|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Natureza em construção
PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE CHICAGO, MARSHALL SAHLINS FALA DE SUA EXPERIÊNCIA COM NATIVOS DA OCEANIA E COMPARA A GUERRA DO IRAQUE AOS CONFRONTOS ENTRE ESPARTA E ATENAS
FRANÇOIS ARMANET
GILLES ANQUETIL
M
arshall Sahlins,
76, é professor
emérito da Universidade de
Chicago. Colaborador de Claude Lévi-Strauss nos anos 1960, Sahlins
é considerado o maior antropólogo americano vivo.
Ele é autor de livros como
"História e Cultura" (ed. Jorge
Zahar) e "Esperando Foucault,
ainda" (Cosacnaify).
Especialista nas culturas do
Pacífico, conservou seu espírito de contestador, forjado com
a Guerra do Vietnã, como se verifica na entrevista abaixo.
Sahlins também fala da
Guerra do Iraque e a compara
aos confrontos entre Atenas e
Esparta, na Antigüidade.
PERGUNTA - De origem russa, o sr.
nasceu em Chicago, berço de uma
grande escola da antropologia norte-americana. De onde lhe veio o
gosto por essa disciplina?
MARSHALL SAHLINS - A Universidade de Chicago de fato foi berço de uma grande escola de antropologia, mas quando cheguei a ela, em 1973, esse movimento já tinha envelhecido.
Foi a escolha de Radcliffe-Brown para uma cadeira de
professor, nos anos 1930, que
fez de Chicago o posto avançado, nos EUA, da antropologia
social britânica, ao preço de várias conciliações com a cultura
local, como é o caso nesse gênero de situação colonial.
A universidade ficava no
South Side, um bairro que,
além da equipe de beisebol rival, abrigava judeus alemães
bastante esnobes, mais cultos e
ricos que os judeus originários
da Europa Oriental que viviam
no West Side. A gente não se
misturava.
Sempre faço questão de
acrescentar que tive uma criação inteiramente laica numa
família não-praticante.
Quanto à política, minha família não era filiada a nenhum
partido, mas minha mãe admirava Emma Goldman [1869-1940, militante anarquista] e,
durante o levante russo de
1905, quando ainda era criança,
chegou a transportar folhetos
revolucionários escondidos em
sua mala escolar!
Havia, portanto, afinidades
entre esse meio de imigrantes
esquerdistas do Meio-Oeste
americano e as teorias antropológicas de Leslie White [1900-75], que foi meu mentor na
Universidade de Michigan.
White era um dos grandes "intelectuais orgânicos" contestatários que a América rural e das
pequenas cidades produziu na
primeira metade do século 20,
entre os quais figuram também
Thorstein Veblen, Clarence
Ayres, Charles Beard e C.
Wright Mills.
Eles eram, por assim dizer, os
ateus da aldeia: universitários
marginais em revolta contra os
exploradores, as classes dominantes, os dogmas ideológicos
da sociedade americana.
PERGUNTA - Em 1965, em plena
Guerra do Vietnã, o sr. lançou o primeiro "teach-in" [manifestação em
forma de aula] dos EUA. Poderia nos
relatar essa experiência e o papel
que esse evento exerceu em seu
pensamento?
SAHLINS - Lancei a idéia de um
"teach-in", em oposição ao projeto inicial de "teach-out" lançado por cerca de 20 professores, que teria consistido em
suspender as aulas para organizar debates sobre a Guerra do
Vietnã, fora do campus.
Diante das críticas virulentas
de nossos colegas, propus, então, que ocupássemos as salas
de aula após as aulas, fizéssemos "teach-ins" e criticássemos a guerra até tarde da noite.
É verdade que eu talvez tivesse uma predisposição para as
oposições binárias, pois nos
anos 1960 os americanos estavam se apaixonando por [Claude] Lévi-Strauss.
Mas existiam, também, condições estruturais mais gerais,
especialmente o abismo de gerações, que se aprofundava
nessa época: os estudantes, que
até então vinham sendo aprendizes de adultos burgueses, começavam a imitar a classe operária -Levi Strauss, os jeans,
não os livros!
