São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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Um parnasiano engajado

Reunidas pela primeira vez, crônicas jornalísticas de Olavo Bilac pintam o Rio da belle époque

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Machado de Assis nunca foi tão "machadiano" quanto nas suas crônicas. Talvez até machadiano demais: há quem se ressinta de um excesso de gracinhas, elegâncias e piruetas nas suas colaborações para a imprensa. Farto do efêmero e seduzido pela imortalidade, Machado de Assis deixou de escrever suas crônicas semanais na "Gazeta de Notícias" em 1897, para dedicar-se à organização da Academia Brasileira de Letras, que acabava de fundar. Para substituí-lo no jornal, foi escolhido um escritor de tipo bem diferente: Olavo Bilac (1865-1918).

Poeta consagrado
Aos 32 anos, Bilac já era um poeta consagrado: seu soneto "Ora (Direis) Ouvir Estrelas", publicado 11 anos antes, obtivera sucesso imediato e merecido. Como jornalista, seu nome também já estava consolidado. Em 1893, uma série de ataques a Floriano Peixoto levou Bilac à prisão e, em seguida, ao exílio em Ouro Preto -de onde, aliás, foi expulso pela população: havia satirizado um chefe local. Estamos longe, portanto, da imagem do poeta parnasiano alheio aos combates políticos de seu tempo, entregue apenas à confecção de raros berloques numa versificação irretocável. Os dois tomos de sua obra jornalística, coletada por Antonio Dimas com paciência e dedicação de monge, perfazem 1.300 páginas em corpo pequeno, mais 200 de índices. Vêm acompanhados de um indispensável volume de ensaios escritos pelo organizador, que mapeia com elegância e objetividade os temas e preocupações de Bilac. Civilização e barbárie. Canudos e Paris. O Rio de Janeiro das febres e dos capoeiristas convivendo com o Rio de Janeiro da modernização urbanística, de Rodrigues Alves, Pereira Passos e Oswaldo Cruz. A descoberta de Vila Rica e o interesse pela nova capital mineira, Belo Horizonte, que começava a sair do papel. O Brasil, enfim, como um rascunho borradíssimo, imundo, selvagem, a que cumpriria embelezar e corrigir até que fosse alcançada a pureza de um soneto sem jaça. Fortemente opinativas, as crônicas de Olavo Bilac não têm a graça, a modernidade estilística, a liberdade de invenção das de Machado de Assis. As idéias de Olavo Bilac raras vezes destoam dos padrões da época (sua defesa do divórcio é uma corajosa exceção), e o convencionalismo de muitas delas talvez seja, no fundo, o principal motivo para que ainda mantenham uma aparência de atualidade. Muita coisa, lida cem anos depois, surge como feroz preconceito: Antônio Conselheiro não passa de um "patife"; lundus e maxixes são cacofonias lascivas; o Carnaval prodigaliza espetáculos de imundície horrenda. Em outros aspectos, contudo, o senso comum aproxima Bilac de muitos que queiram lê-lo hoje em dia: também ele clamava, por exemplo, pelo "enforcamento" de todos os políticos brasileiros; notava a insegurança nas ruas da cidade; e destacava ironicamente o poder do jogo do bicho.

Abuso dos clichês
O pior convencionalismo, num cronista, é contudo o da linguagem, e as crônicas de Bilac abusam de clichês constrangedores. A necessidade de preencher espaço leva o autor a "desenvolvimentos" retóricos da mais espessa chatice. Descobriu-se ouro na África do Sul. O poeta toma fôlego: "Ah! A fome do ouro! Em que arriscados passos não se mete a gente, por amor do lindo metal, que a natureza previdente armazenou no seio da terra, disfarçando-o em amálgamas vários, como para esconder da nossa cobiça essa fonte perene de horrores e sangueiras! Por amor dele, a alma se endurece, o coração fica seco como um areal, afiam-se as unhas à rapina, aguçam-se os dentes à traição, e o espírito, excitado pelas tentações, inventa requintes de crueldade, cria prodígios de astúcia". O leitor sente que o ar começa a ficar irrespirável nesses parágrafos escavados com sacrifício, pressa e ranger de dentes. Não por acaso, como nota Antonio Dimas, Bilac desmistificaria com ênfase o mito da "torre de marfim", que tanto o havia inspirado, para tornar-se um áspero defensor dos direitos profissionais dos escritores, denunciando a ganância das casas editoras de seu tempo. Diz-se com freqüência que a crônica é um gênero descompromissado, borboleteante e leve. Empunhar estes volumes imensos de Bilac exige do leitor, entretanto, musculatura e determinação dignas de atleta. Como documento histórico, em especial para os estudiosos da vida urbana da antiga capital federal, sem dúvida as crônicas de Bilac são de uma extrema riqueza; depois da redescoberta de João do Rio e da obra de cronista de Lima Barreto, objeto de publicações recentes, a recuperação das crônicas de Olavo Bilac parece indicar um crescente interesse pelo "fin de siècle" carioca. Talvez porque a experiência urbana brasileira, nos últimos 20 anos, esteja se distanciando daquilo que foi sua mais vigorosa forma de expressão artística -o "futurismo" paulista de 22, eufórico com o progresso e a imigração- para voltar-se a uma situação em que, novamente, "barbárie" e "civilização", a ameaça dos pobres e as pretensões ao requinte cosmopolita, ocupam mais e mais a atenção do público. Como sintoma dessa atitude, as crônicas de Bilac têm muito a nos ensinar.


BILAC, O JORNALISTA
Organização: Antonio Dimas Editora: Ed. da Unicamp/Edusp/Imprensa Oficial do Estado de SP (tel. 0/ xx/11/ 6099-9800) Quanto: R$ 170 (a caixa); 904 págs. (vol. 1), 576 págs. (vol. 2), 200 págs. (vol. 3)



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