São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005

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Eleições de hoje na Alemanha expõem o que a sincronia das crises no Sul, do modelo soviético e nos países centrais nos anos 80 já indicava -o Estado de Bem-Estar não passou de realização efêmera do pós-guerra

A ressaca do fordismo

Renato Stockler - 15.ago.2005/Folha Imagem
Linha de montagem de tapetes higiênicos para cães, em São Paulo


ROBERT KURZ
COLUNISTA DA FOLHA

Durante muito tempo pareciam bem definidas as fronteiras entre a miséria em massa e as relativas condições de bem-estar coletivo. A linha demarcatória separava essencialmente o Norte do Sul do planeta. Essa constelação foi, no entanto, apenas um produto da história depois da Segunda Guerra.
Nos centros capitalistas, a mobilização das indústrias fordistas desencadeou um impulso sem precedentes de ocupação em massa e acumulação de capital, vinculados à ascensão dos sindicatos e da social-democracia. A "mobilização automotiva" da sociedade ia a par com a construção crescente de uma rede de seguridade social (o Estado de Bem-Estar Social), especialmente profunda na Alemanha Ocidental e, em parte, na França. Até mesmo no espaço do liberalismo econômico tradicional anglo-saxão, os governos trabalhistas no Reino Unido e a "grande sociedade" do presidente Lyndon Johnson, nos EUA, na tradição do "New Deal", geravam novas estruturas sociais.
O sociólogo alemão Ulrich Beck descreveu a ascensão social na era fordista do pós-guerra como "efeito elevador": apesar das permanentes diferenciações sociais, a sociedade como um todo era elevada a um patamar superior. Os salários reais se multiplicavam, enquanto as jornadas de trabalho, de modo inverso, declinavam constantemente. A expectativa geral de vida aumentava para todos por meio de um sistema médico melhorado.
Foi essa prosperidade sem precedentes do Norte que se tornou o paradigma extremamente atrativo do "desenvolvimento" para os países do Sul. Nisso se manifestou um paradoxo histórico, pois, enquanto no Sudeste Asiático e na África ainda eclodiam as últimas guerras de descolonização, e, simultaneamente, nos países já descolonizados, articulavam-se os movimentos contra a dependência econômica da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, o paradigma do desenvolvimento dos centros capitalistas era ainda, contudo, o modelo a ser trilhado. Os ex-colonizados desejavam crescer nas formas sociais dos antigos senhores.


A expansão da crise foi apreendida de modo invertido, como se o capitalismo fosse o grande vencedor. Na realidade, a crise da terceira revolução industrial já vinha há muito minando o corpo social do capita- lismo original


Descolonização e esforços de independência econômica eram determinados pelo desejo de atingir, por conta própria, a almejada prosperidade fordista e seu correlato patamar de consumo de massa, mesmo quando, a contragosto da superpotência americana, mecanismos de capitalismo de Estado em moldes soviéticos fossem preferidos. Uma alternativa histórica para a mobilização do "trabalho abstrato" e da "riqueza abstrata", como Marx denominara a lógica do moderno sistema de produção de mercadorias, não foi, no entanto, cogitada em nenhuma parte.
Enquanto os centros capitalistas, em especial nos Estados Unidos, projetavam para fora uma imagem política inimiga para os movimentos sociais do Sul, estes importavam, ao mesmo tempo, as estruturas da reprodução capitalista: o moderno trabalho assalariado e a apenas aparente isonomia burguesa da relação entre os gêneros, bem como os padrões e a imaginação do consumo ou o modelo do "Welfare State". Independentemente de orientação política durante a Guerra Fria, os "milagres econômicos" no Japão e, sobretudo, na Alemanha, eram tidos como os modelos secretos.