No pós-guerra havia apenas
um tipo de música popular que
estava na moda nos EUA, e era
apreciada igualmente por adultos e adolescentes. Então surgiram Elvis e os Beatles, comprovando que Confúcio e Platão tinham razão ao se preocuparem
com a relação entre a música e a
harmonia política.
De fato, já existiam na juventude americana movimentos
contraculturais e contestatários dignos desse nome antes
mesmo da intensificação do
conflito no Vietnã, em fevereiro de 1965.
Ao reavaliar o papel que desempenhei nessa conjuntura,
cheguei à conclusão de que o
papel histórico dos indivíduos
autoriza a si próprio uma estrutura -ou seja, uma posição no
interior de um sistema, mesmo
se essa posição não basta para
determinar o que eles farão.
O poder coletivo pode encarnar-se em um indivíduo: seja
por uma iniciativa feliz e oportuna -como no caso dos
"teach-ins", que tiveram grande sucesso-, seja pela autoridade constituída do indivíduo
agindo na condição de dirigente designado de uma coletividade estruturalmente organizada
para refletir e fazer ouvir tudo o
que um George W. Bush pode
fazer ou suportar.
Em todos os casos, porém, se
esse indivíduo determina o
destino da coletividade, esta,
por sua vez, não determina sua
própria individualidade. Como
diz Sartre, o grupo é obrigado a
se realizar, da mesma maneira
como se deixa personificar.
De maneira geral, na esteira
da Guerra Fria, a Guerra do
Vietnã exerceu impacto considerável sobre praticamente todas as disciplinas universitárias
nos EUA. Considerações políticas e estratégicas afetaram ou
até mesmo ditaram a escolha
das pesquisas científicas a serem empreendidas, das línguas
a serem ensinados, das regiões
do mundo a serem estudadas.
Se consideramos até que
ponto a Guerra Fria impregnou
todos os campos de reflexão, a
época se prestava idealmente
ao pensamento de Foucault,
que, também ele, enxergava o
poder por toda parte.
Globalmente, as ciências humanas e as letras optaram por
combater os poderes instituídos, desenvolvendo uma crítica
anti-hegemônica do nacionalismo, do imperialismo, do Estado, do racismo, do sexismo e
de outros demônios planetários. Elas correram o risco de se
debaterem numa contradição
inevitável, já que, privilegiando
os contradiscursos libertadores da anti-estrutura ou da desconstrução, implicitamente ratificaram certos discursos de
dominação como sendo relatos
fundadores, mais especialmente a versão foucaultiana.
Mas se, para muitas pessoas,
a lição dos anos 1960 foi a de se
opor a todas as formas de poder, a lição do Vietnã me ensinou sobretudo a celebrar todas
as formas de cultura. O êxito
dos vietnamitas diante do poderio americano não reforçou
minha confiança no determinismo tecnológico que eu
aprendera na universidade.
Um missionário deplorou o fato de os havaianos disporem de 20 palavras diferentes para designar
o adultério
|
Iniciei uma série de estudos
sobre o que chamei de a "indigenização da modernidade", fazendo referência aos diferentes
métodos culturais empregados
pelos esquimós, os povos da
Nova Guiné, os polinésios etc.
para inscreverem um "sistema
mundial" invasor dentro de um
contexto ainda mais englobador: seu próprio sistema do
mundo.
PERGUNTA - Em 1968 e 1969 o sr.
trabalhou com Lévi-Strauss em Paris. O que tirou desse confronto?
SAHLINS - É impossível para
mim sintetizar tudo o que
aprendi nessa época no laboratório de Lévi-Strauss no Collège de France. Permita que eu
resuma essa experiência.
Em 1969 apresentei uma
pesquisa sobre determinados
sistemas de troca tradicionais
da Austrália e da Melanésia,
precisando bem, no preâmbulo, que eu não era estruturalista, pois não falava de uma troca
de mulheres ou de palavras,
mas de uma infra-estrutura
material bastante real e concreta -cuja análise Lévi-Strauss já concedera a Marx.
Durante a discussão que se
seguiu, ele afirmou que eu era
estruturalista, sim: afinal, aquilo que eu demonstrara com relação às trocas materiais correspondia a certas estruturas
de troca matrimonial que ele
descrevera em "As Estruturas
Elementares do Parentesco"
[ed. Vozes]. Protestei, citando o
trecho em "O Pensamento Selvagem" [Papirus] em que ele
declara que o estruturalismo é
especificamente uma ciência
de superestruturas.
