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Autos da vingança
"Crônica de uma Tragédia Inesquecível" reúne pela 1ª vez as peças do julgamento do tenente Dilermando de Assis, que matou Euclydes da Cunha
LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA
D
os nossos escritores, Euclydes da
Cunha é o possuidor de uma das
maiores bibliografias. Quase toda é naturalmente dedicada a "Os Sertões".
Embora Olímpio de Souza
Andrade tenha dedicado parte
considerável de "História e Interpretação de "Os Sertões'"
(Academia Brasileira de Letras) ao relato de sua vida e
Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti já tenham reunido sua correspondência
-"Correspondência de Euclides da Cunha" (Edusp)-, nunca se publicaram em livro os
autos do processo judicial referentes à sua trágica morte.
É o que agora se faz, com
apresentação de Walnice Nogueira Galvão, em "Crônica de
uma Tragédia Inesquecível".
Antes de lê-lo, nem sequer
cogitava da dificuldade que teriam seus editores, pelo próprio tipo de material a reunir.
As peças de um processo judicial, com a transcrição de testemunhas, libelos, relatórios
policiais, apelações e sentenças
visam a um leitor que não é o de
livro nenhum. Aqui não há possibilidade de páginas divertidas
-são vidas que estão em jogo.
Instrução? Só se for a mais paradoxal: a extraída de um relato
em que só há perdedores.
Entretanto, no caso da chamada "tragédia da Piedade", essa publicação um dia haveria de
se cumprir: até o leitor apenas
razoavelmente informado saberá que Euclydes foi morto em
um crime passional assim como o nome de seu assassino
-que, anos depois, repetirá o
feito quanto ao segundo filho,
que tentará vingar o pai.
É também provável que conheça o nome de Ana Emília
Solon Ribeiro, considerada o
pivô de toda a desgraça.
Dados bastante esquemáticos para que se compreenda o
que culminou naquele domingo, 15 de agosto de 1909.
Cientes da importância e dos
obstáculos que cercavam o material que tinham em mãos,
seus editores tiveram o bom
senso de convocar uma euclidiana do renome de Galvão para escrever sua apresentação. E
a apresentadora, o bom senso
não menor de pouco introduzir
de material já não bastante conhecido.
Intuições
Assim o leitor passa a dispor
dos elementos indispensáveis
para converter peças em si insípidas em reconfiguradoras de
uma múltipla tragédia.
É certo que, mesmo antes da
leitura da "Crônica", algumas
intuições sobre o drama eram
plausíveis. Ao se casarem, Ana
era uma garota de 18 anos, filha
de um prócer importante da recém-proclamada República, e
Euclydes era um jovem de 24
anos que ganhara a fama inesperada por seu gesto de rebeldia ante o ministro da Guerra
do Império.
Além disso, era um rapaz pobre e impetuoso, pronto a aceitar missões que o obrigariam a
afastar-se da família. Assim se
dera menos em Canudos, onde
não se demoraria mais do que
alguns meses.
Mas a fama que logo o cerca e
o conduz a trabalhar com Rio
Branco o habilita a ser convidado para chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do
Alto Purus.
Já então não é um simples repórter, mas o representante de
seu governo numa delicada
questão de limites territoriais.
Aí se demoraria de dezembro
de 1905 a janeiro de 1906. Nesse entretempo a tragédia se
prepara.
Numa viagem a São Paulo,
Ana conhece um bem-apessoado cadete do Exército. A paixão
é recíproca. Dilermando de Assis se torna seu hóspede no Rio.
Ao regressar, Euclydes se defronta com a situação criada.
Não podemos saber se é verdadeira a afirmação de Ana de
haver entregue ao marido,
quando de sua chegada, uma
carta, pedindo sua separação,
conforme alegará ao juiz que
preside o processo contra Dilermando.
O fato é que, no mesmo documento, confessa que estava
grávida de três meses. Também
é difícil entender o que sucede
de imediato, tenha sido ou não
verdadeira a entrega da carta
aludida.
Por um lado, Ana tenta esconder seu estado do marido e
chega a procurar um médico
que a faça abortar.
Por outro, em Euclydes devem se formar suspeitas e chegar a ele denúncias, às quais
prefere não dar pleno crédito. É
o que explicita sua carta de 23
de janeiro de 1906 ao próprio
Dilermando, onde procura desmanchar a impressão de que já
não fosse bem-vindo: "Na sua
idade nunca se é um homem
baixo. (...) A minha casa continua aberta sempre aos que são
dignos e bons".
Assim, embora deixasse de
ser um hóspede do casal, não
estava obrigado a se afastar.
Aos poucos, a triangulação
tornar-se-ia insustentável. Ana
acusa o marido de só cuidar dos
livros e mesmo de maus-tratos.
O primeiro filho da relação
adulterina morre em uma semana. E o romance proibido assume caminhos enviesados.
As declarações feitas durante
o processo são às vezes contraditórias. Uma tia de Dilermando chega a declarar que Ana lhe
confessara dar uma soma mensal a Dilermando e seu irmão,
Dinorah, o que é, indiretamente, negado pelo procurador de
seu tutor, em carta ao advogado
de defesa, Evaristo de Moraes.
Muito menos coincidem os fatos que antecedem o desfecho.
Parece provável que dois dias
antes, após uma discussão séria
com o marido, Ana saíra de casa, na companhia de Dinorah, o
irmão de Dilermando, e seu
quarto filho, Luiz, nascido em
1907, à procura do amante, a
quem declara seu propósito de
divorciar-se.
Terminara por dormir na casa de sua mãe, afirmando, na
manhã seguinte, ir ao ginásio,
onde estudava seu segundo filho. Procurada então por
Euclydes, este verifica que ela
assim não fizera nem regressara para casa.
Em suma, desde sexta-feira
até o domingo da catástrofe, ficara na casa de Dilermando e
Dinorah, na companhia de Luiz
e de seu outro filho, Solon, que
aí a procurou, na tentativa de
convencê-la a voltar para casa.
O resto cabe em poucas frases. Euclydes informa-se da residência do rival. Ao serem avisados de sua chegada, Ana e
Luiz se escondem e Dilermando se dirige a seu quarto.
Dinorah recebe o transtornado visitante. Ao tentar contê-lo,
será o primeiro atingido por
seus disparos (não fica claro
que a cadeira de rodas em que
viera a viver fora conseqüência
da agressão de Euclydes. O fato
é que se suicida com 32 anos).
Depois de arrombar a porta
do quarto onde estava Dilermando, procura matá-lo. Embora ferido, o rival, atirador
emérito, reage e mata Euclydes. Pelo empenho de seu advogado, a Dilermando se reconhece que agira em legítima defesa.
Mas se tornara, por toda a vida, um homem marcado. Embora pudesse agora casar-se
com Ana e, com ela, ter outros
filhos, termina por deixá-la.
A morte de Euclydes se
acompanhara de mortos-vivos
ou, pelo menos, de pessoas às
quais a sombra do morto não
dava sossego.
LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente
na seção "Autores", do Mais!.
CRÔNICA DE UMA TRAGÉDIA INESQUECÍVEL
Editoras: Albatroz/Loqüi/Terceiro
Nome (tel. 0/xx/11/ 3816-0333)
Quanto: R$ 36 (232 págs.)
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