São Paulo, domingo, 18 de agosto de 2002

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A geração H

Divulgação
Nick Peretti e o rapper Ice T em cena de "New Jack City" (1991), de Mario van Peebles


Marcos Flamínio Peres
Editor-adjunto do Mais!

Expressão que engloba certas manifestações da cultura negra, como dança, grafite, técnica de discotecagem e sobretudo rap, o hip-hop se tornou nos anos 90 um ícone da cultura norte-americana "mainstream" ao mesmo tempo em que os negros viram declinar seu poder de mobilização política e aumentar dramaticamente sua marginalização social e econômica. Esse é o paradoxo que "The Hip Hop Generation" [A Geração Hip-Hop, Basic Civitas Books, 256 págs., US$ 24", de Bakari Kitwana, busca destrinchar. Lançado há pouco nos EUA, o livro foca a geração de negros americanos nascidos entre 1965 e 1984, que, no entanto, "não deve ser confundida com a geração X" [leia quadro na pág. 9", afirma Kitwana, 35, um dos mais respeitados teóricos do movimento nos EUA e ex-editor da "Source", a bíblia do hip-hop. "Nunca consegui acreditar que a experiência de ser negro nos EUA pudesse ser resumida como a de ser um branco com rosto mais escuro", diz o autor em entrevista concedida por e-mail ao Mais! [leia na pág. 6". Desprezada ou incompreendida pelos intelectuais negros, essa experiência, que inclui viver em bairros pobres das periferias das metrópoles, conviver com gangues e traficantes, receber salários mais baixos que a média nacional e compor perto da metade da população carcerária dos EUA, se revelou de forma brutal nos protestos que explodiram em 1992, em Los Angeles, contra a absolvição pela Justiça dos policiais brancos que haviam espancado, no ano anterior, o motorista negro Rodney King. Para Kitwana, autor também de "The Rap on Gangsta Rap" (Third World Press, 1994), essa "experiência de ser negro nos EUA" contamina sobretudo a vida e a obra de rappers como Tupac Shakur e Notorius Big, não por acaso assassinados, ou a atitude de esportistas como o pugilista Mike Tyson ou o astro da liga de basquete americana Allen Iverson.

Ruído de helicópteros
No cinema, esse niilismo seria retratado pelo principal filme da geração hip-hop, segundo Kitwana: "Os Donos da Rua" ("Boyz n the Hood"), do então jovem diretor John Singleton. Pontuado pelo ruído de helicópteros da polícia que nunca aparecem, o filme é um retrato cru de um grupo de amigos que nascem, crescem e, em alguns casos, morrem no bairro de South Central, em Los Angeles. Seu impacto, quando foi lançado em 1991, foi tremendo, escancarando uma realidade nova para a sociedade americana e, em seu ineditismo, parece ter prefigurado o estado atual das periferias das cidades brasileiras. Outros filmes, como "New Jack City", "Perigo à Sociedade" e "Inferno Branco", voltariam ao tema de modo ainda mais brutal, mesmo sem atingir o mesmo sucesso. Mas Kitwana lamenta que esses jovens sejam vítimas ainda de uma outra marginalização, a da geração anterior, a "black power". Foram os "black powers" que obtiveram nos 60 e 70 conquistas como a ação afirmativa, uma combinação de medidas que buscavam algum modo de compensar os anos de escravidão dos negros e seu estatuto inferiorizado na sociedade. Além da reparação -apenas simbólica para alguns, financeira para outros-, a medida mais efetiva foi a reserva de cotas para negros nas universidades, questão que tem sido seriamente atacada hoje pelos republicanos americanos, embora no Brasil tenha sido tratada com atenção nos últimos tempos -há poucas semanas a Universidade do Estado da Bahia anunciou que irá reservar 40% das vagas de todos os seus cursos de graduação e pós-graduação para candidatos negros. Contudo Kitwana alerta que essas medidas, arrojadas à época, são hoje insuficientes e quase inócuas para enfrentar os problemas que a globalização tem provocado também nos EUA.