"É verdade", ele retrucou,
"mas o sr. deve compreender
que aprendi antropologia com
Franz Boas [1858-1942] e Robert Lowie [1883-1957], que
discutiam com índios de reservas os costumes de gerações
passadas" -ele chamava isso
de "arqueologia do vivo". "Ninguém prestava atenção à existência de índios contemporâneos", ele acrescentou. "Mas
hoje é preciso estender o estruturalismo às infra-estruturas."
Retruquei que eu acreditava
que sua restrição do estruturalismo às superestruturas era
uma questão de princípio científico, e não pude me impedir
de lhe perguntar: "O que é o estruturalismo, afinal?". Ele me
respondeu: "É a boa antropologia, em suma". E, de fato, segundo esse critério, admito que
eu era estruturalista.
PERGUNTA - Desde quando vem
seu interesse pela Polinésia e por Fiji? Pode nos explicar sua opção por
uma etnografia histórica, fundamentada nos arquivos mais que no
trabalho de campo? O que o sr.
aprendeu sobre essas sociedades?
SAHLINS - Como muitos homens de minha geração, minha
iniciação na antropologia seguiu, em sua própria escala modesta, a trajetória do primeiro
grande mestre americano, Lewis Henry Morgan [1818-81].
Ele decidiu fazer um estudo
de campo sobre as tribos iroquesas locais e, com isso, inaugurou a tradição etnográfica
americana.
Da mesma maneira, minha
infância -passada brincando
de caubói e índio e lendo os romances de Fenimore Cooper
[1789-1851, de "O Último dos
Moicanos"] escritos em falsa
linguagem indígena- me levou
a fazer um estudo de campo sobre um tipo de clã incomum,
por ser hierarquizado, que qualificamos como "clã cônico".
Eu acabava de concluir um
estudo das hierarquias políticas polinésias, e era em Fiji que
se podia realizar um estudo etnográfico desse tipo de hierarquia de clã.
PERGUNTA - Por que o sr. escreve
que a tradição nessas sociedades do
Pacífico pode ser também uma modalidade de mudança?
SAHLINS - Desde o século 19, os
povos do Pacífico, à medida que
a sobrevivência de sua comunidade o permitiu, continuaram a
ser atores e motores de suas
próprias histórias.
Emprego o plural desse termo propositalmente, pois é sobretudo em suas culturas respectivas que eles foram buscar
os recursos para continuar a serem atores de suas histórias.
Logo, a tradição se tornou o
mediador e a medida das transformações por que passaram.
Basta estudar dois exemplos
muito distintos de cristianização, ambos seguindo um modelo protestante e até mesmo puritano: de um lado os urapmins
da Nova Guiné, que não demoraram a se perceber atingidos
pelo pecado original e, portanto, se converteram em massa
-por contato com outros povos da Nova Guiné- antes
mesmo de terem visto qualquer
missionário europeu.
E, de outro lado, os havaianos, sobretudo aqueles das camadas populares, que se mantiveram "devassos" e resistiram à
conversão durante décadas,
porque, como freqüentemente
observaram os missionários
americanos, "lhes faltava a
aversão por eles mesmos".
Eu me contentarei em mencionar alguns elementos culturais para demonstrar essa diferença. Para começar, o caráter
fortemente centralizado da sociedade havaiana, segundo o
qual a existência e a felicidade
das camadas populares dependia das ações de seus chefes.
Independentemente de suas
próprias convicções, como repetiam aos missionários desesperados, as pessoas comuns se
converteriam ao cristianismo
quando seu chefe lhes desse o
exemplo.
Mas, em vista do valor político e material das relações eróticas no sistema -o famoso "espírito aloha", que governava a
sorte tanto dos chefes quanto
dos não-nobres-, era difícil
convencê-los a praticar a abstinência e a mortificação nas
quais os protestantes enxergavam o sinal da graça divina.
Um missionário deplorou o
fato de os havaianos disporem
de 20 palavras diferentes para
designar o adultério: se ele escolhesse uma delas para traduzir o sétimo mandamento, eles
pensariam que as outras formas de adultério continuariam
a ser lícitas.