A verdadeira crise
Mas a "era de ouro" fordista do pós-guerra permaneceu, no entanto, para os países pós-coloniais do Sul, uma miragem. A tarefa de criar uma industrialização recuperadora, um consumo de massa e um "Welfare State" deu certo apenas por um curto período e em fórmulas de segunda mão. A distância que os separava dos centros econômicos já era muito grande, os custos prévios do "desenvolvimento" revelaram-se muito altos. O resultado foi um endividamento externo crescente. Quando a terceira revolução industrial da microeletrônica aposentou o fordismo, os custos operacionais e sociais da inovação aumentaram de tal forma que não apenas os modelos de desenvolvimento nacionais do Sul quebraram mas também a parte do socialismo de Estado do Norte não o pôde mais acompanhar.
De fato, essa tendência ruinosa poderia ter se tornado claramente visível de duas maneiras: em primeiro lugar, a tentativa de imitação de formas industriais, socioeconômicas, da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, já fracassara para a maior parte da humanidade; em segundo lugar, com o fim da União Soviética e da Alemanha Oriental, a crise deste tipo de sociedade já havia penetrado o Norte globalizado e também tinha que atingir os seus próprios centros.
Em vez disso, a expansão da crise foi apreendida exatamente de modo invertido com os óculos dos velhos antagonismos, como se o capitalismo original fosse o grande vencedor da história e todos os retardatários tivessem que duplicar ou triplicar esforços na cópia desse modelo. Na perspectiva das regiões em colapso pela crise global, vigoravam ainda, no centro do capitalismo, aquelas supostas condições "paradisíacas" de prosperidade fordista, pelo menos se confrontadas com a própria miséria local. Mas isto era apenas uma ilusão de ótica.
Na realidade, a crise da terceira revolução industrial já vinha há muito minando o corpo social do capitalismo original. Já nos anos 1980, a "plena ocupação" fordista convertera-se num desemprego estrutural em massa. Por meio dos novos potenciais de inovação, o patamar desse desemprego estrutural aumentava de ciclo em ciclo. Rápida desativação de postos de trabalho e crescente subocupação constituem apenas o reverso da medalha de uma acumulação insuficiente de capital, do qual, em última instância, depende o "Welfare State". A rede social expandida do "boom" fordista começara a romper, executada por meio de contra-reformas neoliberais.