Da raça para a classe
Kitwana -um militante da causa negra que sempre inicia as respostas por "nós"- explica que, engessados por uma "retórica dos direitos civis", os intelectuais negros da velha-guarda se desconectaram da realidade da geração hip-hop e se tornaram incapazes de propor novas soluções.
Em um país em que os estudos culturais ainda desfrutam de peso considerável, "A Geração Hip Hop" tem o grande mérito de deslocar o foco da questão de raça para a de classe. Ao apontar que parcelas das indústrias norte-americanas, que absorviam até os anos 80 boa parte da mão-de-obra dos negros, estão migrando para o Sudeste Asiático e Caribe para fugir dos salários altos, Kitwana relativiza o peso da raça e a insere no contexto mais amplo da globalização, que "afeta a classe média e os pobres, tanto negros quanto brancos", criando um Terceiro Mundo doméstico.
Por outro lado, se do ponto de vista socioeconômico a globalização acentuou a crise da geração hip-hop, por outro lado, sob esse aspecto, "diminuiu o fosso racial, embora não totalmente", conclui Kitwana.
A mistura explosiva de rap, pobreza e violência policial, mas desta vez nas periferias de São Paulo e Rio, é o tema de artigo dos professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ivana Bentes e Micael Herschmann [leia na pág. 10". Eles tratam de filmes como o contundente "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, que estréia no dia 30, ou o CD "Nada Como um Dia após o Outro Dia", novo trabalho do principal grupo de rap do país, os Racionais MC's.
Na pág. 12, o musicólogo Christian Bethune busca explicar o sucesso do gênero na França, hoje a segunda mais importante nação do rap depois dos EUA, e sua mistura étnica particular, retratada em filmes como "O Ódio" ("La Haine", 1995), de Mathieu Kassovitz, uma espécie de "Os Dono da Rua" em chave multicultural.


O TEÓRICO DO HIP-HOP BAKARI KITWANA FALA DO LIVRO QUE ESTÁ LANÇANDO E DEFENDE QUE RAPPERS COMO TUPAC SHAKUR E NOTORIUS BIG OCUPARAM O VAZIO DEIXADO PELO FRACASSO DOS INTELECTUAIS NEGROS


