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Paranóia ou progressismo?
Na ficção científica "O Presidente Negro", Monteiro Lobato vislumbra a disputa entre um negro e uma mulher para a Presidência dos EUA em 2228
ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE MODA
A disputa entre [os
senadores] Barack
Obama e Hillary
Clinton pela vaga
democrata nas eleições presidenciais norte-americanas de 2008 tira lá do fundo
poeirento dos sebos um livro
estranho, polêmico e esquecido de Monteiro Lobato: "O
Presidente Negro" [editado
com "A Onda Verde" pela Brasiliense] -ou "O Choque das
Raças", o outro nome dado à
obra, classificada assim pelo
escritor: "Romance americano
do ano 2228".
Sim, trata-se de uma ficção
científica, coisa rara nas letras
brasileiras, e muito influenciada por H.G. Wells [1866-1946],
de quem Lobato foi um dos primeiros tradutores no país.
Publicada em 1926, inicialmente na forma de um folhetim que durou três semanas e
20 capítulos nas páginas do jornal "A Manhã", viria a se tornar
o único romance do escritor,
conhecido no entanto por sua
prolixidade. Romance popular,
diga-se, com um know-how
respeitável do "timing" do folhetim, feito de suspenses calculados, de crescendos dramáticos, de fantasias mirabolantes
e pontuações sentimentais. Romance também satírico, com
um humor feroz e irresistível.
E fortemente polêmico, bem
mais que politicamente incorreto: escorado em idéias racistas e até protonazistas -o que
deve ter contribuído para mantê-lo até agora no canto embolorado dos alfarrábios, apesar
de suas projeções provocativas.
Entre elas, por exemplo, a de
um sistema de comunicação
que lembra muito a internet.
No delírio futurista de Lobato, a imprensa em papel deixou
de existir nos EUA de 2228. As
notícias são "radiadas" e aparecem imediatamente impressas
"em caracteres luminosos num
quadro mural existente em todas as casas".
Também chegou ao fim a
"era dos veículos".
Os instrumentos de rodas foram parar no museu, e os homens preferem andar a pé, usufruírem do ócio e trabalharem
em suas próprias casas, de onde
transmitem seus serviços ao
escritório utilizando o "rádio-transporte".
As guerras igualmente foram
extintas, tão logo os Ministérios da Guerra foram trocados
pelos da Paz. Apesar disso, os
EUA estão prestes a mergulhar
no caos e no sangue às vésperas
da eleição de seu 88º presidente, de tal forma o pleito cindiu a
população.
De um lado, estão agrupados
os milhões de eleitores pretos,
que apóiam Jim Roy, da Associação Negra. De outro, as mulheres brancas que seguem a
candidata do Partido Feminino, miss Evelyn Astor.
E, por fim, há os homens
brancos, que preferem a reeleição de Kerlog pelo Partido
Masculino, que fundiu o Democrata e o Republicano.
Eis o essencial da trama: não
apenas um choque de raças,
mas também uma guerra de sexos. Os homens brancos, a fim
de embranquecer os EUA, planejam enviar os negros para a
Amazônia, que já não é parte do
Brasil. Nosso país foi dividido
em dois, independentes: o Norte, de atávica malemolência, e o
Sul bem-sucedido, a "grande
República do Paraná", que engloba ainda a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.
Votação por rádio
As mulheres brancas, "mamíferas rebeldes", seguem as
teorias expostas por miss Astor
em "Simbiose Desmascarada",
segundo o qual o Homo sapiens
roubou as fêmeas de seu rival
biológico, de outro gênero, o
que explicaria o equilíbrio sexual impossível entre mulheres e homens. "Sabotemos o
gorila!", gritam as feministas.
Os negros, por sua vez, vivem
preocupados com esticar seus
cabelos e clarear o rosto por
meio da "despigmentação",
que os deixa com a pele "horrivelmente embranquiçada" (como a de Michael Jackson, alguém diria).
