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+ Sociedade
Heroísmo de massa
Maior impacto dos 40 anos da morte de Che do que os 90 anos da Revolução Russa revela os mecanismos
da cultura popular
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Este ano registrou, com
um intervalo de tempo muito pequeno,
dois aniversários que,
sobretudo para a esquerda, são muito significativos. De um lado, 40 anos da
morte de Ernesto Che Guevara. De outro, 90 anos da Revolução Russa. Em comum, o tema da revolução, da radical
mudança de rumo.
Contudo as repercussões
dessas datas foram bem diferentes. Che Guevara foi lembrado, nem sempre positivamente, em programas de TV,
em artigos, em reportagens. Já
o 90º aniversário da Revolução
de 1917 passou quase despercebido; apenas umas poucas pessoas participaram de uma demonstração em Moscou.
No entanto, do ponto de vista histórico, a revolução, ainda
que seja agora simples lembrança, teve conseqüências
muitíssimo maiores, e isso ao
longo de quase todo o século
20. Guevara participou na Revolução Cubana, que também
foi acontecimento marcante,
mas, quando morreu, era um
guerrilheiro que liderava apenas um pequeno grupo de insurgentes. A insurreição que
tentou desencadear na Bolívia
se revelou um fracasso.
No entanto a sua figura continua presente, em camisetas,
em pôsteres, em livros. Não são
poucos os que repetem a sua
conhecida frase: "Hay que endurecer, pero sin perder la ternura". Pergunta: como é possível que um homem seja mais
lembrado do que um um gigantesco movimento envolvendo
milhões de pessoas e que correspondia à histórica aspiração
de justiça e igualdade?
Resposta: é exatamente porque se trata de um homem, de
um único homem. Revolucionário para muitos, vilão para
outros, Guevara é a imagem do
lutador solitário, do mártir, do
herói. E nosso mundo precisa
de lutadores solitários, de heróis e de mártires.
Se Guevara tivesse sido um
vencedor, sua imagem seria diferente. E também seria diferente se houvesse morrido de
morte natural. Heróis não
morrem na cama. Morrem, como dizem os americanos, "with
their boots on", com as botas
calçadas, isto é, em combate.
Teoria e práxis
A Revolução Russa teve poucos heróis. Quando Lênin chegou do exílio para chefiar os
bolcheviques, rodeava-o uma
aura lendária, mesmo porque
era um grande orador, desses
que arrebatam as multidões.
Mas Lênin era, antes de mais
nada, um teórico e um político,
e foi pela teoria e pela práxis
política que se consagrou. Seu
sucessor poderia ser Leon
Trótski, como ele um líder vibrante mas também um homem muito mais envolvido
com manobras políticas.
Mas quem assumiu o poder
foi o enigmático Stálin, que
mandou matar o seu rival e
muitos outros inimigos. Stálin
estava longe de parecer um herói, de modo que a propaganda
oficial tratou de transformá-lo
num ídolo, mediante aquilo
que ficou conhecido como culto à personalidade.
A União Soviética e os países
comunistas eram redutos de
poder militarizado. A regra era
o chamado coletivismo ideológico: todos os comunistas deveriam, mediante férrea disciplina partidária, pensar igual e
agir como o grande pai Stálin.
Fanatismo? Certamente,
mas o comunismo proporcionava a seus adeptos um esquema de pensamento e um amparo emocional aos quais era difícil renunciar. Essa crença quase religiosa não resistiu aos fatos. Em 1956, Kruschev denunciou os crimes do stalinismo.
Seguiram-se os sucessivos
fracassos econômicos do regime, resultantes em grande parte da economia de guerra que
os governos comunistas se
viam forçados a adotar para enfrentar a ameaça representada
pelos Estados Unidos e seus
aliados e também para fortificar seu próprio poder.
Os taciturnos líderes comunistas estavam cada vez mais
longe da figura do herói clássico. Por fim o comunismo ruiu.
Parafraseando o escritor T.S.
Eliot, acabou, não com um estrondo, mas com um gemido.
Poucos lamentam a queda do
comunismo, mas muitos choram por Guevara. Por quê? O
motivo está sintetizado no título de um álbum lançado pela
banda Megadeth em 2001, "O
Mundo Precisa de Heróis".
Roqueiros sabem interpretar
as ocultas motivações da cultura popular. Guevara corresponde ao mítico herói que vive na
fantasia das pessoas.
O comunismo não quis ou
não soube ou não pôde produzir esses heróis. É por isso que
Guevara é mais lembrado que a
Revolução Russa.
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