de Vargas Llosa de 1997, "Cartas a um Jovem Escritor" também sai no Brasil

SAMUEL TITAN JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há pelo menos duas maneiras de ler estas "Cartas a um Jovem Escritor", de Vargas Llosa, publicadas em espanhol em 1997 e agora traduzidas para o português (Campus, 152 págs.).
A primeira, a mais prazerosa, consiste em aceitar as convenções do gênero magistral e ceder ao encanto fluente de um escritor dotado de inegável "savoir-faire", capaz de conduzir o leitor, sem grandiloqüências nem terminologias, pelos meandros do ofício.
Quem percorrer assim as 12 "cartas" ou capítulos do livro terá feito um belo curso de introdução à prosa de ficção, vazado no tom certo para estimular, e não substituir, a leitura das próprias obras citadas e sugeridas -dos inescapáveis Flaubert e Cervantes a Thomas Wolfe e Guimarães Rosa.
O ponto de partida, após um elogio da vocação de escritor na divertida "parábola da solitária" que abre o livro, é a idéia de persuasão. Vargas Llosa toma o cuidado de distingui-la, ao menos nominalmente, da verossimilhança realista à maneira do romance do século 19.
A persuasão reside na perfeita economia de enredo e personagens que, em tom realista ou em chave fantástica, dão o máximo de si ao autor e produzem a "ilusão de autonomia" essencial à grande arte narrativa.
Essa autonomia livra a obra de ficção de toda espécie de obediência prévia às imposições da realidade mais mesquinha ou aos mandatos da ideologia de plantão. Retoma aqui um ponto central de um livro de 30 anos atrás, "A Orgia Perpétua", estudo apaixonado de "Madame Bovary" e da imagem de escritor radicalmente autônomo que Flaubert foi o primeiro a encarnar.
A partir dessa modalidade esclarecida e liberal de persuasão, o autor organiza as demais cartas, cada uma delas dedicada a um aspecto dos "métodos de composição" que o romancista mais velho expõe a seu jovem aprendiz: o estilo, o narrador, o tempo e o espaço, a noção de realidade ficcional e, na penúltima carta, a idéia de forma total, os "vasos comunicantes" de que fala Vargas Llosa.
Mas há um segundo modo de abordar as "Cartas", que não contradiz o primeiro, mas as ilumina de outro ângulo e torna possível lê-las à contraluz.
Com efeito, seria difícil nomear em sua geração romancista mais estudioso: Vargas Llosa leu "de lápis na mão" a narrativa de Flaubert e Kafka, de Faulkner e Onetti, e soube pôr tudo a serviço da própria vocação de escritor.
Mas há o reverso desse esforço notável de autoformação, que contrasta com a fragilidade endêmica e recorrente da vida literária na América Latina (e no Brasil). Não se trata aqui de nenhuma falta ou carência; há o Vargas Llosa tão senhor de seus meios que acaba por se sobrepor à matéria narrada. É o que se vê em alguns romances da década de 90, mas sobretudo em "A Guerra do Fim do Mundo" (1981), e "Peixe na Água" (1993). Na recriação de Canudos, a tenuidade da trama e dos personagens só se sustenta por obra e graça do narrador. Ora, esse narrador persuasivo é o mesmo que reaparece em "Peixe na Água", relato da malograda campanha à Presidência do Peru. Um "vaso comunicante" liga o primeiro ao segundo, ao Vargas Llosa que pontifica em jornais de todo o mundo sobre quase qualquer assunto e o destas "Cartas". Diante disso, o leitor pode bem se perguntar se, dentre as várias imagens de si mesmo que o autor prodigaliza em seus livros, a mais simpática e promissora não será a do jovem Marito, na obra-prima cômica "Tia Júlia e o Escrevinhador": não um grande mestre, mas um escritor aprendiz, ingênuo e indefeso, às voltas com um país de poucas letras, uma tia sedutora e um noveleiro boliviano.


SAMUEL TITAN JR. é tradutor e professor de teoria literária na USP.


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