São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 2005

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Ponto de fuga

A felicidade dos outros

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Bem, na verdade, a cobra que Benedita matou era um predador de roedores, e o lindo ratinho que ela salvou era o vetor de uma doença mortífera. Quando Benedita enxugou a lágrima do olho, um vírus que vivia no pêlo do camundongo invadiu seu corpo. E, numa adorável manhã de primavera, Benedita, delirando por causa da febre alta, tropeçou ao sair de sua pequena cabana, caiu e morreu. Fim." O minhoquinho termina por compreender a moral da história. Seu pai minhocão aproveita a hora do jantar para um conto filosófico sobre a natureza.
Corram ler o álbum "Tem um Cabelo na Minha Terra! Uma História de Minhoca" (Cia. das Letrinhas), escrito e ilustrado por Gary Larson. Larson inventa vacas, cobras, ursos, avestruzes, dinossauros, esquilos, aranhas, sapos, que se comportam, todos, com os tiques pretensiosos da classe média. Desenha também donzelas gordas com cabeleiras loiras cheias de fitas, dondocas com óculos pontudos, homens de negócio barrigudos, velhos desdentados.
Pela arte e pelo imaginário sem limites, Larson, ácido, cáustico, é um dos gênios de nosso tempo. "Tem um Cabelo na Minha Terra!", além de falar sobre cadeia alimentar, ridiculariza o sentimentalismo "generoso" diante da natureza. Benedita se extasia com libélulas, esquilos e flores; "ajuda" cágados e sapos, mas entende tudo errado. Suas intervenções são catastróficas. Termina vítima da própria bondade lírica e completamente fora de propósito. Uma lição implícita que mostra o perigo dos bons sentimentos e ensina a desconfiança diante das pulsões generosas.

Ardores
O Iluminismo fez o homem descobrir-se bom por natureza e universal pela razão. Seu amor pela civilização instaurou um caráter missionário: era preciso exportar a liberdade, a igualdade, a fraternidade. Em nome desses ideais, o general Bonaparte procedeu às suas conquistas e morticínios. Transformou-se depois em imperador. Hoje, ainda, se exporta o álibi da democracia por meio das armas. O socialismo "científico" herdou do Iluminismo a vocação expansionista de suas verdades: "Aelita", filme soviético de Protazanov, em 1924, expandia a Revolução Russa para Marte, planeta que era vítima de um horroroso e reacionário regime monárquico.

Piche
A dupla Michael Powell-Emeric Pressburger dirigiu um filme soberbo: "Narciso Negro" (1947). O bando de freiras funda uma escola e um ambulatório no Himalaia. Poderosa atração do abismo: as cordeirinhas de Deus se defrontam com um lobo que não era mau, mas que invade o rebanho mostrando coxas fortes e peito peludo. O jogo das pulsões eróticas desencadeia ambigüidades tremendas, o bem se torna pior que o mal. Madre Deborah Kerr põe o rabo entre as pernas e desiste.
"Narciso Negro" prenuncia "Manderlay", de Lars von Trier. A pobre Grace, que sofrera misérias em Dogville, recusa o cinismo de seu pai. Vai libertar e converter negros oprimidos em Manderlay, como uma espécie de madre superiora política.
Von Trier retoma os princípios de "Dogville": cenários de convenção, divisões em capítulos, narração em off. Trama mais previsível e gostinho requentado. Com certa força, o filme atira para todos os lados. Seus símbolos nem sempre claros impõem o tom demonstrativo de parábola. O mal parece estar em tudo, mesmo entre os negros que o filme, em princípio, defende. Mas tem uma origem: na grande voga do antiamericanismo, um imenso mapa dos Estados Unidos indica sua localização.

Foco
O gesto generoso vira pó de traque no filme de Von Trier. Mas está longe do poder reflexivo de Sérgio Bianchi. "Quanto Vale ou É por Quilo?" é implacável: faz intuir um estado de injustiça que se prolonga na história brasileira até hoje. Acaba com os mitos interpretativos que celebraram a cordialidade da miscigenação nacional. Expõe a crueldade embutida nas bondades sociais generosas. Não traz soluções nem acusações, felizmente. Expõe o espectador ao peso de uma história que substituiu o direito pelo paternalismo mais sórdido.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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