Inversamente, os urapmins
formam um pequeno grupo, relativamente igualitário, de 360
pessoas que se casam entre si e
se vêem envolvidas em relações
recíprocas e complexas de parentesco, intensas e freqüentemente incompatíveis.
Seria possível dizer que, em
seu sistema tradicional, qualquer boa ação era também uma
má ação na medida em que a escolha de viver com alguém implicava deixar de lado outra
pessoa, não menos próxima; ao
dar um presente a alguns, incentivava-se a crítica por ter
desprezado suas obrigações em
relação aos outros.
Assim, não surpreende que,
para traduzir o conceito cristão
de pecado, os urapmins empreguem o termo "dívida". Mas
eles se enganavam ao crer que o
cristianismo seria sua redenção. Como não podiam renunciar pura e simplesmente a sua
cultura tradicional, eles apenas
agravaram seu caso, pois sua
cultura era incompatível com
os ideais de harmonia cristã.
PERGUNTA - Qual o papel da cultura em sua pesquisa antropológica?
SAHLINS - Para mim a cultura é
tudo. Em suas formas e em suas
transformações, seu papel na
história das sociedades e na organização dos indivíduos, a cultura é o objeto por excelência
de todo saber antropológico.
A melhor maneira de ilustrar
essa convicção talvez seja contestar o folclore do determinismo genético que ficou tão em
voga nos EUA: esse movimento
pretende remeter toda forma
cultural a uma "natureza humana" universal fundamentada no interesse pessoal e no espírito de competição.
Associadas às teorias econômicas da "escolha racional",
disciplinas vulgarizadas, como
são a sociobiologia e a psicologia evolutiva, estão criando
uma ciência humana de múltiplos usos, a ciência do "gene
egoísta". Naturalmente, é fácil
reconhecer nessa suposta natureza humana o velho sujeito
burguês.
Na espécie humana, a biologia é um determinante culturalmente determinado
|
Uma parcela grande demais
dos americanos ainda está convencida de que "a espécie sou
eu". Entretanto, como prova a
antropologia mais elementar,
viver sua vida em conformidade com sua cultura permite que
se tenha a possibilidade e que
se reconheça a necessidade de
satisfazer nossas inclinações
naturais no modo simbólico,
segundo definições significantes de nós mesmos, de nosso
ambiente, de nossas relações e
de nossas produções.
De fato, a cultura humana é
bem mais antiga que nossa natureza enquanto espécie, pois
ela remonta a pelo menos 2 milhões de anos, sendo que o Homo sapiens surgiu há apenas
200 mil anos, engendrado dentro de e por um contexto cultural que tomava a reprodução
humana a seu cargo.
Se evoluímos biologicamente, isso se deu sob a pressão da
seleção cultural, ou seja, a necessidade de culturalizar nossa
animalidade.
Isso não faz de nós ou de nossos ancestrais "páginas em
branco" despidas de qualquer
imperativo biológico; quer dizer simplesmente que o que foi
selecionado de maneira específica pelo gênero Homo foi a capacidade de realizar esses imperativos de mil maneiras diferentes e pouco conhecidas, mas
demonstradas pela história e
pela antropologia.
O fato mais pertinente para
compreender as relações entre
cultura e natureza humana não
é (por exemplo) o fato de que
todas as culturas conhecem a
sexualidade, mas que toda sexualidade conhece a cultura.
As pulsões sexuais são diversamente expressas e reprimidas segundo as definições, específicas de cada cultura, de o
que são os parceiros, as circunstâncias, os lugares, os momentos e as funções corporais
apropriados.
Alguns chegam a praticar sexo por telefone. Outro exemplo
de manipulação (o jogo de palavras é proposital) conceitual é a
célebre réplica do ex-presidente Bill Clinton: "Não fiz sexo
com essa mulher".
Inversamente, sublimamos
nossa sexualidade genérica de
mil maneiras, incluindo a de
transcendê-la e dar preferência
à castidade, valorizada pelo
pensamento cristão.
O mesmo se aplica à agressividade: podemos brincar de
guerra, desancar impiedosamente o livro mais recente de
um acadêmico inimigo ou,
mesmo, à moda nova-iorquina,
responder a um "tenha um
bom dia" com "não preciso receber ordens de você!".