da Redação

Bakari Kitwana explica porque a "cultura da prisão" é essencial para entender a geração hip-hop, alerta que os avanços da clonagem podem fazer ressuscitar o discurso ideológico da inferioridade racial e diz que o "american way of life" já deixou de ser uma realidade "para uma parcela cada vez maior de americanos". (MARCOS FLAMÍNIO PERES) Por que "geração hip-hop"?
Uma das razões para ter cunhado esse termo é porque havia se tornado lugar-comum no meio dos anos 90 chamar a todos os jovens americanos de "a geração X" e, aos jovens afro-americanos, de "geração X negra". Nunca consegui acreditar que a experiência de ser negro na América pudesse ser resumida como a de ser um branco com rosto mais escuro. Ao fazer isso, foi importante para mim encontrar uma expressão que falasse de um fenômeno que tivesse tido um papel dramático para essa geração de afro-americanos. E poucos fenômenos além do hip-hop tiveram um papel tão profundo para ela.
Mas o que a difere da geração "black power"?
Os "black powers", que lutaram pelo direitos civis para os negros americanos, são afro-americanos nascidos entre 1945 e 1964, negros cuja visão de mundo foi largamente moldada pelos direitos civis e pelos movimentos dos anos 60 e 70. Além dos aspectos políticos e culturais, há outros fenômenos que distinguem essas duas gerações. Acredito que uma nova cultura jovem negra tenha emergido com a geração hip-hop, que, obviamente, vai além apenas da música e da cultura hip-hop. Por exemplo, somos a primeira geração a crescer em uma sociedade pós-segregação, a primeira a chegar à idade adulta com taxas de encarceramento extremamente altas -cerca de 1 milhão de afro-americanos nos EUA. É uma realidade em nosso tempo de vida -em 1970 o índice de afro-americanos presos não passava de 250 mil. Somos a primeira geração para a qual, se você é um trabalhador e está empregado, esse emprego não consegue pagar suas despesas, não lhe permite atingir o estilo de vida da classe média americana. Esses são alguns dos duros contrastes que têm afetado as diferentes visões de mundo partilhadas pela geração hip-hop e nossos pais.
Por que o sr. considera os rappers Tupac Shakur e Notorius Big e o boxeador Mike Tyson como personagens emblemáticos da geração hip-hop?
Todos eles partilham o fato de terem saído dos níveis mais baixos da sociedade americana para despontarem, mas o aspecto mais importante é que eles não deram as costas para o lugar de onde vieram. É algo que se vê em gente como Allen Iverson, Chris Webber [também jogador de basquete da liga profissional americana", o rapper Jay Z e outros. Todos eles cresceram nos anos 80 e 90 e sua visão de mundo foi influenciada pela política pública de combate aos jovens negros que vingava naqueles anos.
O que um rapper como Eminem, branco, bem-sucedido e com letras sexistas, representa para essa geração?
Letras sexistas à parte, Eminem é um jovem branco americano que respeita os negros e idolatra tanto a cultura hip-hop que seu engajamento representa um tributo a ela, e não uma caricatura. Eminem não está tentando ser negro. Ele apenas usa uma forma de expressão negra, mas sem degradá-la ou espoliá-la.
O sr. quase não fala de literatura, cita sobretudo músicos e cineastas. Por que eles, e não os escritores, são tão importantes para compreender essa geração?
Por causa do papel da mídia e das celebridades em nossas vidas, que reservam um papel subalterno a poetas e escritores. Ao mesmo tempo, escritores e poetas tradicionais não têm se destacado pelas críticas e pela compreensão da nova geração. Os rappers, que são escritores e poetas, e os jovens cineastas têm feito tais tentativas, de dar conta das novas realidades que desafiam essa geração. Um dos pontos que destaco no livro é como os intelectuais negros fracassaram ao tentar fornecer uma explicação para o surgimento da nova cultura jovem negra, vazio que foi preenchido pelos rappers e pelos cineastas.
