São Paulo, domingo, 18 de outubro de 2009

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Terra sem passado

APESAR DE SUA PERCEPÇÃO E ELOQUÊNCIA, STEFAN ZWEIG TRATA A HISTÓRIA DO BRASIL COMO SE ELA NÃO HOUVESSE MUDADO DESDE 1500


Ele percebeu no Brasil a capacidade de negociação e a recusa em racializar a política e as relações humanas


RONALDO VAINFAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Stefan Zweig era um apaixonado pelo Brasil: sua beleza natural, seus costumes, diversidades regionais, potencial econômico. No seu livro de 1941, como consta do próprio título, considerava o Brasil como o "país do futuro", quase um modelo ideal de civilização.
Mas esse prognóstico de Zweig não se baseava tanto na história, ao menos na história que conta no livro. Essa é uma história convencional, com narrativa concentrada nos três séculos coloniais.
Começa com a viagem de Cabral, discutindo se o descobrimento foi ou não obra do acaso, e prossegue com as capitanias hereditárias, o governo geral, a ação jesuítica, as invasões francesas e holandesas, o governo de Nassau, a restauração, a Inconfidência Mineira...
O período imperial ocupa poucas páginas, com ênfase no processo abolicionista. O republicano ocupa alguns parágrafos.
O que Zweig leu para escrever sobre o Brasil colonial? Talvez a "Geschichte von Brasilien" ["História do Brasil", esgotado], do alemão Gottfried Heinrich Handelmann, obra de mais de mil páginas publicada em 1860; a obra em três volumes de Robert Southey, "History of Brazil" (1810-1819) [também publicado no país como "História do Brasil"]. Se Zweig lia bem em português, leu Varnhagen, "História Geral do Brasil" (1854-1857), quem sabe os "Capítulos de História Colonial" (1907), de Capistrano de Abreu. É impossível saber com exatidão suas fontes.
Pouca coisa do passado brasileiro é utilizada para justificar seu futuro paradisíaco, salvo por uma ou outra passagem. Sua tolerância para com os índios é quase pueril: "Mesmo esse uso canibalesco, porém, não deriva de uma especial crueldade de sua natureza; ao contrário, esses bárbaros dão ainda uma de suas filhas ao prisioneiro como esposa e o tratam muito bem até matá-lo". Seria o caso de acrescentar: ainda bem...

Perfeito acordo
Numa visão de conjunto, o passado brasileiro contribui para explicar seu futuro brilhante pela ausência ou pelo amortecimento dos conflitos: as passagens da colônia ao Império e deste para a República tinham ocorrido "sem comoções intestinas". Em resumo, segundo Zweig, "em todas as suas formas, o Brasil, em essência, nunca se alterou, só se desenvolveu para constituir uma personalidade nacional cada vez mais forte e mais consciente de si própria".
Se assim é, o Brasil não tinha história: foi sempre o mesmo de 1500 a 1941. A grandeza social do Brasil no futuro Zweig deduzia da convivência entre raças distintas. Teria lido Carl Martius? Gilberto Freyre? A introdução do livro permite supor que tal conclusão foi extraída de sua experiência no país.
Nas palavras de Zweig: "Segundo o modo de pensar europeu, seria de esperar que cada um desses grupos assumisse atitude hostil contra os outros, os que haviam chegado primeiro contra os que chegaram mais tarde, os brancos contra os negros, os brasileiros contra os europeus..."
"Com a maior admiração verifica-se que todas essas raças, que já pela cor evidentemente se distinguem umas das outras, vivem em perfeito acordo entre si e, apesar de sua origem diferente, porfiam apenas no empenho de anular as diversidades de outrora, a fim de o mais depressa e o mais completamente se tornarem brasileiras, constituindo nação nova e homogênea."
O futuro do Brasil era promissor, segundo Zweig, porque seu presente era digno, e seu passado quase incruento, em contraste com uma Europa dilacerada pela guerra e obcecada em criar, sobretudo na Alemanha, "seres humanos puros, como cavalos de corrida ou cães de exposição".

Jogo duro
Zweig idealizava o Brasil: passado, presente e futuro. Acaso desconhecia que o governo Vargas havia deportado Olga Benário para a Alemanha nazista? Ignorava o jogo duro do governo no acolhimento de refugiados judeus, como mostra Maria Luiza Tucci Carneiro em "O Antissemitismo na Era Vargas"? [ed. Perspectiva] Não faltou, aliás, quem acusasse Zweig de servir lealmente ao Estado Novo [1937-45], mesmo antes da inclinação do governo pelos Aliados -o que só ocorreria em agosto de 1942.
Mas Zweig percebeu, e proclamou com eloquência, duas características muito especiais da história brasileira: a capacidade de negociação dos grupos em conflito e a recusa da sociedade em racializar a política e as relações humanas.

Saindo de cena
Afinal, seria impensável, no Brasil, qualquer coisa parecida com campos de extermínio, sistemas de apartheid ou organizações como a Ku Klux Klan. A intuição de Zweig é, nesse ponto, excelente -ele, que conheceu de perto a que ponto as políticas racialistas podiam chegar.
Zweig não esperou, porém, para ver o futuro portentoso do Brasil. O presente era muito doloroso e implacável. Suicidou-se em 1942, um ano depois de seu livro ufanista, meses antes de o Brasil entrar na guerra contra o nazismo.


RONALDO VAINFAS é professor de história na Universidade Federal Fluminense e autor do "Dicionário do Brasil Imperial" (ed. Objetiva).


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