São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2007

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Autos da vingança

"Crônica de uma Tragédia Inesquecível" reúne pela 1ª vez as peças do julgamento do tenente Dilermando de Assis, que matou Euclydes da Cunha

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

D os nossos escritores, Euclydes da Cunha é o possuidor de uma das maiores bibliografias. Quase toda é naturalmente dedicada a "Os Sertões".
Embora Olímpio de Souza Andrade tenha dedicado parte considerável de "História e Interpretação de "Os Sertões'" (Academia Brasileira de Letras) ao relato de sua vida e Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti já tenham reunido sua correspondência -"Correspondência de Euclides da Cunha" (Edusp)-, nunca se publicaram em livro os autos do processo judicial referentes à sua trágica morte.
É o que agora se faz, com apresentação de Walnice Nogueira Galvão, em "Crônica de uma Tragédia Inesquecível".
Antes de lê-lo, nem sequer cogitava da dificuldade que teriam seus editores, pelo próprio tipo de material a reunir. As peças de um processo judicial, com a transcrição de testemunhas, libelos, relatórios policiais, apelações e sentenças visam a um leitor que não é o de livro nenhum. Aqui não há possibilidade de páginas divertidas -são vidas que estão em jogo. Instrução? Só se for a mais paradoxal: a extraída de um relato em que só há perdedores.
Entretanto, no caso da chamada "tragédia da Piedade", essa publicação um dia haveria de se cumprir: até o leitor apenas razoavelmente informado saberá que Euclydes foi morto em um crime passional assim como o nome de seu assassino -que, anos depois, repetirá o feito quanto ao segundo filho, que tentará vingar o pai. É também provável que conheça o nome de Ana Emília Solon Ribeiro, considerada o pivô de toda a desgraça.
Dados bastante esquemáticos para que se compreenda o que culminou naquele domingo, 15 de agosto de 1909. Cientes da importância e dos obstáculos que cercavam o material que tinham em mãos, seus editores tiveram o bom senso de convocar uma euclidiana do renome de Galvão para escrever sua apresentação. E a apresentadora, o bom senso não menor de pouco introduzir de material já não bastante conhecido.

Intuições
Assim o leitor passa a dispor dos elementos indispensáveis para converter peças em si insípidas em reconfiguradoras de uma múltipla tragédia. É certo que, mesmo antes da leitura da "Crônica", algumas intuições sobre o drama eram plausíveis. Ao se casarem, Ana era uma garota de 18 anos, filha de um prócer importante da recém-proclamada República, e Euclydes era um jovem de 24 anos que ganhara a fama inesperada por seu gesto de rebeldia ante o ministro da Guerra do Império.
Além disso, era um rapaz pobre e impetuoso, pronto a aceitar missões que o obrigariam a afastar-se da família. Assim se dera menos em Canudos, onde não se demoraria mais do que alguns meses. Mas a fama que logo o cerca e o conduz a trabalhar com Rio Branco o habilita a ser convidado para chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus.
Já então não é um simples repórter, mas o representante de seu governo numa delicada questão de limites territoriais. Aí se demoraria de dezembro de 1905 a janeiro de 1906. Nesse entretempo a tragédia se prepara.
Numa viagem a São Paulo, Ana conhece um bem-apessoado cadete do Exército. A paixão é recíproca. Dilermando de Assis se torna seu hóspede no Rio. Ao regressar, Euclydes se defronta com a situação criada. Não podemos saber se é verdadeira a afirmação de Ana de haver entregue ao marido, quando de sua chegada, uma carta, pedindo sua separação, conforme alegará ao juiz que preside o processo contra Dilermando.
O fato é que, no mesmo documento, confessa que estava grávida de três meses. Também é difícil entender o que sucede de imediato, tenha sido ou não verdadeira a entrega da carta aludida.
Por um lado, Ana tenta esconder seu estado do marido e chega a procurar um médico que a faça abortar. Por outro, em Euclydes devem se formar suspeitas e chegar a ele denúncias, às quais prefere não dar pleno crédito. É o que explicita sua carta de 23 de janeiro de 1906 ao próprio Dilermando, onde procura desmanchar a impressão de que já não fosse bem-vindo: "Na sua idade nunca se é um homem baixo. (...) A minha casa continua aberta sempre aos que são dignos e bons".
Assim, embora deixasse de ser um hóspede do casal, não estava obrigado a se afastar. Aos poucos, a triangulação tornar-se-ia insustentável. Ana acusa o marido de só cuidar dos livros e mesmo de maus-tratos.
O primeiro filho da relação adulterina morre em uma semana. E o romance proibido assume caminhos enviesados. As declarações feitas durante o processo são às vezes contraditórias. Uma tia de Dilermando chega a declarar que Ana lhe confessara dar uma soma mensal a Dilermando e seu irmão, Dinorah, o que é, indiretamente, negado pelo procurador de seu tutor, em carta ao advogado de defesa, Evaristo de Moraes.
Muito menos coincidem os fatos que antecedem o desfecho. Parece provável que dois dias antes, após uma discussão séria com o marido, Ana saíra de casa, na companhia de Dinorah, o irmão de Dilermando, e seu quarto filho, Luiz, nascido em 1907, à procura do amante, a quem declara seu propósito de divorciar-se.
Terminara por dormir na casa de sua mãe, afirmando, na manhã seguinte, ir ao ginásio, onde estudava seu segundo filho. Procurada então por Euclydes, este verifica que ela assim não fizera nem regressara para casa. Em suma, desde sexta-feira até o domingo da catástrofe, ficara na casa de Dilermando e Dinorah, na companhia de Luiz e de seu outro filho, Solon, que aí a procurou, na tentativa de convencê-la a voltar para casa.
O resto cabe em poucas frases. Euclydes informa-se da residência do rival. Ao serem avisados de sua chegada, Ana e Luiz se escondem e Dilermando se dirige a seu quarto. Dinorah recebe o transtornado visitante. Ao tentar contê-lo, será o primeiro atingido por seus disparos (não fica claro que a cadeira de rodas em que viera a viver fora conseqüência da agressão de Euclydes. O fato é que se suicida com 32 anos).
Depois de arrombar a porta do quarto onde estava Dilermando, procura matá-lo. Embora ferido, o rival, atirador emérito, reage e mata Euclydes. Pelo empenho de seu advogado, a Dilermando se reconhece que agira em legítima defesa. Mas se tornara, por toda a vida, um homem marcado. Embora pudesse agora casar-se com Ana e, com ela, ter outros filhos, termina por deixá-la.
A morte de Euclydes se acompanhara de mortos-vivos ou, pelo menos, de pessoas às quais a sombra do morto não dava sossego.

LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.


CRÔNICA DE UMA TRAGÉDIA INESQUECÍVEL
Editoras:
Albatroz/Loqüi/Terceiro Nome (tel. 0/xx/11/ 3816-0333)
Quanto: R$ 36 (232 págs.)



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