São Paulo, domingo, 18 de outubro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um povo muito fofo

BRASIL TRAIU O FUTURO CALMO E MESTIÇO DE ZWEIG PARA SURPREENDER O MUNDO COM PRÉ-SAL, COTAS E TV DE PLASMA PARA A CLASSE C


Austríaco fez esforço enorme para superar seus preconceitos, querendo gostar do que via


HERMANO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Muitos livros antigos de ficção científica nos transmitem a sensação, acompanhada por tristeza leve e deslocada, de um futuro que poderia ter sido, mas que acabou escondido em alguma linha temporal paralela, situada a anos-luz de nosso tempo real.
Fiquei assim melancólico ao ler "Brasil - Um País do Futuro", em pleno 2009, quando tanta gente insinua que nosso futuro chegará até antes da Olimpíada de 2016 -ou talvez já tenha chegado.
Lembrei de editorial recente da revista "Wallpaper" com decreto de quem está acostumado a ditar a moda: "É óbvio, eles [os Brics: Brasil, Rússia, Índia e China] não estão mais emergindo -eles já emergiram muito bem e de verdade, e em muitos aspectos podem agora ser chamados de "o novo establishment'".
Establishment, nós? E agora, José Bonifácio de Andrada e Silva? Sim, o futuro anunciado por Stefan Zweig não se parece com nossa "pós-emergência" atual. Chegamos ao futuro por outro caminho, outra quebrada. Mesmo assim, de forma engraçada, a melancolia desencadeada pela leitura até me aproxima do brasileiro retratado por Zweig.
Naquela época, a visão do país como tristonho e pacífico (na verdade, preguiçoso) era lugar-comum. Mas então tivemos que passar pela alegria estridente e pela violência urbana para virar potência mundial? Traímos o futuro calmo, sentimental e mestiço anunciado em "Brasil -Um País do Futuro" e agora surpreendemos o planeta com novos tempos de pré-sal, cotas para afrodescendentes e consumo de TV de plasma pela classe C?
As voltas que o futuro nos dá... A "agenda" de Zweig era bem diferente da nossa. Seu livro era um manifesto pacifista, contra uma Europa destroçada por guerra e racismo. Esses males teriam sido causados também por um excesso de "dinamismo" e "veemência".
Zweig precisava de um contraponto frugal para um mundo doente. Sua receita de cura era um desenvolvimento pacífico. E, fascinado primeiro pelo Rio -"não há cidade mais encantadora na Terra"-, quis encontrar no Brasil um "contentamento sereno", longe da agitação do capitalismo guerreiro central.
Fico pensando se não foi Zweig um dos principais responsáveis pelo tal mito da democracia racial. Muitas de suas observações são ingênuas: "Tudo que é brutal repugna os brasileiros" ou "ao brasileiro é alheio tudo o que é violência", "sem visível ódio e inveja entre raças e classes".

Multidão obscura
Gilberto Freyre, que muitas vezes é acusado de ter uma visão doce das relações raciais no Brasil, nunca escreveu nada semelhante. "Casa-Grande e Senzala" é povoado por descrições horripilantes de violência de senhores contra escravos. Do seu lado, Zweig enxergava um país sem crueldade, onde vigorava a "expansão da cordialidade". O brasileiro cordial do país do futuro era visto como apenas cordial, fofo, como se a crítica de Sérgio Buarque não tivesse existido.
Precisamos dar um desconto: para alguém que fugia do Holocausto e do ódio engendrados pelo mito da pureza/superioridade racial ariana, aportar onde "a palavra mestiço aqui não é um insulto" -"quem anda pelas ruas do Rio, vê numa hora mais tipos mesclados e, com efeito, já indeterminados, do que noutra cidade num ano"- deve ter parecido uma viagem para outro planeta, ou para um futuro desejado.
Por isso, Zweig precisava fazer um esforço gigantesco para superar seus próprios preconceitos, querendo gostar daquilo que via. Tanto que, em vários momentos, seu texto apresenta os tiques do etnocentrismo e do evolucionismo cultural, pré-"Tristes Trópicos" [1955]. Por exemplo: "Os elementos de sua civilização são em sua totalidade importados da Europa". Tudo de africano era incivilizado. E Zweig nem identificava palavras de origem indígena em nossa fala.
Tem horas em que parece que o calor tropical o deixou surdo. Ele não ouviu algazarra nem na Festa da Penha. Ou teve a visão alucinada: encontrou gente lendo por toda parte, ou declarou: "Quase não existem mendigos". Que futuro/passado estranho, alienígena! Outras previsões foram bem originais. Ao ter contato com pobres, identificou uma "multidão mais baixa", "obscura", sem "trabalho regulado", como "uma das enormes reservas para o futuro".
E não é que ele estava com a razão? Hoje essa gente deixou de ter sua vida "pouco influenciada pelo progresso da técnica" e virou mercado de consumo apontado até na "The Economist" como chave para a recuperação da economia mundial pós-crise. Uma gente dinâmica e barulhenta, acostumada tanto com o metralhar de AR-15 quanto com o subgrave do forró no som automotivo, vira garantia de futuro, muito além do fim da história e de qualquer choque de civilizações.


HERMANO VIANNA é antropólogo e pesquisador musical, autor de "O Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar), entre outros livros.


Texto Anterior: Antislogan dos trópicos
Próximo Texto: Terra sem passado
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.