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Terra sem passado
APESAR DE SUA PERCEPÇÃO E ELOQUÊNCIA, STEFAN ZWEIG TRATA
A HISTÓRIA DO BRASIL COMO SE ELA NÃO HOUVESSE MUDADO DESDE 1500
Ele percebeu no Brasil a capacidade de negociação e a recusa em racializar a política e as relações humanas
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RONALDO VAINFAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Stefan Zweig era um
apaixonado pelo Brasil: sua beleza natural,
seus costumes, diversidades regionais, potencial econômico. No seu livro
de 1941, como consta do próprio título, considerava o Brasil
como o "país do futuro", quase
um modelo ideal de civilização.
Mas esse prognóstico de
Zweig não se baseava tanto na
história, ao menos na história
que conta no livro. Essa é uma
história convencional, com
narrativa concentrada nos três
séculos coloniais.
Começa com a viagem de Cabral, discutindo se o descobrimento foi ou não obra do acaso,
e prossegue com as capitanias
hereditárias, o governo geral, a
ação jesuítica, as invasões francesas e holandesas, o governo
de Nassau, a restauração, a Inconfidência Mineira...
O período imperial ocupa
poucas páginas, com ênfase no
processo abolicionista.
O republicano ocupa alguns
parágrafos.
O que Zweig leu para escrever sobre o Brasil colonial? Talvez a "Geschichte von Brasilien" ["História do Brasil", esgotado], do alemão Gottfried
Heinrich Handelmann, obra de
mais de mil páginas publicada
em 1860; a obra em três volumes de Robert Southey, "History of Brazil" (1810-1819)
[também publicado no país como "História do Brasil"].
Se Zweig lia bem em português, leu Varnhagen, "História
Geral do Brasil" (1854-1857),
quem sabe os "Capítulos de
História Colonial" (1907), de
Capistrano de Abreu. É impossível saber com exatidão suas
fontes.
Pouca coisa do passado brasileiro é utilizada para justificar seu futuro paradisíaco, salvo por uma ou outra passagem.
Sua tolerância para com os
índios é quase pueril: "Mesmo
esse uso canibalesco, porém,
não deriva de uma especial
crueldade de sua natureza; ao
contrário, esses bárbaros dão
ainda uma de suas filhas ao prisioneiro como esposa e o tratam muito bem até matá-lo".
Seria o caso de acrescentar:
ainda bem...
Perfeito acordo
Numa visão de conjunto, o
passado brasileiro contribui
para explicar seu futuro brilhante pela ausência ou pelo
amortecimento dos conflitos:
as passagens da colônia ao Império e deste para a República
tinham ocorrido "sem comoções intestinas".
Em resumo, segundo Zweig,
"em todas as suas formas, o
Brasil, em essência, nunca se
alterou, só se desenvolveu para
constituir uma personalidade
nacional cada vez mais forte e
mais consciente de si própria".
Se assim é, o Brasil não tinha
história: foi sempre o mesmo
de 1500 a 1941.
A grandeza social do Brasil
no futuro Zweig deduzia da
convivência entre raças distintas. Teria lido Carl Martius?
Gilberto Freyre? A introdução
do livro permite supor que tal
conclusão foi extraída de sua
experiência no país.
Nas palavras de Zweig:
"Segundo o modo de pensar
europeu, seria de esperar que
cada um desses grupos assumisse atitude hostil contra os
outros, os que haviam chegado
primeiro contra os que chegaram mais tarde, os brancos
contra os negros, os brasileiros
contra os europeus..."
"Com a maior admiração verifica-se que todas essas raças,
que já pela cor evidentemente
se distinguem umas das outras,
vivem em perfeito acordo entre
si e, apesar de sua origem diferente, porfiam apenas no empenho de anular as diversidades de outrora, a fim de o mais
depressa e o mais completamente se tornarem brasileiras,
constituindo nação nova e homogênea."
O futuro do Brasil era promissor, segundo Zweig, porque
seu presente era digno, e seu
passado quase incruento, em
contraste com uma Europa dilacerada pela guerra e obcecada
em criar, sobretudo na Alemanha, "seres humanos puros, como cavalos de corrida ou cães
de exposição".
Jogo duro
Zweig idealizava o Brasil:
passado, presente e futuro.
Acaso desconhecia que o governo Vargas havia deportado
Olga Benário para a Alemanha
nazista? Ignorava o jogo duro
do governo no acolhimento de
refugiados judeus, como mostra Maria Luiza Tucci Carneiro
em "O Antissemitismo na Era
Vargas"? [ed. Perspectiva]
Não faltou, aliás, quem acusasse Zweig de servir lealmente
ao Estado Novo [1937-45],
mesmo antes da inclinação do
governo pelos Aliados -o que
só ocorreria em agosto de 1942.
Mas Zweig percebeu, e proclamou com eloquência, duas
características muito especiais
da história brasileira: a capacidade de negociação dos grupos
em conflito e a recusa da sociedade em racializar a política e
as relações humanas.
Saindo de cena
Afinal, seria impensável, no
Brasil, qualquer coisa parecida
com campos de extermínio, sistemas de apartheid ou organizações como a Ku Klux Klan.
A intuição de Zweig é, nesse
ponto, excelente -ele, que conheceu de perto a que ponto as
políticas racialistas podiam
chegar.
Zweig não esperou, porém,
para ver o futuro portentoso do
Brasil. O presente era muito
doloroso e implacável. Suicidou-se em 1942, um ano depois
de seu livro ufanista, meses antes de o Brasil entrar na guerra
contra o nazismo.
RONALDO VAINFAS é professor de história na
Universidade Federal Fluminense e autor do "Dicionário do Brasil Imperial" (ed. Objetiva).
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