Com o acirramento da disputa, tanto o Partido Feminino
quanto o Masculino buscam o
apoio do líder negro. O sistema
social é conduzido por práticas
eugenistas (como a eutanásia
de bebês nascidos com problemas), mas a política representativa continua intocada.
Acontece a eleição -com os
votos enviados por ""rádio" da
casa dos eleitores-, e ganha o
candidato negro.
As mulheres brancas se apavoram com a perspectiva de
um governo de negros e, arrependidas, correm aos braços
dos homens brancos, revendo
sua teoria evolutiva: "Peludas
que éramos ainda, e lá no fundo
das idades já o ajudávamos [aos
machos] a afiar o machado de
sílex com que nos amparou da
agressões do Ursus spelaeus.
Comemos juntos bifes crus de
megatérios", exclamam elas (e
a escrita lobatiana se delicia e
nos delicia com os disparates
femininos).
O líder negro -o único ao
qual Lobato, paradoxalmente,
dá estatura de herói- prepara-se para assumir a Presidência,
diante de seus iguais, estupefatos com a conquista: "Nem um
negro imaginara tal hipótese.
Mas a perturbação foi se desfazendo, e à medida que se ia desfazendo, iam se iluminando as
aras com um sorriso novo no
mundo".
Os brancos reagem com muito maquiavelismo, num complô articulado supermodernamente entre política, ciência e
ideologia, o qual é melhor não
revelar, deixando algumas surpresas para o leitor que por
acaso resolva ler a obra.
A questão do racismo de Lobato inflama os estudiosos.
Muitos deles chegaram a apontar preconceitos embutidos até
mesmo nos livros infantis. "O
Presidente Negro" coloca muita lenha na fogueira da polêmica. Há passagens escandalosas
no livro, que mesmo um escritor de extrema direita pensaria
mil vezes antes de publicar nos
dias de hoje.
Lobato as coloca todas na boca dos personagens, como a sapiente miss Jane Benson, filha
do inventor inglês que descobriu o "porviroscópio", por
meio do qual se avista o futuro,
ou o narrador meio idiota do livro, Ayrton Lobo, funcionário
da firma de contabilidade Sá,
Pato & Cia., que por acaso cai
nas graças da família de cientistas ao se acidentar nos arredores de Friburgo.
É sabido que Lobato se envolveu vivamente com idéias
eugenistas, muito comuns na
época do livro, e que na juventude teve um culto enviesado
por Nietzsche e seu super-homem. Também se manifestou
repetidas vezes contra a miscigenação brasileira e chegou a
defender Mussolini.
Democrata ferrenho
Por outro lado, fez elogios a
Lênin e foi um ferrenho democrata à americana, defensor da
modernização da política, da
economia e dos costumes no
Brasil encalacrado em seus arcaísmos coloniais. Promoveu
também uma revolução na indústria editorial, democratizando a leitura no país.
Sua obra infantil é um verdadeiro projeto de "iluminismo"
para as crianças. E, num tempo
em que isso não era comum,
criou um dos mais comoventes
personagens negros da literatura brasileira, Negrinha, do
conto do mesmo nome (1920).
Quem fala, de fato, em "O
Presidente Negro": Lobato ou
os protagonistas? Será o livro
um manual ideológico fascista
para uso da elite paulista que lia
"A Manhã"? Uma brincadeira
de mau gosto em que o escritor
deixa aflorar descontroladamente o seu racismo e o seu antifeminismo?
Um alerta provinciano contra a eugenia, que naqueles
mesmos anos 20 florescia com
tanto vigor nos EUA, como relata o ótimo livro "A Guerra
Contra os Fracos", de Edwin
Black? Ou uma fábula futurista
que leva ao paroxismo as contradições embutidas na democracia americana?
É difícil responder. Documento de uma época fervilhante e confusa -os anos do entreguerras- e de uma imaginação
exuberante e contraditória -a
de Monteiro Lobato-, "O Presidente Negro" é uma pedra
muito espinhosa no sapato da
literatura brasileira.
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