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Um povo muito fofo
BRASIL TRAIU O FUTURO CALMO E MESTIÇO DE ZWEIG PARA SURPREENDER
O MUNDO COM PRÉ-SAL, COTAS E TV DE PLASMA PARA A CLASSE C
Austríaco fez esforço enorme para superar seus preconceitos, querendo gostar do que via
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HERMANO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Muitos livros antigos de ficção
científica nos
transmitem a
sensação,
acompanhada por tristeza leve
e deslocada, de um futuro que
poderia ter sido, mas que acabou escondido em alguma linha temporal paralela, situada
a anos-luz de nosso tempo real.
Fiquei assim melancólico ao
ler "Brasil - Um País do Futuro", em pleno 2009, quando
tanta gente insinua que nosso
futuro chegará até antes da
Olimpíada de 2016 -ou talvez
já tenha chegado.
Lembrei de editorial recente
da revista "Wallpaper" com decreto de quem está acostumado a ditar a moda:
"É óbvio, eles [os Brics: Brasil, Rússia, Índia e China] não
estão mais emergindo -eles já
emergiram muito bem e de
verdade, e em muitos aspectos
podem agora ser chamados de
"o novo establishment'".
Establishment, nós? E agora,
José Bonifácio de Andrada e
Silva?
Sim, o futuro anunciado por
Stefan Zweig não se parece
com nossa "pós-emergência"
atual. Chegamos ao futuro por
outro caminho, outra quebrada. Mesmo assim, de forma engraçada, a melancolia desencadeada pela leitura até me aproxima do brasileiro retratado
por Zweig.
Naquela época, a visão do
país como tristonho e pacífico
(na verdade, preguiçoso) era
lugar-comum.
Mas então tivemos que passar pela alegria estridente e pela violência urbana para virar
potência mundial? Traímos o
futuro calmo, sentimental e
mestiço anunciado em "Brasil
-Um País do Futuro" e agora
surpreendemos o planeta com
novos tempos de pré-sal, cotas
para afrodescendentes e consumo de TV de plasma pela
classe C?
As voltas que o futuro nos
dá... A "agenda" de Zweig era
bem diferente da nossa. Seu livro era um manifesto pacifista,
contra uma Europa destroçada
por guerra e racismo. Esses
males teriam sido causados
também por um excesso de "dinamismo" e "veemência".
Zweig precisava de um contraponto frugal para um mundo doente.
Sua receita de cura era um
desenvolvimento pacífico. E,
fascinado primeiro pelo Rio
-"não há cidade mais encantadora na Terra"-, quis encontrar no Brasil um "contentamento sereno", longe da agitação do capitalismo guerreiro
central.
Fico pensando se não foi
Zweig um dos principais responsáveis pelo tal mito da democracia racial. Muitas de suas
observações são ingênuas: "Tudo que é brutal repugna os brasileiros" ou "ao brasileiro é
alheio tudo o que é violência",
"sem visível ódio e inveja entre
raças e classes".
Multidão obscura
Gilberto Freyre, que muitas
vezes é acusado de ter uma visão doce das relações raciais no
Brasil, nunca escreveu nada semelhante. "Casa-Grande e Senzala" é povoado por descrições
horripilantes de violência de
senhores contra escravos.
Do seu lado, Zweig enxergava
um país sem crueldade, onde
vigorava a "expansão da cordialidade". O brasileiro cordial do
país do futuro era visto como
apenas cordial, fofo, como se a
crítica de Sérgio Buarque não
tivesse existido.
Precisamos dar um desconto: para alguém que fugia do
Holocausto e do ódio engendrados pelo mito da pureza/superioridade racial ariana, aportar onde "a palavra mestiço
aqui não é um insulto" -"quem
anda pelas ruas do Rio, vê numa
hora mais tipos mesclados e,
com efeito, já indeterminados,
do que noutra cidade num
ano"- deve ter parecido uma
viagem para outro planeta, ou
para um futuro desejado.
Por isso, Zweig precisava fazer um esforço gigantesco para
superar seus próprios preconceitos, querendo gostar daquilo
que via. Tanto que, em vários
momentos, seu texto apresenta
os tiques do etnocentrismo e do
evolucionismo cultural, pré-"Tristes Trópicos" [1955]. Por
exemplo: "Os elementos de sua
civilização são em sua totalidade importados da Europa".
Tudo de africano era incivilizado. E Zweig nem identificava
palavras de origem indígena
em nossa fala.
Tem horas em que parece
que o calor tropical o deixou
surdo. Ele não ouviu algazarra
nem na Festa da Penha. Ou teve a visão alucinada: encontrou
gente lendo por toda parte, ou
declarou: "Quase não existem
mendigos". Que futuro/passado estranho, alienígena!
Outras previsões foram bem
originais. Ao ter contato com
pobres, identificou uma "multidão mais baixa", "obscura",
sem "trabalho regulado", como
"uma das enormes reservas para o futuro".
E não é que ele estava com a
razão? Hoje essa gente deixou
de ter sua vida "pouco influenciada pelo progresso da técnica" e virou mercado de consumo apontado até na "The Economist" como chave para a recuperação da economia mundial pós-crise.
Uma gente dinâmica e barulhenta, acostumada tanto com
o metralhar de AR-15 quanto
com o subgrave do forró no
som automotivo, vira garantia
de futuro, muito além do fim da
história e de qualquer choque
de civilizações.
HERMANO VIANNA é antropólogo e pesquisador musical, autor de "O Mistério do Samba"
(ed. Jorge Zahar), entre outros livros.
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