Sejam quais forem nossas
necessidades, pulsões, inclinações inatas, quer sejam de ordem agressiva, egoísta, alimentar, social ou altruísta, elas são
frutos de uma definição simbólica, portanto de ordem cultural. Na espécie humana, a biologia é um determinante culturalmente determinado.
PERGUNTA - O verdadeiro pensamento selvagem é o do capitalismo
contemporâneo?
SAHLINS - Não no sentido estrito do termo. Mais exatamente,
o capitalismo contemporâneo
implica uma mesma lógica cultural do concreto sob a forma
de valores de uso, que, uma vez
fetichizados como preços e colocados em ação para fins lucrativos, fazem inegavelmente
o efeito de um pensamento selvagem incontrolado.
Por mais que nossa racionalidade pecuniária o tenha ocultado, se ergue sobre todo um sistema de valores culturais motivados que associam sujeitos e
objetos, logo, preferências e
produtos, em razão de suas características distintivas.
É claro que essa realidade
passa despercebida aos olhos
dos sujeitos burgueses -que
geralmente vivem seus valores
culturais como um hábito, sem
prestar atenção a ele- e dos
economistas, que, tendo definido seu domínio como uma racionalidade prudente, enquadram as formas culturais nos
limbos dos fatores "exógenos"
ou mesmo "irracionais".
Não nos damos conta de que
nossas escolhas racionais -por
exemplo, não serviremos hambúrgueres a convidados que
respeitamos- são baseadas
num código de valores que não
guarda relação nenhuma com o
caráter nutritivo e que tem tudo a ver com a significação respectiva dos órgãos e dos músculos, da carne e dos cortes, do
cortado e do moído, dos pratos
e dos sanduíches etc.
Da mesma maneira, não são
as qualidades concretas das
roupas que explicam a diferença de estilo de vestimenta que
manifesta a distinção social em
vigor entre homens e mulheres
em situações de trabalho e de
lazer, entre empresários e policiais, bailes de debutantes e
boates: basta pensar em todos
os significados veiculados por
uma peça de vestuário, como
[Roland] Barthes nos ensinou.
Vivemos hoje em um mundo
que se encanta com objetos semioticamente construídos e
culturalmente relativos, como
o ouro, a seda, as cepas de pinot
noir, o petróleo, o filé mignon,
os tomates "primeira colheita"
e a água pura de Fiji.
Assistimos a uma construção
da natureza por meio de esquemas culturais historicamente
determinados, mas cujas qualidades simbólicas são transformadas em qualidades pecuniárias, cujas fontes sociais são
atribuídas a desejos individuais
e cuja satisfação arbitrária é
travestida em escolha universalmente racional.
Mas, como é impelido à competição pelo interesse financeiro, esse encantamento produz
uma infinidade de objetos, enquanto ainda for possível metamorfosear as distinções sociais
dos sujeitos e dos objetos em
mercadorias rentáveis.
PERGUNTA - O sr. não hesita em traçar comparações entre civilizações
geográfica e historicamente distantes, como, por exemplo, entre as
guerras do Peloponeso narradas por
Tucídides e as de Fiji. O que lhe traz
esse olhar cruzado?
SAHLINS - O conflito entre os
reinos fijianos de Bau e de Rewa (e seus respectivos aliados),
que durou de 1843 a 1855, foi a
maior guerra travada nos mares do Sul antes da Segunda
Guerra Mundial.
Como Bau (como Atenas) era
uma potência naval imperialista, e Rewa (como Esparta) era
uma velha potência terrestre, a
guerra da Polinésia já tinha levado os visitantes europeus do
século 19 a traçar comparações
entre ela e as guerras do Peloponeso.
A diferença de estrutura política entre Bau e Rewa procedia
de uma interdependência,
comparável à relação entre o
parentesco de sangue (consangüinidade) e o parentesco por
casamento (afinidade), o que
autoriza a pensar que os próprios fijianos teriam consciência de que essas estruturas
eram o espelho invertido (a antítese) uma da outra.