Por que os intelectuais fracassaram?
Fracassaram ao tentar fazer uma análise da cultura negra jovem que emergiu nos anos 80 e 90, fracassaram ao tentar explicar o que estava acontecendo de diferente em nossas comunidades e fracassaram também ao tentar criar um diálogo que levasse em conta teorias plausíveis para abranger a psique coletiva da comunidade. Diante disso, os jovens diretores negros chamaram para si a tarefa. Sua resposta foram filmes como "Os Donos do Rua", "Perigo à Sociedade", "New Jack City" e "Inferno Branco" -todos eles sucessos do ponto de vista financeiro. Em alguns casos eles acertaram, em outros, erraram. Mas a questão principal que abordo é como eles exploraram e fortaleceram o niilismo dessa geração, mais do que simplesmente mascarar suas origens.
Mas quais foram as consequências desse vazio intelectual para a geração hip-hop?
Na ausência de uma tal crítica, muitos jovens negros aceitam a análise que recebem de filmes, programas de TV e da música popular. Muitos intelectuais negros estão se encastelando na torre de marfim do debate pós-estruturalista, em vez de discutir quem somos e para onde estamos indo.
E quem são eles?
Eu não quero atacar ninguém, mas acho que isso se aplica sobretudo aos intelectuais negros da geração anterior. Contudo há algumas vozes interessantes surgindo entre os mais jovens e que estão expandindo esses questionamentos para outras áreas. São pessoas como Robin Kelley, historiador da Universidade de Nova York, ou Scot Brown, professor da Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Em seu livro o sr. praticamente não fala de Spike Lee, que no Brasil é considerado um cineasta da causa negra.
Nunca achei que Spike Lee fosse um militante. Sempre o vi preocupado não tanto com uma reforma radical da sociedade, mas, antes, com o lugar que lhe cabe nela. Os filmes a que me referi acima documentam a experiência de ser jovem e negro nos EUA para a geração hip-hop, filmes que estão tentando definir a nova cultura negra jovem. Os filmes de Spike Lee não fizeram isso, em parte porque ele nunca considerou essa a sua missão, em parte porque ele não faz parte dessa geração -ele tem mais de 40 anos e sua mensagem é muito mais intergeracional. Seus primeiros trabalhos eram, sob alguns aspectos, inovadores, mas eles sempre se caracterizaram mais por perguntar do que por oferecer respostas.
No início de julho a TV exibiu cenas, gravadas anonimamente, de policiais espancando um adolescente negro em Los Angeles. Mas, diferentemente do caso Rodney King, a reação da comunidade negra foi muito mais contida. Isso é um exemplo do "sentido de resignação e aceitação do mundo como ele é" de que o sr. fala no livro?
Espancamentos pela polícia se tornaram de tal forma um lugar-comum que, acredito, os negros desenvolveram uma tolerância em relação a eles. Isso é perigoso, pois estimula mais do mesmo, sem um plano de resistência. Quando a Justiça repetidamente avalia esses acontecimentos como "justificáveis", ela alimenta um cinismo crescente em relação ao sistema. O espancamento de Rodney King pela polícia em 1991 provocou um sentido mais agudo de indignação do que os acontecimentos recentes porque foi um dos primeiros casos em que uma gravação em vídeo mostrou esse tratamento de forma tão direta para todo o país. "Certamente", pensávamos, "a justiça irá prevalecer nessa caso". Mas não foi o o que ocorreu, e a indignação que se seguiu foi uma demonstração de fúria contra a sensação de que havíamos sido ludibriados novamente. À medida que não houver mais repercussão desses crimes, eles irão persistir, e a maior parte de nós aceitará ambas as premissas: a de que não haverá mais repercussão e que os espancamentos irão continuar.
Por que o sr. diz que a "cultura da prisão" é essencial para entender a cultura negra dos anos 80 e 90?
