São Paulo, domingo, 18 de agosto de 2002

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As cores e os riscos da alma


"PSIQUIATRIA, LOUCURA E ARTE" FAZ UM REGISTRO HISTÓRICO DAS PRÁTICAS E INSTITUIÇÕES ENVOLVIDAS NO TRATAMENTO DE DOENÇAS MENTAIS NO BRASIL


Isaias Pessotti

especial para a Folha

O título "Psiquiatria, Loucura e Arte" é sedutor. Insinua uma empolgante discussão sobre as múltiplas relações entre a loucura, entendida como conceito, e seu enfoque pela teoria psiquiátrica ou na acepção de doença (distúrbio ou transtorno) e seu tratamento pela psiquiatria, agora tomada como práxis clínica. Ademais, o título pode sugerir que a obra de arte pode ser uma expressão da loucura ou que o processo de criação artística implicaria alguma forma de desrazão, aparentada com a loucura. Mas o subtítulo do livro, "fragmentos da história brasileira", afasta todos esses temas. Em vez de ser uma discussão teórica ou epistemológica das relações complexas entre os três campos referidos, o livro é uma coletânea preciosa, mas heterogênea, de escritos fragmentários de registro histórico sobre iniciativas, instituições e personagens referentes à psiquiatria, loucura e arte, sobretudo no que se refere ao passado brasileiro. Como fragmentos, mesmo valiosos, eles não se prestam a uma apreciação conjunta e, por serem mais que tudo levantamentos históricos, dificultam uma apreciação doutrinária. Talvez o elo que os liga seja um certo modo de enxergar a psiquiatria, loucura e arte com o olhar de profissionais de saúde mental -como indica o primeiro texto, um relato da profícua evolução do Programa de Saúde Mental, criado em 1972, no âmbito da medicina preventiva, na USP. Apesar da objetividade e do rigor documental de todos os textos, nesse, como em outros, o interesse da discussão é muito menos teórico do que institucional e assistencial.

O papel social do louco
E esse interesse explicaria as alusões que fazem às complicadas relações entre a instituição psiquiátrica e o poder político, na esteira do pensamento de Foucault, a apontar a psiquiatria como instrumento de regulação e de repressão sobre o indivíduo. Como se o apego ao tratamento organicista (por vezes violento) e a atuação disciplinadora da instituição psiquiátrica visassem à legitimação científica (médica) e política da psiquiatria. Um pensamento até plausível se ignora, na evolução da psiquiatria, a distinção entre a dinâmica do saber, com sua lógica própria, e a dinâmica da assistência clínica institucional, esta sim condicionada por uma lógica do poder.
A definição do papel social do louco ou do pequeno psicopata ou do psiquiatra discutido em alguns textos do livro é, na verdade, um resultado híbrido dessas duas lógicas. Por isso, um programa social de assistência deve, necessariamente, equilibrar-se entre as definições e prescrições da ciência, de um lado, e as contingências legais e políticas, de outro.
Essa natureza híbrida da instituição psiquiátrica transparece nas muitas iniciativas assistenciais da nossa história, tal como a obra monumental que foi a criação e a organização modelar do hospício ou Hospital Psiquiátrico do Juquery, onde as mudanças nos métodos terapêuticos sempre seguiram de perto os avanços mundiais mais recentes, como mostra, com rica documentação, o segundo texto, um rigoroso estudo sobre as seis primeiras décadas da nossa psiquiatria clínica.
Num período em que o prestígio político e a autoridade científica de Franco da Rocha e a de Pacheco e Silva permitiam que o hospital seguisse mais de perto a lógica do saber psiquiátrico do que as injunções do poder.
Tanto é que as "verdades psiquiátricas" passaram a condicionar até a arquitetura de hospitais como o asilo-colônia do Juquery. É o que mostra o terceiro texto, ao analisar, com preciosa documentação, a arquitetura dos grandes hospitais psiquiátricos do passado.
O quarto texto discute a complicada posição de eminentes psiquiatras brasileiros diante da questão da higiene mental com vista aos "riscos" da imigração indiscriminada no país, nas primeiras décadas do século 20. Nele se discutem preciosas citações de discursos e projetos de lei destinados a conjurar o perigo de uma degeneração étnica ou racial no país. São documentos impregnados de uma preocupação eugenista que, pela lógica do saber, decorria linearmente da "teoria da degenerescência", de Morel, de 1857, e da tese das "loucuras hereditárias" das últimas décadas do século 19, amplamente aceitas entre os psiquiatras mais eminentes. Tal postura eugenista talvez não visasse nenhuma legitimação da psiquiatria, numa deferência ao poder, visto o já notório prestígio dos propugnadores da idéia tanto no plano político quanto no âmbito da ciência.
Mas, vista segundo uma lógica do poder, essa competência científica bem poderia estar a serviço dos interesses de alguma classe dominante. Principalmente quando a adesão -embora "científica"- à tese da eugenia se acompanhava de propostas claramente racistas.
É o que mostra, lucidamente, o quarto texto (por hipótese, o fato de diversos psiquiatras renomados terem apresentado propostas eugenistas ou mesmo racistas, como deputados constituintes nos anos 30, tanto pode significar submissão a interesses políticos, segundo uma dinâmica do poder, quanto um esforço de proteger a pureza da raça, como fidelidade à convicção teórica, segundo uma lógica do saber, já que a ameaça da degenerescência prenunciava catástrofes).
"Literatura e Loucura" é o tema do quinto texto, uma aguda e criteriosa análise das abordagens da loucura ou do louco através de personagens da nossa literatura, em obras de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Cornélio Pena e Clarice Lispector. É um texto que une competência crítica literária a uma rara clareza conceitual.
O sexto escrito, sobre os "Pequenos Psicopatas" na Primeira República, diverso dos demais, é menos um levantamento de fontes do que uma história das idéias. É uma arguta e elegante análise das mudanças determinadas pela evolução sociocultural na conotação dada ao menor desviante, que passa de versão infantil da demência a portador de anormalidade típica da infância, de criança anormal a menor transgressor ou criminoso, dali a "alma estragada" a ser corrigida e, finalmente, à de portador de anomalia mental, como "pequeno psicopata", coberto de traços negativos, encaminhado a uma seção especial no Juquery. É a análise mais crítica do livro.
O impacto de obras plásticas da chamada arte moderna sobre a cultura, com o seu eventual poder subversivo, é lucidamente discutido no último texto. Ali se mostra como a hostilidade do nazismo a essas obras valeu-se da rotulação de seus autores como loucos, seja pelo frequente primitivismo das obras, seja pela simplicidade quase infantil das figuras e traços.
Na verdade, o que talvez mais chocasse nessas obras fosse a subversão total das noções de tempo e de espaço. A ruptura dos modos usuais de perceber e dos critérios de beleza. São rupturas que, hoje, numa cultura de vertiginosa mudança de padrões estéticos, já não parecem loucuras. A ruptura de padrões tornou-se banal, normal. Apenas "um novo Führer" enxergaria como loucos, por exemplo, os pop stars do rock, com seus "grunhidos primitivos...".


Isaias Pessotti é escritor e ex-professor titular de psicologia da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto. É autor do romance "A Lua da Verdade" (ed. 34), entre outros.


Psiquiatria, Loucura e Arte
168 págs., R$ 25,00
Eleonora H. Antunes, Lúcia S. Barbosa e Lygia de França Pereira (orgs.). Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 374, 6º andar, CEP 05508-900, SP, tel. 0/xx/11/3091-4008).



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