São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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Napoleão, o escravagista

Estudos relatam o momento em que o imperador abandonou os ideais de igualdade nas colônias francesas da América

PHILIPPE-JEAN CATINCHI

Fruto da lei de 10/5/ 2001, que faz da escravidão e do tráfico humano um "crime contra a humanidade", a instauração de um dia em homenagem à lembrança da multidão escravizada e explorada nas colônias francesas até a metade do século 19 permitiu que, pela primeira vez, fosse celebrada a memória por muito tempo ocultada das vítimas da história nacional francesa.
Longe de acalmar as paixões, a tomada de consciência dessa tragédia humana suscitou reivindicações, mais radicais do que refletidas, baseadas na emoção e que desprezam a análise serena do passado, chegando a desencadear uma campanha tão caluniosa quanto absurda contra o melhor historiador do tráfico humano, Olivier Pétré-Grenouilleau, cujo magistral ensaio de história mundial, "Les Traites Negrières" (O Tráfico Negreiro), é de uma largueza de visão exemplar.
Essa agitação levou o Estado francês a adotar perfil discreto na ocasião do bicentenário de Austerlitz, em 1805, quando saiu "Le Crime de Napoléon" (O Crime de Napoleão), o trabalho incendiário do escritor Claude Ribbe, natural do Guadalupe, estigmatizando "o crime de Napoleão": a restauração da escravatura (1802), que havia sido abolida em 1794.

Ideais revolucionários
Vale recordar o caminho traçado por Yves Benot (1920-2005), cujo ensaio revelador "La Démence Coloniale sous Napoléon" (A Insanidade Colonial sob Napoleão, La Découverte, 420 págs. 12,50, R$ 36) -que se seguiu ao igualmente perturbador "La Révolution Française et la Fin des Colonies" (A Revolução Francesa e o Fim das Colônias)- criticava o abandono deliberado, sob o império, dos ideais igualitários da Revolução.
A polêmica atual com certeza pesou sobre a redação do livro co-assinado por Thierry Lentz e Pierre Branda Fayard, "Napoléon, l'Esclavage et les Colonies" (Napoleão, a Escravidão e as Colônias, editora Fayard, 374 págs., 25, R$ 71).
Isso é sentido pelo estilo em que são apresentados alguns argumentos intransigentes, que, entretanto, negam ser refutações partidárias numa disputa que só pode desviar a atenção do leitor do essencial: fazer compreender a política colonial de Napoleão -e seu doloroso fracasso.
Desde o início, os dois historiadores lembram a perspectiva que rege a aventura colonial francesa.
Para começar, Colbert, que, longe de promover o povoamento das colônias, visava apenas o enriquecimento da metrópole por meio da exploração econômica das terras conquistadas. O regime de exclusividade -em que os colonos são meros concessionários do Estado-, assim como a adoção do código negro sustentam o "milagre do açúcar", que fez a fortuna da França.
A partir desse momento, a agitação que se espalha pelas Antilhas a partir dos primórdios da Revolução passa a preocupar Paris, que teme a perda de São Domingos, a "pérola" do império. Numa iniciativa movida pelo realismo, a Convenção abole a escravidão, para evitar que a ilha escape das mãos da França.

Golfo do México francês
Igualmente pragmático, Bonaparte sonha em fazer do Golfo do México um "lago francês" banhando a Louisiana, a Flórida e as Antilhas açucareiras. Ele se adaptaria ao avanço de Toussaint Louverture, líder das revoltas de 1791, que controla São Domingos desde 1797, se este se submetesse a sua autoridade. O jogo duplo do general negro leva o primeiro cônsul a decidir por uma expedição armada para retomar o controle do país de suposta abundância.
A empreitada não tem bom resultado. Preso, Louverture é deportado e morre na França, em 1803. A colônia mergulha na violência e numa autêntica guerra "patriótica", na qual cada um dos lados quer não tanto combater o inimigo quanto exterminá-lo.
O retorno progressivo à escravidão desencadeado pela lei de 20/5/1802, que supostamente poupava São Domingos, não impediu a espiral de violência sangrenta de arruinar o vínculo entre a colônia e sua metrópole.
Abandonando seu sonho desfeito, Napoleão deixa a questão antilhana de lado -nesse contexto, a venda da Louisiana seria o reconhecimento disso-, inteiramente ocupado por sua guerra contra a Inglaterra, que ele já perdera em escala mundial.
Inteligente, vivo e bem argumentado, este livro instigante evita todas as interferências contemporâneas que confundem o sentido e obscurecem o debate contemporâneo.


Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.


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