A população carcerária total nos EUA é de cerca de 2 milhões de pessoas. Aproximadamente 1 milhão, como já disse, é de negros, a maior parte inserida na geração hip-hop. A educação inadequada nas regiões mais pobres juntamente com o início da guerra contra as drogas no país, o que modificou a ação da polícia, criaram uma situação em que é impossível encontrar um jovem negro que não tenha um amigo ou parente que tenha sido preso. Com tantos jovens negros dentro e fora do sistema carcerário, a inevitável cultura da prisão começa a pavimentar seu caminho em direção à cultura jovem negra, o que pode se detectar na linguagem -em "bitches" (putas)- e na religião (desde e ascensão de grupos religiosos entre os jovens negros) até a cultura de gangue e a cultura prisonal do cada-um-por-si.
Quais serão as consequências do fosso geracional e o de gênero para a cultura hip-hop?
São duas questões distintas. O fosso de gerações é uma guerra entre a geração de nossos pais e a nossa. O fosso de gênero é uma separação crescente entre os homens e as mulheres da geração hip-hop. Alguma das questões que descrevo como alimentando essa guerra são coisas como "a síndrome dos papais e mamães bebês", pois muitos jovens negros estão tendo filhos juntos, embora sem se casar. O fato também de que as notas escolares e grau de escolaridade das mulheres negras estão superando as dos homens negros. E, por fim, o fato de que as normas da sociedade americana impõem que o homem deve ser o responsável pelo sustento da família, mas não é isso o que tem ocorrido, pois as mulheres negras estão começando a ganhar mais do que os homens negros. A consequência é que as mulheres que buscavam uma vida estável a dois estão deixando de fazê-lo. Essa situação está criando um ressentimento entre homens e mulheres da geração hip-hop que pode levar ao início de uma guerra de sexos.
Segundo o Censo 2000, os negros estão perdendo para os hispânicos o posto de maior minoria dos EUA, o que pode levá-los, como acredita o historiador Mike Davis, a perder sua influência política e até cultural. O sr. concorda?
Não acho que isso irá afetar o poder cultural e político dos negros. Os afro-americanos são um bloco organizado que, ainda que não seja monolítico, o são muito mais do que os hispânicos. Quando se fala de hispânicos no EUA, fala-se de cubanos, dominicanos, porto-riquenhos, mexicanos etc., todos com uma ampla gama de interesses. Parte do que ajuda a solidificar os afro-americanos como um grupo grande e de especial interesse é o racismo da sociedade americana, cujas raízes são históricas. Mas creio que esses grupos encontrarão questões em comum em torno das quais coalizões possam ser construídas, como mais oportunidades de emprego, reconstrução de regiões economicamente deprimidas, redução do tempo de prisão para crimes não-violentos, combate aos aspectos negativos da globalização e construção de um novo sistema educacional. Essas são questões importantes para todos os americanos independentemente de classe ou raça.
O sr. critica em seu livro o "elitismo da classe média negra", mas isso não significa que seus valores tendem simplesmente a ser assimilados pela sociedade branca?
Por elitismo da classe média negra eu não quero dizer necessariamente assimilação, mas é que algumas vezes as críticas que ela dirige à cultura do rap são baseadas em preconceitos de classe, uma crença de que certo comportamento exibido pelos jovens negros deveria ser equiparado à pobreza de valores.
Qual a relação entre globalização e marginalização da cultura negra nos EUA?
De um lado os intelectuais americanos "mainstream" destacam os benefícios da globalização em geral. Já os de esquerda falam de seus aspectos negativos em nível internacional. Mas poucos, contudo, falam dos aspectos negativos da globalização dentro dos EUA, sobretudo seus efeitos sobre os negros nascidos nos anos 80 e 90.


