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Ponto de fuga
A felicidade dos outros
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Bem, na verdade, a cobra que Benedita matou era um predador de roedores, e o lindo ratinho que ela salvou era o vetor de uma doença mortífera. Quando Benedita enxugou a lágrima
do olho, um vírus que vivia no pêlo do camundongo invadiu seu corpo. E, numa
adorável manhã de primavera, Benedita,
delirando por causa da febre alta, tropeçou
ao sair de sua pequena cabana, caiu e morreu. Fim." O minhoquinho termina por
compreender a moral da história. Seu pai
minhocão aproveita a hora do jantar para
um conto filosófico sobre a natureza.
Corram ler o álbum "Tem um Cabelo na
Minha Terra! Uma História de Minhoca"
(Cia. das Letrinhas), escrito e ilustrado por
Gary Larson. Larson inventa vacas, cobras,
ursos, avestruzes, dinossauros, esquilos,
aranhas, sapos, que se comportam, todos,
com os tiques pretensiosos da classe média.
Desenha também donzelas gordas com cabeleiras loiras cheias de fitas, dondocas
com óculos pontudos, homens de negócio
barrigudos, velhos desdentados.
Pela arte e pelo imaginário sem limites,
Larson, ácido, cáustico, é um dos gênios de
nosso tempo. "Tem um Cabelo na Minha
Terra!", além de falar sobre cadeia alimentar, ridiculariza o sentimentalismo "generoso" diante da natureza. Benedita se extasia com libélulas, esquilos e flores; "ajuda"
cágados e sapos, mas entende tudo errado.
Suas intervenções são catastróficas. Termina vítima da própria bondade lírica e completamente fora de propósito. Uma lição
implícita que mostra o perigo dos bons
sentimentos e ensina a desconfiança diante
das pulsões generosas.
Ardores
O Iluminismo fez o homem descobrir-se
bom por natureza e universal pela razão.
Seu amor pela civilização instaurou um caráter missionário: era preciso exportar a liberdade, a igualdade, a fraternidade. Em
nome desses ideais, o general Bonaparte
procedeu às suas conquistas e morticínios.
Transformou-se depois em imperador.
Hoje, ainda, se exporta o álibi da democracia por meio das armas. O socialismo "científico" herdou do Iluminismo a vocação expansionista de suas verdades: "Aelita", filme soviético de Protazanov, em 1924, expandia a Revolução Russa para Marte, planeta que era vítima de um horroroso e reacionário regime monárquico.
Piche
A dupla Michael Powell-Emeric Pressburger dirigiu um filme soberbo: "Narciso
Negro" (1947). O bando de freiras funda
uma escola e um ambulatório no Himalaia.
Poderosa atração do abismo: as cordeirinhas de Deus se defrontam com um lobo
que não era mau, mas que invade o rebanho mostrando coxas fortes e peito peludo.
O jogo das pulsões eróticas desencadeia
ambigüidades tremendas, o bem se torna
pior que o mal. Madre Deborah Kerr põe o
rabo entre as pernas e desiste.
"Narciso Negro" prenuncia "Manderlay", de Lars von Trier. A pobre Grace, que
sofrera misérias em Dogville, recusa o cinismo de seu pai. Vai libertar e converter
negros oprimidos em Manderlay, como
uma espécie de madre superiora política.
Von Trier retoma os princípios de "Dogville": cenários de convenção, divisões em
capítulos, narração em off. Trama mais
previsível e gostinho requentado. Com certa força, o filme atira para todos os lados.
Seus símbolos nem sempre claros impõem
o tom demonstrativo de parábola. O mal
parece estar em tudo, mesmo entre os negros que o filme, em princípio, defende.
Mas tem uma origem: na grande voga do
antiamericanismo, um imenso mapa dos
Estados Unidos indica sua localização.
Foco
O gesto generoso vira pó de traque no filme de Von Trier. Mas está longe do poder
reflexivo de Sérgio Bianchi. "Quanto Vale
ou É por Quilo?" é implacável: faz intuir um
estado de injustiça que se prolonga na história brasileira até hoje. Acaba com os mitos interpretativos que celebraram a cordialidade da miscigenação nacional. Expõe
a crueldade embutida nas bondades sociais
generosas. Não traz soluções nem acusações, felizmente. Expõe o espectador ao peso de uma história que substituiu o direito
pelo paternalismo mais sórdido.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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