São Paulo, domingo, 18 de agosto de 2002

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As ambiguidades de um bicentenário


Comemorações em torno dos 200 anos de nascimento de Victor Hugo, celebrado por conservadores e pela ex-esquerda, ensejam a volta do moralismo burguês e dão novo fôlego às retóricas universalistas


Jacques Rancière

Então faz 200 anos que Victor Hugo nasceu. Os aniversários não dependem da vontade dos homens. Mas o mesmo não acontece com as comemorações. Por exemplo, não havia uma razão decisiva, dois anos atrás, para se fazer um acontecimento do 20º aniversário da morte de Sartre. Mas havia a vontade de indicar, através de sua "reabilitação", que uma certa página fora virada. Como o marxismo e a revolução aos quais ele associou sua palavra e sua ação, para escândalo das pessoas cultas e de muitos de seus colegas, não causavam mais medo, era possível dissociá-lo, salientando, ao contrário, a independência do artista e a exigência do moralista que sempre o distinguiram das forças do mal, mesmo quando ele pareceu mais próximo delas. Foi possível integrá-lo à tradição nacional do escritor culto, amante da arte, mas também preocupado com a justiça e o bem comuns, oposta à cegueira dos clérigos seduzidos pelas sereias da teoria e da prática totalitárias.
Para Victor Hugo (1802-1885), a operação é aparentemente mais simples. A celebração do autor de "Os Miseráveis" parece enquadrar-se naturalmente numa atualidade política em que o novo governo francês assumiu como palavra de ordem a solicitude para a França "de baixo": fórmula suficientemente elástica para incluir o habitante das periferias vítima da delinquência, o padeiro artesão que fabrica pão à moda antiga, o pequeno empresário e o notável local. Jean Valjean foi um ladrão de pão, mais que padeiro, mas também, ao sair dos trabalhos forçados, patrão e prefeito de uma cidade industrial. Mas a comemoração de Victor Hugo se inscreve sobretudo na grande operação conduzida desde a queda do império soviético e o recuo do movimento social para contrapor uma boa tradição do intelectual moralista de anteontem, amante da justiça, do progresso social e da instrução pública, à má tradição do intelectual de ontem, adorador imoral das necessidades da dialética e das artimanhas da história.
Durante muito tempo esses republicanos do século 19, amantes da fraternidade humana e do progresso do povo através da instrução, foram objeto de homenagens ambíguas, em que a suspeita e a zombaria se misturavam à vontade.
Não foram somente os marxistas que zombaram desses republicanos ou socialistas sentimentais que dissimulavam por trás de grandes palavras as realidades nuas da luta de classes e acreditavam curar os males sociais por meio de sentimentos generosos e da instrução pública. Da mesma forma, os antimarxistas os censuravam: a ênfase com a qual eles denunciaram a miséria não havia criado essa atmosfera de compaixão pelos humildes que abriu a porta às ilusões igualitárias assassinas e favoreceu a complacência dos intelectuais para com os totalitarismos? Seus apelos à fraternidade universal não contribuíram também para desarmar a vontade das democracias diante de seus adversários? Em suma, enquanto o espectro do comunismo causou medo, esses fantasmas da grande fé fraternal e humanitária também foram suspeitos. A moral dos idealistas passava por cúmplice da brutalidade dos revolucionários realistas. Isso já era ironizado em "Os Miseráveis", na canção de Gavroche:

"Eu caí por terra,
A culpa é de Voltaire.
Com o nariz na sarjeta,
É culpa de Rousseau!"