Schröder, a vanguarda liberal
Não é surpresa que Estados Unidos e Reino Unido, por meio da "reaganomics" e do thatcherismo, sejam seus predecessores e retornassem, dessa forma, apenas às suas respectivas tradições do mercado radical. Mas, na Europa continental, essas contra-reformas encontravam ainda resistência. Ainda nos anos 1990, os modelos de Estado de Bem-Estar francês e alemão, o assim chamado "capitalismo renano", eram considerados como uma alternativa à "revolução neoliberal" anglo-saxã.
O processo de crise da terceira revolução industrial supera, contudo, facilmente, todas as fronteiras nacionais, históricas e culturais. A lógica geral capitalista repousa mais fundo do que qualquer "modelo" político econômico específico. Mesmo o tão característico Estado do Bem-Estar Social alemão, que parecia construído para a eternidade, erodia-se irreversivelmente na era do chanceler conservador Helmut Kohl, nos anos 80 e 90. Nesse período, o desemprego atingia sobretudo as camadas menos qualificadas do mercado, pessoas de escolaridade incompleta e trabalhadores de fábrica sem formação técnica.
Quando a coalização vermelho-verde do chanceler Gerhard Schröder chegou ao comando, muitos acreditavam que o novo governo iria levar a sério as velhas reivindicações da geração de 1968 e deter o desmonte social, ou mesmo, em parte, revertê-lo. Mas foi exatamente o contrário o que aconteceu. A coalização vermelho-verde revelou-se, diante de renovados recordes de desemprego e sob a pressão da globalização, precisamente como a vanguarda dos cortes mais radicais e extensivos já empreendidos no sistema social.
Para se compreender o que está acontecendo na Alemanha, seria preciso detalhar de maneira clara um pano de fundo social. O desemprego atinge o país, como em outros centros capitalistas, cada vez mais: as camadas "qualificadas", técnicos, professores, assistentes sociais, advogados, médicos e parte do pequeno empresariado. É a derrocada das "novas classes médias".
O desemprego crescente das camadas médias não pode mais ser amortecido socialmente pelo Estado. A administração da crise capitalista obriga a se lançar mão de todas as formas de poupança privada, herança e patrimônio imobiliário; casas são leiloadas, melhores moradias têm que ser abandonadas por um aluguel mais baixo. A "gordura fordista" é consumida. Para dizer de maneira drástica: assim como no Terceiro Mundo, uma grande parte das camadas qualificadas e da inteligência vai sendo sucessivamente africanizada.
Uma minoria reduzida da sociedade fica insulada e, assim como nos Estados Unidos e nas megalópoles do Terceiro Mundo, surgem também na Alemanha aquelas perigosas "no go areas", de um lado, e guetos de luxo, de outro, com serviços privados de segurança, não apenas na capital Berlim. A miséria atingiu uma dimensão como nunca se viu na história alemã recente. E essa miséria, que sempre fora bem camuflada na Alemanha, começa cada vez mais a mostrar sua face: desabrigados já não passam mais despercebidos, bem como cada vez há mais crianças de rua. Por aqui, reconhecemos os pobres sobretudo pelas roupas amarrotadas e pelos dentes esburacados, já que o tratamento dentário e as obturações foram cortados da lista dos benefícios cobertos pelo seguro médico legal.
Na França e demais países da União Européia vão se consumando processos similares. A miséria social e econômica transformou-se de repente na grande crise da União Européia, cujo processo de integração parecia até há pouco irreversível. Nesse ínterim, as maiorias sociais empobrecidas e ameaçadas pela miséria enxergam no forte neoliberalismo do Comissariado Europeu apenas o instrumento da globalização, por meio do qual se destrói o bem-estar. Mas o "não" à Constituição neoliberal da União Européia não tem nenhum conteúdo libertador. Ele foi, em primeira linha, um retrocesso obstinado a posições racistas e nacionalistas no mais fundo rincão do centro social. Não se trata aqui da articulação de uma resistência social geral, mas de uma luta pelas linhas de demarcação da exclusão social.
Em primeiro lugar, a classe média qualificada declinante não quer se alinhar às camadas mais baixas e rebela-se em ser degradada ao nível destas. Em segundo, a miséria nacional de todas as classes volta-se contra os estrangeiros. Em terceiro, justamente entre acadêmicos e técnicos qualificados, o descenso social exprime-se também como crise da identidade masculina, que neles começa a se manifestar.
Neste clima reacionário em vez de emancipatório contra o neoliberalismo, as fronteiras entre direita e esquerda tornam-se cada vez mais fluidas. Uma dissidência de esquerda do Partido Social Democrata, sob a égide de seu antigo chefe Oskar Lafontaine, hoje fundida na mesma chapa ao Partido do Socialismo Democrático (PDS), que, por sua vez, era a sigla redenominada do antigo Partido do Estado da República Democrática Alemã, vem crescendo nas pesquisas de voto e tem boas chances nas eleições antecipadas.
Mas não se sabe bem ao certo o quanto de direita existe nessa esquerda. Lafontaine, com suas investidas contra os "trabalhadores estrangeiros" (uma palavra do jargão nazista), está angariando cada vez mais votos do espectro da direita radical hostil aos estrangeiros. Segundo uma pesquisa sociológica publicada em junho de 2005, pelo menos 20% dos membros dos sindicatos pensam de maneira anti-semita e nacionalista. Aquilo que para a esquerda tradicional vem sendo denominado como o início de uma nova "luta de classes" é, em grande parte, apenas a máscara do ódio da concorrência da classe média declinante que se refugia no neochauvinismo da crise da identidade masculina e no retorno à nostalgia nacional.
O declínio da Alemanha e a crise da União Européia devem oferecer ao Sul globalizado uma imagem tenebrosa. A ilusão ótica de uma riqueza durável e de um conforto pulverizam-se. Quanto mais o Terceiro Mundo se faz visível no Primeiro Mundo, torna-se cada vez mais questionável a orientação dos modelos sociais do centro capitalista. Não é mais o Norte que mostra ao Sul seu modelo de desenvolvimento, mas exatamente o contrário: o Sul mostra ao Norte o futuro da crise.
O mundo moderno do "trabalho abstrato" e da "riqueza abstrata" está à disposição na crise mundial do século 21. Uma nova perspectiva emancipatória para além do sistema de produção de mercadorias somente poderá ser atingida quando as tendências observadas em todas as partes a uma renacionalização ideológica forem radicalmente criticadas. O liberalismo obstinado das classes globalizadas, de um lado, e a nostalgia nacional das classes médias declinantes, por outro, não constituem nenhuma alternativa aceitável.

Robert Kurz é sociólogo alemão, autor de "Os Últimos Combates" (Vozes). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Galisi Filho.


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