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Lição de casa
Obra de
Vargas Llosa
de 1997,
"Cartas a um Jovem Escritor" também
sai no Brasil
SAMUEL TITAN JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há pelo menos duas
maneiras de ler estas "Cartas a um
Jovem Escritor",
de Vargas Llosa,
publicadas em espanhol em
1997 e agora traduzidas para o
português (Campus, 152 págs.).
A primeira, a mais prazerosa,
consiste em aceitar as convenções do gênero magistral e ceder ao encanto fluente de um
escritor dotado de inegável "savoir-faire", capaz de conduzir o
leitor, sem grandiloqüências
nem terminologias, pelos
meandros do ofício.
Quem percorrer assim as 12
"cartas" ou capítulos do livro
terá feito um belo curso de introdução à prosa de ficção, vazado no tom certo para estimular, e não substituir, a leitura
das próprias obras citadas e sugeridas -dos inescapáveis
Flaubert e Cervantes a Thomas
Wolfe e Guimarães Rosa.
O ponto de partida, após um
elogio da vocação de escritor na
divertida "parábola da solitária" que abre o livro, é a idéia de
persuasão. Vargas Llosa toma o
cuidado de distingui-la, ao menos nominalmente, da verossimilhança realista à maneira do
romance do século 19.
A persuasão reside na perfeita economia de enredo e personagens que, em tom realista ou
em chave fantástica, dão o máximo de si ao autor e produzem
a "ilusão de autonomia" essencial à grande arte narrativa.
Essa autonomia livra a obra
de ficção de toda espécie de
obediência prévia às imposições da realidade mais mesquinha ou aos mandatos da ideologia de plantão. Retoma aqui um
ponto central de um livro de 30
anos atrás, "A Orgia Perpétua",
estudo apaixonado de "Madame Bovary" e da imagem de escritor radicalmente autônomo
que Flaubert foi o primeiro a
encarnar.
A partir dessa modalidade
esclarecida e liberal de persuasão, o autor organiza as demais
cartas, cada uma delas dedicada a um aspecto dos "métodos
de composição" que o romancista mais velho expõe a seu jovem aprendiz: o estilo, o narrador, o tempo e o espaço, a noção de realidade ficcional e, na
penúltima carta, a idéia de forma total, os "vasos comunicantes" de que fala Vargas Llosa.
Mas há um segundo modo de
abordar as "Cartas", que não
contradiz o primeiro, mas as
ilumina de outro ângulo e torna possível lê-las à contraluz.
Com efeito, seria difícil nomear em sua geração romancista mais estudioso: Vargas
Llosa leu "de lápis na mão" a
narrativa de Flaubert e Kafka,
de Faulkner e Onetti, e soube
pôr tudo a serviço da própria
vocação de escritor.
Mas há o reverso desse esforço notável de autoformação,
que contrasta com a fragilidade
endêmica e recorrente da vida
literária na América Latina (e
no Brasil). Não se trata aqui de
nenhuma falta ou carência;
há o Vargas Llosa tão senhor de
seus meios que acaba por se sobrepor à matéria narrada. É o
que se vê em alguns romances
da década de 90, mas sobretudo
em "A Guerra do Fim do Mundo" (1981), e "Peixe na Água"
(1993). Na recriação de Canudos, a tenuidade da trama e dos
personagens só se sustenta por
obra e graça do narrador.
Ora, esse narrador persuasivo é o mesmo que reaparece em
"Peixe na Água", relato da malograda campanha à Presidência do Peru. Um "vaso comunicante" liga o primeiro ao segundo, ao Vargas Llosa que pontifica em jornais de todo o mundo
sobre quase qualquer assunto e
o destas "Cartas".
Diante disso, o leitor pode
bem se perguntar se, dentre as
várias imagens de si mesmo
que o autor prodigaliza em seus
livros, a mais simpática e promissora não será a do jovem
Marito, na obra-prima cômica
"Tia Júlia e o Escrevinhador":
não um grande mestre, mas um
escritor aprendiz, ingênuo e indefeso, às voltas com um país
de poucas letras, uma tia sedutora e um noveleiro boliviano.
SAMUEL TITAN JR. é tradutor e professor de
teoria literária na USP.
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