São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 2005

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O francês Michel Schneider fala de "Mortes Imaginárias", que reúne ensaios sobre as derradeiras palavras de autores como Nabokov e Truman Capote

Aquela que não deve ser nomeada

JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

Sentindo o próprio corpo a definhar e a desfazer-se sobre os lençóis, teria dito o romancista Henry James, perdendo a discrição habitual: "Ei-la, finalmente, a coisa admirável". Mais simples e melancólico do que ele, ao menos nesse instante, há de ter sido Laurence Sterne: "Agora sim. Ela chegou". Victor Hugo, por sua vez, entregou-se a um último verso: "É aqui o combate entre o dia e a noite". André Gide, a uma última aflição: "Tenho medo de que minhas palavras se tornem gramaticalmente inexatas".
Últimos versos, últimas aflições, palavras derradeiras que improvisaram aqueles que devotaram toda uma vida às palavras. Quem as recolhe, em longa pesquisa agora publicada nos ensaios de "Mortes Imaginárias", é o francês Michel Schneider, que concedeu à Folha a entrevista abaixo.
 

Folha - O que há de fascinante nas últimas palavras dos escritores?
Michel Schneider -
Na verdade, estava mais interessado em escrever sobre o fim das palavras do que sobre as palavras do fim. Há algo que me fascina nesse último duelo: quem é que fala nesse momento? Ainda o escritor ou já a morte?
A morte é o acontecimento por excelência, mas ela não acontece sem ser dita.

Folha - Não há morbidez no desejo de conhecer essas minúcias?
Schneider -
Nada é mais vivo do que os escritores quando falam da morte e escrevem contra o medo de morrer. Nada é mais morto do que tudo aquilo que nega a morte. Não obstante hoje em dia editores e leitores fogem de títulos que contenham a palavra morte. Os escritores franceses Georges Bataille ou Louis-Ferdinand Céline agora seriam convidados a encontrar algo "que venda melhor".
Hoje a morte acontece calada, como se pudéssemos fazê-la desaparecer de nossas vidas apagando-a de nossa língua.

Folha - Então a morte é um tabu?
Schneider -
Vivemos na sociedade da negação da morte, mais do que da repressão sexual. As representações sexuais são tão reprimidas quanto sempre foram. A pornografia e os "talk shows" não passam de um meio paradoxal de fugir da parte dolorosa da sexualidade, assim como as inúmeras representações de mortes violentas (crimes, catástrofes etc.). O espectador as vê e diz a si mesmo: "Não vou morrer assim; logo, não vou morrer".

Folha - Escrever é sempre tentar escapar da morte por meio da imortalidade das palavras?
Schneider -
Eu quis saudar o esforço da linguagem para justificar o desaparecimento, não para escapar dele. É verdade que a imortalidade é sempre almejada na escrita, mas ela é uma ilusão, pois os livros também morrem, muitas vezes antes de seus autores.

Folha - Os escritores sabem "morrer bem", "sem se lamentar e trazendo nos lábios um dito espirituoso", como recomendava Borges?
Schneider -
Encontramos de tudo: humor, verborragia, desespero, serenidade. Mas seria um erro acreditar que os escritores morrem como escritores. Eles morrem como todos nós: crianças.

Folha - Como entender a morte "plagiária" de Stefan Zweig? Sua angústia era legítima ou ele queria uma morte memorável?
Schneider -
No livro, ressalto as "mortes imitadas": Marcel Schwob buscando a sua no túmulo de Stevenson, Zweig suicidando-se como Henrich von Kleist, Hermann Broch deixando de escrever e morrendo depois de fazer uma longa descrição da morte de Virgílio.
A aflição de quem morre é sempre legítima, mas, sim, na mesma busca de partilha com a mulher amada, em seu "pedido em suicídio" semelhante ao pedido em casamento, Zweig quis situar sua morte na estante das mortes heróicas dos escritores.

Folha - O que mostram as circunstâncias da morte de Kant? Sua racionalidade incorruptível ou, pelo contrário, seu medo do irracional?
Schneider -
Mostram uma crença muito pouco racional no valor absoluto da razão. Kant não queria ter afetos, paixões. Não queria ter inconsciente. E, como todos nós, foi alcançado por esses fantasmas no momento de morrer.

Folha - E com relação a Alexandre Dumas? Produziu para si uma morte digna de seus personagens?
Schneider -
Dumas costumava dizer que sua morte seria suave, pois ele "lhe contaria uma história". Ele era, afinal, um grande narrador de mortes. Mas Dumas morreu como se fecha um livro: cedo demais.

Folha - Qual é, para o senhor, a frase mais memorável dita por um escritor no momento da morte?
Schneider -
Gosto daquela de Dorothy Parker: "Me perdoem pela poeira". Pessoalmente, chegado o momento, gostaria de ainda poder falar qualquer coisa, mas duvido que a tecnologia de respiração assistida me deixe essa opção. Se for o caso, como Stendhal, direi: "Vivi, amei, escrevi". Mas colocando estes dois últimos verbos no modo hipotético: teria gostado de amar e de escrever.


Tradução de Clara Allain.


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