São Paulo, domingo, 18 de agosto de 2002

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O mundo árabe no espelho do Ocidente

Alain Touraine

Nenhum país pode escapar aos efeitos das transformações planetárias que acabam de ocorrer. Podemos defini-las com uma palavra: hoje é uma lógica de guerra que domina o mundo; ela substitui a da globalização, isto é, a da hegemonia econômica dos Estados Unidos, de seus aliados e seus instrumentos, sobre o conjunto do mundo. Os atentados de 11 de setembro, causa ou consequência, provocaram uma onda de choque cuja potência o mundo começa a compreender. Economicamente, a dominação americana não estava ameaçada. O Japão dez anos atrás estava asfixiado pela crise bancária; a Europa se retardava na criação de novas tecnologias e novos conhecimentos e não tinha armas para impor uma política. A China estava há muito ocupada com sua mudança, a passagem de centenas de milhões de homens de uma economia tradicional para uma economia de mercado. A aproximação com a Rússia, a oitava maior economia, afastava qualquer chantagem nuclear, e os ricos participantes do Fórum de Davos não se sentiam ameaçados por aqueles de Porto Alegre, embora este tenha recebido grande atenção da mídia. E tudo permitia pensar que a passagem de Clinton para Bush não teria grandes repercussões, sobretudo porque o novo presidente parecia uma personalidade fraca comparado a Clinton, mais internacional e mais querido.

O pessimismo da razão
Esse panorama geoeconômico desmoronou em algumas semanas ou mesmo em alguns minutos. Hoje, 11 meses depois da destruição das torres de Nova York, a mudança de período histórico é visível por toda a parte. Um olhar inteligente sobre o mundo só vê, num planeta em grande parte na obscuridade, o confronto do gigante econômico e militar americano com pequenos grupos em crescimento mas ainda fracos, grupos que têm como característica muito nova o fato de seus membros possuírem uma experiência pessoal do mundo ocidental. É o caso de Bin Laden, o dos camicases palestinos treinados por Sharon no círculo da morte, sem uma saída política visível do confronto entre o Estado de Israel e um Estado palestino reclamado por todo um povo. Os atos que perturbam a opinião mundial são certamente atos terroristas, mas não podemos reduzir a terrorismo atos inspirados por condições políticas ou religiosas tão fortes. Basta lembrar os muito jovens bassidjis iranianos indo para a morte voluntária na guerra contra o Iraque. Trata-se hoje de uma guerra de religiões? Deve-se falar em Jihad e em cruzada? Podemos compreender os que pensam assim, tanto de uma forma elaborada, como a de Samuel Huntington, quanto da maneira brutal escolhida por Oriana Fallaci. Na verdade, essa interpretação esteve próxima da verdade durante o período em que se construíram os regimes islâmicos, no Irã e no Sudão por exemplo, ou ainda na Argélia, se as eleições que deram a maioria ao GIA (Grupo Islâmico Armado) não tivessem sido anuladas pelos militares. E hoje uma outra hipótese parece mais satisfatória. O mundo muçulmano há dois séculos é atraído para o mundo ocidental em pleno progresso. Começando pelo Egito. A grande revolução ocidentalista realizada por Ataturk levou a Turquia a romper com o mundo islâmico, e o Baas, tanto na Síria quanto no Iraque, foi um movimento não-religioso e que só recentemente utilizou a religião de maneira totalmente instrumental. O fracasso tão frequente das tentativas de ocidentalização veio pelo lado dos colonizadores, principalmente ingleses e franceses, mas sua principal causa se encontra na resistência de uma sociedade islâmica na qual o Corão, os comentários que dele se fizeram, a lei islâmica, a charia, os poderes políticos e as culturas formam um bloco, enquanto a separação dos diversos campos econômico, político, cultural etc. foi a chave da modernização européia. Daí o lugar central dos movimentos islâmicos, a grande aliança das novas burguesias e das massas populares desenraizadas, a chegada ao poder de um islamismo duro no Irã e no Sudão em particular, sem esquecer a estranha Arábia Saudita, tão ligada pelo petróleo aos Estados Unidos e que financia todos os inimigos do "Grande Satã". A situação que vivemos dá sequência ao retorno dessas políticas islâmicas, devido em parte à absorção pelo capitalismo mundial das novas burguesias dos países islâmicos. Hoje assistimos a um ataque desesperado contra o Ocidente, conduzido por homens, partidos e categorias que foram muito ocidentalizados e que se voltam contra um Ocidente do qual se sentem rejeitados, mas sobretudo onde sua sociedade não está pronta para entrar. E isso já era verdade para uma parte dos islâmicos argelinos; o era de maneira mais visível para a Al Qaeda, cujo chefe, Bin Laden, é um dos que dirigiram os atentados -e todos esses eram fortemente ocidentalizados. Na verdade não se trata aqui do mundo islâmico. A Turquia conteve a ascensão do partido Refah; o Irã, apesar da resistência dos religiosos, não poderá impor por muito tempo uma república islâmica a uma população que exige maciçamente as liberdades de que é privada. O mundo árabe, por ser mais próximo do mundo ocidental, sente de maneira mais forte seus fracassos. Mas as violências atuais no mundo árabe não explicam totalmente a brusca mudança dos Estados Unidos, que hoje dão prioridade a uma política militar. A explicação vem, antes de tudo, da questão do petróleo e sobretudo do futuro muito comprometido da Arábia Saudita. Se esta derrubar sua monarquia, se outros países realmente apoiarem uma revolução saudita, o abastecimento de petróleo do Ocidente estará gravemente ameaçado.

Situação explosiva
Da mesma maneira, a existência de Israel também estaria diretamente ameaçada. De ambos os lados as apostas são extremas, o que explica que os militantes de diversos países árabes e da Palestina em primeiro lugar aparecem nos Estados Unidos como a vanguarda de um ataque poderoso, e que é preciso atraí-lo antes que ocorra uma explosão na Arábia Saudita ou na Palestina. A situação é ainda mais perigosa hoje do que no momento da guerra contra o Iraque. Todos os países do mundo que não estão situados na linha de frente vão sentir fortemente essa mudança da conjuntura mundial.
Em toda parte a antiga prioridade dos problemas econômicos desaparece em benefício de problemas nacionais. O mais importante para os países é serem capazes de agir como uma nação, o que implica condições sociais, assim como propriamente políticas. Esse é o pano de fundo sobre o qual vai se realizar a eleição presidencial no Brasil.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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