Agora que o medo do comunismo está afastado, podemos reescrever e reavaliar a história. A moral, durante muito tempo associada à fuga cômoda diante dos compromissos da realidade e às complacências duvidosas para com as ilusões revolucionárias, hoje é reivindicada praticamente por todos os governantes, chefes militares e ideólogos como princípio de toda a sua ação. Da mesma forma, Voltaire e Rousseau, Hugo e Zola, hoje, podem ser o exemplo dos bons intelectuais, que denunciaram os abusos reais de seu tempo e defenderam os valores essenciais da civilização e da comunidade. Uma parte da classe intelectual francesa hoje canta louvores a esses heróis nacionais do pensamento universal, que ela opõe aos miseráveis pequenos intelectuais do século 20, assalariados ou subvencionados por governos democráticos e empenhados em negar a liberdade que estes lhes permitiram gozar e em cantar louvores ao totalitarismo.
A esses triunfos "post-mortem" soma-se, é verdade, uma inquietação meio fingida, meio séria. Aqueles que dez anos atrás comemoraram a vitória final da democracia liberal, dos direitos do homem e do indivíduo sobre as restrições ou os horrores do coletivismo, hoje mudam de tom. Segundo eles, hoje há direitos demais e deveres de menos, livre escolha individual demais e disciplina coletiva e união social de menos. O individualismo democrático, portanto, hoje colocaria a democracia em perigo. O remédio contra isso seria revitalizar a grande tradição da república educadora, ensinando a todos e a cada um a colocar suas reivindicações privadas atrás dos grandes valores universalistas e do sentido do elo comum a se preservar.
Esta é a hora do retorno aos pais fundadores da vida cívica, quer eles se chamem Thomas Jefferson ou Victor Hugo. Os nostálgicos do movimento social certamente têm uma interpretação mais cáustica desse retorno às grandes figuras do idealismo republicano. Se "Os Miseráveis" está novamente na ordem do dia é porque a miséria também está, porque a destruição neoliberal das formas de proteção e de solidariedade sociais faz novamente dela um assunto individual, objeto da solicitude dos pesquisadores sociais, das associações filantrópicas e dos homens de letras de coração largo.
Talvez pudéssemos contrapor a ambos que esse próprio coração largo não está livre de certas ambiguidades -e que são estas que fazem a atualidade do poeta. Victor Hugo pôde apresentar pessoalmente "Os Miseráveis" como um grande grito lançado contra a "degradação do homem pelo proletariado". Mas esse grito está longe de ser unívoco. Não somente porque ele divide a miséria em dois: um problema a ser resolvido pelos governos dos homens e um mistério confiado à providência divina. É sobretudo porque à compaixão pelas vítimas da ordem social se mistura um singular fascínio pelos subterrâneos obscuros dessa ordem. Por mais lírica que seja a descrição da morte heróica dos republicanos nas barricadas, sentimos o poeta mais interessado pelo episódio seguinte: Jean Valjean carregando o corpo de Marius ferido, mergulhando no "intestino de Leviatã", isto é, no grande esgoto parisiense.
O subsolo obscuro da cidade brilhante é para os políticos o mundo da miséria que denuncia a ordem social ou o reino da subversão que mina suas bases. Para o romancista, a "descida aos infernos" da sociedade é outra coisa: o mergulho nesse mundo subterrâneo que é a verdade secreta do outro, no universo da grande igualdade que sustenta a superfície das diferenças sociais e recebe seus farrapos. O esgoto, diz ele, é "a consciência da cidade", o "grande cínico" que diz tudo: a toga do juiz se arrasta perto de algo podre que foi a saia da empregada, a moeda de ouro ao lado do prego do suicida, ou esse fino lençol de marquesa que se tornou a mortalha de um revolucionário.
Essa grande desordem é diferente de uma curiosidade de esteta. É o emblema de outra igualdade, diferente daquela pela qual se combate nas barricadas. É também o emblema de uma nova idéia da arte. Esta por muito tempo decorou os palácios e serviu às festas dos grandes deste mundo. No tempo de Hugo, ela se dedica então a uma nova beleza: não a das conquistas do povo, mas a do esplendor inédito que nasce da própria decadência das antigas grandezas. Não é apenas porque agora, como disse Flaubert, não há mais distinção entre os sujeitos nobres e os sujeitos vis, e que uma pequena cidade da província normanda equivale a Constantinopla. É que, no próprio momento em que alguns anunciam a morte da arte anestesiada pela racionalidade cinzenta da ordem burguesa, esta descobre para si um novo território, infinitamente renovável: o território de todas essas vestimentas da grandeza ou opulências da mercadoria desprovidas de sua utilidade social e por isso dotadas de uma beleza inédita, feita de elementos contraditórios. Elas são ao mesmo tempo signos escritos onde se lê uma história, emblemas da melancolia das coisas inutilizadas e testemunhos do esplendor matizado, daquilo que existe sem porquê, como a rosa do místico.
É verdade que Hugo só se permite ir parcialmente ao encanto dessa beleza. Os capítulos dos "Miseráveis" sobre o subterrâneo às vezes beiram a esquizofrenia. O poeta descreve suntuosamente as paisagens fantásticas do esgoto, o reformador o interrompe para reclamar que se fertilizem os campos com esses excrementos desperdiçados na água dos rios. O primeiro se deixa fascinar pelas criações monstruosas dessa "língua de sapo" que é a gíria. O segundo o detém para pedir que os governantes distribuam com largueza as luzes da instrução, que dissiparão as trevas do crime e de sua língua. A posteridade seguiu mais francamente o caminho dessa descida ao inconsciente da sociedade e explorou o filão dessa nova beleza das coisas inutilizadas.
A poética surrealista dela se alimentou: passeios do "camponês de Paris" de Aragon por essas passagens parisienses abandonadas que são como a abertura dos infernos no coração da grande cidade moderna; fotografias de Brassaï dos grafites nos muros, que são as novas pinturas rupestres, ou dessas esculturas involuntárias constituídas por exemplo de um bilhete de ônibus enrolado; imagens feitas por Eli Lotar nos abatedouros; teorização por Walter Benjamin do "trabalho da dialética" na arquitetura antiquada dos templos desativados da mercadoria do século 19.
Recentemente um historiador da arte, Georges Didi-Huberman, tentou, em seu livro "Ninfa Moderna", acompanhar a passagem dos drapeados da escultura antiga às prateleiras de roupas de Christian Boltanski ou às fotografias feitas por Steve McQueen dos panos de chão enrolados nas sarjetas parisienses. E ele inscreveu naturalmente o esgoto de Hugo e seus panos atirados na lama como um momento forte nessa evolução, na transferência da antiga beleza das linhas puras e das atitudes nobres para essa beleza contemporânea suscetível de se manifestar em um monte de trapos inutilizados. Podemos discutir a tese, mas é razoável pensar que essa herança do autor de "Os Miseráveis" é mais atual e mais profunda que a outra.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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