A GLOBALIZAÇÃO DE FATO DIMINUIU O FOSSO RACIAL, EMBORA NÃO TOTALMENTE; PODE-SE VER ISSO SOBRETUDO ENTRE OS MAIS JOVENS


Um impacto significativo é o de que mais e mais empresas estão realocando suas fábricas em países do Caribe e do Sudoeste da Ásia, em busca de salários mais baixos e ausência de benefícios trabalhistas, deixando um vazio de ofertas de emprego nos EUA. Isso ajuda a explicar a falta de altos salários nas fábricas para os trabalhadores da geração hip-hop, o que, no entanto, era uma realidade para seus pais. Enquanto a globalização ajudou a criar um número recorde de empregos na área de serviços e informática, poucos desses empregos pagam salários considerados razoáveis ou oferecem algum benefício. Se para a geração de nossos pais se podia, com o salário de proletário, comprar uma casa, pagar o seguro de saúde e sair em férias, essa é uma realidade que não existe agora, e a globalização é uma razão para isso.
O sr. acredita que já exista um Terceiro Mundo dentro dos EUA?
Certamente. Sempre houve pobreza nos EUA, mas, com o advento da globalização, ela parece estar se intensificando. Muitos jovens negros e brancos estão em situação pior do que estavam seus pais, quando jovens, em relação a emprego, habitação etc. O estilo de vida da classe média -o "american way of life"- não é mais realidade para uma parcela cada vez maior de norte-americanos.
Quando o sr. diz que se passou, dos anos 60 para os 90, de uma "América pós-segregação, pós-direitos civis" para "um foco mais intenso sobre a classe", o sr. parece querer explicar o racismo nos EUA como uma questão de classe -e não apenas cultural, como ocorre com frequência entre os intelectuais americanos. O sr. acha que "classe", devido aos efeitos da globalização, seja um conceito mais útil para compreender o conflito racial nos EUA?
Meus comentários sobre classe que estão no livro ocorrem no contexto da comparação entre os distúrbios dos anos 60 e os ocorridos em Los Angeles em 1992. O fato é que os primeiros estavam mais preocupados com conflitos raciais, enquanto os de 1992, com classe e raça. Os efeitos da globalização de fato empurraram os limites das questões que são comuns aos vários grupos raciais. Devido aos seus efeitos, jovens de classe média branca, por exemplo, são cada vez mais vítimas de um sentido de alienação criado pela nova economia dos EUA. Seus efeitos têm tornado mais aparentes o modo como a economia de livre mercado afeta a classe média e os pobres, tanto negros quanto brancos. A globalização de fato diminuiu o fosso racial, embora não totalmente. Pode-se ver isso sobretudo entre os mais jovens, que, ironicamente, se tornaram adultos em uma época em que os negros são uma força dominante na cultura popular, o que tem causado um grande impacto na diminuição da marginalização.
O sr. defende a ação afirmativa, num momento em que ela tem sido alvo de críticas pesadas nos EUA. Por outro lado, ela tem sido debatida seriamente no Brasil. O sr. acredita que ela seja uma solução efetiva?
A ação afirmativa nunca foi encarada como uma solução definitiva. Seus formuladores acreditavam que ela funcionaria até que as pessoas amadurecessem do ponto de vista racial. Bem, o amadurecimento não ocorreu. Os EUA ainda são uma nação fraturada no aspecto racial e os negros permanecem sub-representados tanto no setor privado quanto no público. O que digo no livro é que a ação afirmativa não deveria ser desmantelada até que algo melhor seja posto em seu lugar. Não acredito que haja uma solução para o passado escravista dos EUA, mas acho que a sociedade americana deveria fazer um gesto decidido de desculpa, compensação e reconhecimento das contribuições que o povo africano trouxe ao país.
Um dos grupos religiosos negros mais influentes nos EUA é a Nação do Islã. O 11 de setembro provocou algum tipo de retaliação?
Acho que a influência declinante da Nação do Islã tem menos a ver com o 11 de setembro e mais com o fato de terem deixado de enfocar a geração mais jovem. A Nação Islã, assim como grupos como a Liga Urbana e Rede de Ação Nacional, fracassou em sua tentativa de incorporar a geração hip-hop.
Por que o sr. critica a "retórica dos direitos civis" que teria assolado os EUA?
O problema com os defensores dos direitos civis é que eles monopolizam a discussão em torno das relações raciais e não acompanharam as mudanças que ocorreram nas perspectivas das gerações mais jovens, que despontam como forças sociais e políticas. A discusão sobre raça aqui país não mudou muito desde a última década -a retórica dos direitos civis continua se repetindo. Se o debate não mudar no plano teórico, nada irá mudar sob o aspecto prático.
O sr. acredita que os avanços científicos em relação à clonagem podem fazer renascer o discurso ideológico explorado em livros como "The Bell Curve" [A Curva do Sino (1994), de Charles Murray e Richard Herrnstein, propunha a tese de que a inteligência é hereditária e distribuída desigualmente entre asiáticos, brancos e negros"?
Sem dúvida. No livro eu faço referência a um programa, com fundos federais (the Violence Initiative), que, entre outras coisas, financiou um estudo de alguns jovens negros em Chicago que tentaram isolar um gene para provar que, por razões biológicas, eles teriam tendência a cometer atos de violência. Esse programa sofreu críticas de grupos de direitos civis e foi dissolvido, mas foi remodelado depois, recebendo outro nome. Há ainda nos EUA uma próspera comunidade de intelectuais que acreditam que os não-brancos sejam inferiores, e não é improvável acreditar que a idéia de clonagem possa herdar aquela perspectiva, assim como muitas outras.


Onde encomendar "The Hip Hop Generation" pode ser encomendada, em São Paulo, à livraria Fnac (tel. 0/xx/11/3097-0022) e, no Rio, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/3641-0991).


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