Da mesma maneira, Atenas e
Esparta constituem antitipos
estruturais e históricos: essas
duas cidades eram, respectivamente, cosmopolita e xenófoba, marítima e terrestre, comerciante e autárquica, luxuosa e frugal, democrática e oligárquica, urbana e campônia,
autóctone e imigrante...
Poderíamos continuar ao infinito com essas dicotomias. O
que lembra a injunção tão influente de Lévi-Strauss em
"Race et Histoire" [Raça e História]: "É preciso evitar estudar
a diversidade das culturas humanas caso a caso, pois essa diversidade nasce menos do isolamento dos diversos grupos
que das relações entre eles".
Como esse princípio é confirmado várias vezes em "Mythologiques" [Mitológicas], somos
tentados a concluir que, apesar
de seu apego à sincronia, o estruturalismo é igualmente fortemente historicista.
PERGUNTA - O que as guerras do
Peloponeso podem nos ensinar sobre a guerra do Iraque, hoje?
SAHLINS - Substituindo os mitos de Heródoto pelo lógos, Tucídides usurpou o título de "pai
da história", tornando-se o
queridinho dos pragmáticos
das relações internacionais e
outros adeptos ocidentais da
"realpolitik".
Mas o paralelo mais esclarecedor com o Iraque nos é oferecido pela guerra civil anárquica
("estase") que devastou Corcira, onde espartanos e atenienses se envolveram no conflito
interno que opunha os oligarcas locais aos democratas, disputando o controle da cidade.
Em Corcira, assim como no
Iraque, quando as instituições
de Estado perderam toda legitimidade e a violência se tornou
o recurso privilegiado de todas
as causas partidárias, os valores
sagrados da justiça, da moral e
da religião foram afogados no
sangue e reduzidos a nada.
Platão observou um dia que
cada "pólis" é na verdade composta de várias "pólei", pois ela
se divide em cidade dos ricos e
cidade dos pobres, em guerra
de um contra o outro, e cada
uma é dividida, ela própria, entre facções opostas.
E, quando as causas e as forças internacionais -como a dominação ateniense sobre Corcira ou a oposição entre democracia e fundamentalismo islâmico no Iraque- se somam às
dissensões locais, tem-se a impressão de assistir a um colapso
da ordem cultural e à irrupção
da natureza humana sob sua
forma mais brutal.
Em Corcira, escreve Tucídides, "até as palavras foram
obrigadas a renunciar a seu
sentido habitual e aceitar aquele que se lhes era dado". Desse
modo, a premeditação virou
"legítima defesa"; a moderação,
"falta de virilidade", a prudência, "covardia".
Ecoando alguns argumentos
dos sofistas, opondo o caráter
superficial da cultura ("nómos") ao caráter irresistível da
natureza ("physis"), o historiador antigo afirmava que essa
manifestação desenfreada de
hipocrisia e injustiça se produziria cada vez que o desejo natural de poder e de lucro se chocasse com as frágeis convenções da ordem social.
E ainda encontramos os ecos
dessa ideologia no comentário
feito por Donald Rumsfeld [então secretário da Defesa] sobre
o caos que se seguiu à ocupação
americana de Bagdá: "Isso teria
que acontecer, cedo ou tarde",
uma versão asseptizada de "Cedo ou tarde a coisa teria que explodir". É um defeito que os
ocidentais sempre atribuem
aos outros povos, mas eles próprios tendem rapidamente a
confundir natureza e cultura.
Quer seja em Corcira ou no
Iraque, foi preciso uma combinação gigantesca de causas morais e políticas conflitantes para produzir esse suposto estado
de natureza.
Em Corcira, assim como no
Iraque, a intervenção de fatores
externos poderosos conferiu
um valor novo e absoluto aos
cismas internos da cidade, tornando-os tão insolúveis quanto
abstratos e ideológicos.
Daquele momento em diante, as pessoas passaram a lutar
por ou contra generalidades: a
"liberdade", a "escravidão", a
"democracia", o "islã", a "ditadura", o "terrorismo", o "imperialismo". Fato que prova simplesmente que é necessária
muita cultura para criar um estado de natureza.
A íntegra deste texto saiu na revista francesa
"Nouvel Observateur".
Tradução de Clara Allain.
Texto Anterior: + Sociedade: Heroísmo de massa Próximo Texto: saiba + Índice
|