São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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A cura pela arte

Com rigor conceitual, "A Paixão do Negativo" analisa o pensamento de Lacan

LUCIA SANTAELLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é difícil concordar com a afirmação de que Jacques Lacan é um antifilósofo. De fato, Lacan nunca aceitou a aspiração ao acabamento que é próprio do discurso filosófico. Entretanto os textos lacanianos estão recheados de temas e alusões à filosofia de muitos autores e escolas. Mais do que isso: o vigor da elaboração conceitual de Lacan jamais virou as costas aos impasses do racionalismo moderno. Figuras centrais na sua interlocução foram Kant e, especialmente, Hegel. Um dos textos seminais de Lacan, "Subversão do Sujeito e a Dialética do Desejo", incrusta no seu título o tributo que o psicanalista aí paga ao filósofo. Não se trata, entretanto, de um pagamento simples. Se existe uma dialética do desejo, ela é inseparável de uma subversão do sujeito e, nesse ponto crucial, Lacan se afasta de Hegel.

Dialética e sujeito
Contudo isso não significa que se possa meramente descartar Hegel dos caminhos da psicanálise lacaniana, pois resta esclarecer como articular, de uma maneira distinta de Hegel, dialética e sujeito, esses dois grandes motivos hegelianos. Muitos foram aqueles que, nas suas leituras de Lacan, se satisfizeram com o esclarecimento dessa articulação no postulado do sujeito dividido à luz da lógica do significante. Entretanto, como ocorre com todo pensador de peso, a obra de Lacan foi marcada pelo crescimento da complexidade de sua cartografia conceitual. Isso quer dizer que questões trabalhadas em um certo ponto da trajetória não foram meramente abandonadas, mas reelaboradas com o auxílio de conceitos mais afinados e precisos. São raros aqueles que acompanharam o desenvolvimento que as questões filosóficas do sujeito e da dialética receberam no Lacan dos anos 1960 em diante. Vem daí um dos fatores da enorme relevância deste "A Paixão do Negativo", de Vladimir Safatle, ao levar à frente, com energia intelectual rigorosa e persistência amorosa nos propósitos, a tese de que a trajetória de Lacan "é sintoma dos impasses da tradição crítica do racionalismo moderno aberta pela dialética hegeliana".

Proximidade de Adorno
Para Safatle, ao sustentar a figura do sujeito, mas longe de um pensamento da identidade, a estratégia lacaniana chega muito perto da versão da dialética negativa elaborada por Adorno. Contrariando tanto as facilidades do relativismo e seus procedimentos de interpretação quanto os discursos correntes sobre a morte do sujeito ou do retorno à imanência do ser, ao arcaico, ao inefável, ambos, Adorno e Lacan, propuseram a centralidade de experiências de confrontação entre sujeito e objeto, do singular e da resistência do objeto de que só uma dialética renovada pode dar conta. O percurso de Safatle, seguindo "pari passu" as transformações da trajetória conceitual de Lacan, é implacável no cuidado caprichoso com que expõe seus argumentos. Na primeira parte do livro, discorre sobre o paradigma lacaniano da intersubjetividade, indissociável da compreensão do desejo como desejo puro e marcado pela tensão entre a negatividade do que se aloja na subjetividade e a dialética do reconhecimento. Esse paradigma foi importante na construção de um espaço no qual a negatividade do sujeito seria reconhecida mediante uma lei fálica e paterna constituída de significantes puros. Todavia, a partir de 1961, Lacan operará certo retorno ao sensível e ao primado do objeto, abandonando o conceito de desejo puro em prol da rearticulação do conceito de pulsão.

Força disruptiva
O ponto mais alto do livro está na parte final, quando se arma o confronto entre Lacan e Adorno, de que resulta a constatação de que só há cura possível no acesso a uma experiência de descentramento e de não-identidade cujo modelo é fornecido pela força disruptiva da arte contemporânea. Nisso se revela o que talvez venha a ser a astúcia suprema da dialética, a de saber calar para deixar as ruínas falarem. "Astúcia que a arte foi a primeira a formalizar." É no mínimo jubiloso que um livro de uma tal envergadura seja lançado em nosso meio, em um momento em que, afetada pela expansão da "geléia geral", intensifica-se a tendência nativa à leviandade intelectual. Felizmente ainda continuam a existir espíritos aos quais o fácil enfada. Este livro se endereça a espíritos desse tipo, que se comprazem na "paciência do conceito". Afinal, convenhamos, não há nada mais prático do que boas teorias.


LUCIA SANTAELLA é coordenadora da pós-graduação em tecnologias da inteligência e design digital na Pontifícia Universidade Católica (SP).
A PAIXÃO DO NEGATIVO
Autor: Vladimir Safatle
Editora: Unesp
Quanto: R$ 40 (336 págs.)


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