São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001 |
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+ brasil 502 d.C. A coroa e a estrela
Sergio Paulo Rouanet
É quase supérfluo dizer que o outro campo se caracteriza por um desprezo maior ainda pelos princípios da modernidade emancipatória. A autonomia econômica dos povos islâmicos, alguns dos quais, como os afegãos, estão entre os mais pobres do mundo, não é exatamente uma tarefa urgente para os bilionários que usam para financiar a guerra santa a fortuna adquirida por meio de negócios com o Ocidente. Os terroristas são agentes de uma ideologia religiosa de extrema direita, que apaga as fronteiras de classe e nesse sentido funciona como ópio do povo, na mais pura acepção marxista. É uma simples coincidência, mas que não deixa de ter seu simbolismo, que seja justamente o ópio o principal artigo de exportação dos talebans. A autonomia política é a menor das preocupações dos grupos que operam através de uma tirania teocrática, exercida sobre adeptos fanatizados. Seu apreço pela autonomia cultural se manifesta na destruição de tesouros artísticos do passado e na exclusão das mulheres do mundo do trabalho e da educação. Nunca houve repúdio mais brutal à conquista decisiva da modernidade cultural, o secularismo. Os emires, que cultivavam as letras e as artes na Espanha mourisca, ou o sultão Saladino, que na época das Cruzadas dava lições de civilização aos bárbaros que vinham da Europa, teriam corado de vergonha com o obscurantismo dos que ousam hoje em dia falar em nome do Profeta. A barbárie tecnificada Diante disso, o que fazer? Aceitar as tendências atuais, reduzindo a modernidade apenas a seu vetor funcional e considerar irreversível a perda do vetor emancipatório? Seria a conjunção da funcionalidade com a heteronomia, uma "high-tech" de guerra das estrelas associada ao fundamentalismo. Teríamos uma barbárie tecnificada, soldados de Deus aniquilando-se mutuamente com armas nucleares, entre foguetes intercontinentais e cânticos religiosos. Seriam os mulás abençoando aviões-bomba em nome de Alá, e os televangelistas americanos inaugurando porta-aviões atômicos ao som de "God bless America" ou "Onward, Christian Soldiers". Repudiar, de todo, a modernidade, anulando, também, as conquistas da modernidade funcional? Nesse caso teríamos uma bela harmonia pré-moderna, uma totalidade não-dividida, regida por dois arcaísmos sincrônicos, o tecnológico e o ideológico, corporificando-se em duas utopias retrospectivas, a utopia heróica de guerreiros de armadura partindo para liberar o Santo Sepulcro aos gritos de "Deus o quer" e a utopia bucólica de camponeses cultivando a terra com um arado e rezando o ângelus ao pôr-do-sol. Não, é preciso recompor a modernidade truncada, revitalizando a dimensão da autonomia. A modernidade é bifronte, ao mesmo tempo funcional e emancipatória, e assim deve permanecer. Sua divindade tutelar é Jânus, com seus dois rostos, e não Polifemo, com seu olho único. Como chegar a esse resultado? "Camiñero, no hay camiño", escreveu Antonio Machado, "el camiño se hace marchando". Mas construir seu próprio caminho não significa ausência de meta. Os meios são incertos, mas o fim é claro. Caminhar às cegas é próprio do fanático, aquele andarilho que, segundo Santayana, acelera o passo no momento em que perde de vista o objetivo. O fim é a autonomia, integral e para todos. Quanto aos meios, só uma coisa é certa: nada será alcançado se não vislumbrarmos, no fim da jornada, uma democracia mundial, que dê substância ao ideal iluminista da autonomia. Isso significa que o destino de países como o Brasil será decidido sobretudo por seu povo, e não por fundamentalistas islâmicos ou texanos. E significa que a potência hegemônica não terá o direito de usar Colts 45 (ou seus equivalentes modernos) para implantar na terra a lei e a ordem. O bonapartismo presidencial não pode ser comparado ao imperial, mas, diferenças de estilo e personalidade à parte, os dois Césares têm uma coisa em comum: nenhum recebeu um mandato para refazer o mundo. Foi o próprio Napoleão quem pôs a coroa em sua cabeça, e foi o próprio presidente dos Estados Unidos que se outorgou a estrela de xerife. Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.". Texto Anterior: Nelson de Oliveira Próximo Texto: + memória: Mário Pedrosa e o olhar dos espiões Índice |
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