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"Uma Janela em Copacabana" afirma Luiz Alfredo Garcia-Roza como um mestre do romance policial e um dos grandes nomes da literatura brasileira atual
A cultura do crime
Arthur Nestrovski
Articulista da Folha
Chegou à conclusão de que perdera simultaneamente o passado e
o futuro e procurava o sentido do
presente." Isso acontece, não
chega a ser raro; mas também não é a reflexão que se espera de um delegado de
romance policial, no caminho entre a sua
casa e a 12ª DP, em Copacabana, depois
de uma visita a um sebo. Mas nem todo
delegado se chama Espinosa, nome bom
demais para ser verdade. E é verdade:
uma das mais inesperadas e benquistas
verdades da literatura brasileira recente,
renovada neste quarto livro de Luiz Alfredo Garcia-Roza.
Era o filósofo Theodor Adorno quem
dizia, de Proust, que ele não cometia jamais a deselegância de fazer o leitor se
sentir mais inteligente que o autor. A frase poderia ser adaptada para a ficção de
Garcia-Roza. Faz cada um de nós se sentir mais inteligente do que é, mais experiente, mais vivido, mais afinado com as
percepções, e nem por isso vacila no
exercício de sua própria e
superior sabedoria. Que o
prazer de pensar se confunde, aqui, com a habitação de uma sensibilidade
só reforça o caráter literário até os ossos desse
grande estilista -sem nenhum favor, um dos
grandes mestres internacionais do romance policial.
Que Garcia-Roza, como se sabe (está
na orelha dos livros), foi professor titular
de teoria psicanalítica e escreveu oito livros acadêmicos seria o bastante para ler
os policiais com um pé atrás. A proximidade entre detetives e psicanalistas é óbvia; e barata. E o nome Espinosa, por si,
acende outra luz de alerta: aludir assim
explicitamente ao filósofo do pensamento livre, do raciocínio levado às últimas
consequências e da ética como campo
humano da experiência seria motivo
mais que provável para dar tudo errado.
O fato de que há gente hoje querendo ir
ao Rio só para conhecer o bairro Peixoto
(como há outros que vão visitar o Catete
de Machado de Assis) dá a medida do
acerto da mistura, onde as forças se somam não para compor uma tese, mas
para elaborar o sedutor enigma de um
homem chamado Espinosa, delegado
carioca.
O encantamento de lugar é uma das
tantas marcas do gênero policial, que
Garcia-Roza pratica com desenvoltura.
"Uma Janela em Copacabana" não é só a
história de uma janela mas a mesma concentração de sentidos num ponto particular do espaço, que anima a ficção de
mistério desde o início do século 19 e ressurge aqui associada a... uma janela em
Copacabana. Janela onde certo crime é
observado por certa mulher, no início do
livro, e que funciona como um ímã para
a espiral de encontros e desencontros da
história.
"O máximo de visibilidade" e ao mesmo tempo "o máximo de cegueira": não
soa como uma lei do inconsciente? Já no
primeiro romance, "O Silêncio da Chuva" (1996), a mesma idéia era crucial,
tanto do ponto de vista psicanalítico
quanto criminalístico. E mais uma vez
nosso autor tem o cuidado natural e o talento trabalhado de não fazer de cada
descrição uma alegoria. A janela é uma
janela. O que não significa que seja fácil
de interpretar, para o delegado.
É bem verdade que Espinosa "sentia-se
como um ficcionista cujos personagens
eram as pessoas reais que encontrava",
observação que merece ser comparada
com a afirmativa, na página de créditos,
de que "os personagens e situações desta
obra são reais apenas no universo da ficção". Nessa hora, certa vertigem pode tomar conta do leitor. Mas não é a vertigem
da loucura; é a vertigem da leitura.
Certas criaturas da ficção, bem entendido, são presenças muito mais reais na
vida do que outras tantas, que se encontram sonambulisticamente fora dos livros. Exemplo próximo de nós: o delegado Espinosa, às voltas com seus livros
empilhados, seu carro sem bateria e sua
torradeira que só queima um lado do
pão, envolvido diariamente com seu assistente Welber (dublê "real" de Sancho
Pança ou Dr. Watson) e, em ritmo picado (mutuamente conveniente), com a
quase perfeita Irene, ex-amante de Olga,
uma das vítimas no livro anterior, "Vento Sudoeste" (1999).
Toda a graça delicada dos pequenos incômodos do dia-a-dia confere ao romance uma aura particular, reconhecível pelo visitante que volta com gosto à
prosa de Garcia-Roza. Nenhum detalhe é
insignificante, nem para o delegado,
nem, com outro sentido, para nós. Não
há nenhuma ingenuidade da parte de Espinosa, nem para interpretar sinais dos
outros, nem para avaliar seus próprios
sintomas. Vale dizer que o autor respeita
seu personagem como respeita o leitor.
Se um e outro se vêem traídos depois, isso, como diria Espinosa (o filósofo, não o
delegado), talvez seja uma inevitabilidade na ordem natural das coisas.
No romance, ao menos, a ordem das
coisas tem um ritmo composto; e o tempo da escrita aqui se deixa modular flexivelmente pelo tempo e pelo clima da cidade. Nem rápido demais, nem devagar
demais. Os avanços da história se deixam interromper por calmarias e planuras. Certa lógica de coincidências, certos
curtos-circuitos de entendimento fazem
homenagem à arte dos precursores (de
Sófocles a Cornell Woolrich), que sempre extraíram o máximo das torções e retroversões de uma história. Mas sem
exageros de sobredeterminação: só psicanalista de revista feminina vê sentido
definido em tudo, ou então detetive de
TV. No bairro Peixoto, estamos noutro
mundo ("crime também é cultura", comenta Espinosa, para um Welber pasmado pela ironia).
Mulheres em "e" A cultura do crime tinha acento mais baixo em "Achados e Perdidos" (1998); mas o policialato
corrupto se expõe de novo aqui, em contraponto com figuras do primeiro escalão da equipe econômica do governo e
uma sucessão de mulheres em "e": Celeste, Serena, Irene. Somando Espinosa e
Welber, é um verdadeiro mundo da segunda vogal, percorrendo as hieroglíficas ruas do Rio em busca de certezas e felicidades ("certeza não é verdade").
E os assassinos? E os assassinatos? E as
testemunhas? Não se conta isso numa resenha de romance policial. Nem têm tanta importância. Acidentes e crimes são só
um arcabouço para que o cenário humano venha se formar mais uma vez. E que
prazer enorme habitar esse bairro de novo, a despeito de todos os abusos e aberrações que Garcia-Roza nos faz ver, com
um olhar que não chega a ser de denúncia, mas não renega a escola de realismo
à qual dedicou, afinal, os primeiros 60
anos de vida. De lá para cá, foram mais
três livros. Fazem dele hoje um dos nomes de frente da nossa literatura, só limitado pelas contingências do gênero que
escolheu modestamente praticar.
Arthur Nestrovski é professor titular de literatura
na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autor de "Notas Musicais" (Publifolha, 2000) e organizador de "Figuras do Brasil - 80 Autores em 80
Anos de Folha" (no prelo).
Uma Janela em Copacabana
216 págs., R$ 26,00
de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Companhia das
Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32,
CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3846-0801).
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