São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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O MARKETING NEGATIVO

RECUSA RADICAL E DATADA DAS FORÇAS DO SISTEMA FAZ DO PUNK, HOJE, UMA INESPERADA FORÇA QUE SE CONTRAPÕE À UNIFORMIDADE DA GLOBALIZAÇÃO

JANICE CAIAFA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na sua avassaladora passagem pelo mundo, o punk desafiou imperativos, riu da satisfação adaptada de muitos e afirmou uma intransigência absolutamente -na música, na roupa e sobretudo na atitude. Tanto na época de seu surgimento, em 1976/ 77, quanto no levante dos anos 1980, o punk aguçou o rock. Ele criou um som completamente exasperante, atritante, que não queria ser vendável.
O punk é o antimarketing. Garotos e garotas do mundo inteiro vestiam negro, se furavam, redesenhando os contornos no corpo humano. Explodiam assim em mil devires (devir-andróide, devir-animal) -ou seja, virando outras coisas, arrebentando as identidades, se colocando onde não era possível pegá-los.
Certo é que sempre houve os "poseurs" -ou, como se dizia entre os punks do Rio de Janeiro, os "boys", os burgueses posando de punks. A luta de fato era clara -é assim o punk- contra as tentativas de encaixe, de captura, de neutralização da radicalidade punk. As configurações locais foram diversas, mas predominava no punk em geral a atitude de estabelecer distâncias, definições, preservando a radicalidade, fazendo ver que há um inimigo.

Estratégias de resistência
O "não" era claro -à banalização operada pela mídia, à comercialização, ao "sistema", à moda que uniformiza. Parecem estratégias em desuso. De fato, hoje enfrentamos poderes que parecem antes de tudo proporcionar e premiar -evasivos, ondulantes, se furtam à mira do "não". Responda à TV interativa, cadastre-se neste site, participe da hoste alegre dos consumidores. Nada de dissídio trabalhista, os patrões agora chegam até seus empregados, abrem-se para sua participação e se ocupam mesmo da questão social.
O poder hoje nos incita constantemente a nos inscrever em seus repertórios, aparentemente para nossa vantagem.
Nesse contexto em que tudo se confunde, ceder e compor viram até estratégias de resistência.
Ora, tudo iSso poderia, paradoxalmente, nos levar a invocar a atitude punk. Tão inatual, mas talvez por isto mesmo eficaz e criadora neste momento -justamente por não ter passado para a atualidade, por sua alteridade em relação a nosso presente. "Punk is not dead?" [O punk não está morto?].
Haveria talvez o aproveitamento desse empenho tão grande que produziu tantos acontecimentos. São conquistas que talvez possam repercutir hoje de várias formas -mesmo que produzir atrito nessa superfície ondulante e complacente do poder seja tão difícil. O punk sempre proclamou um "sem futuro", como uma estrela que extraísse luz de seu desaparecimento.


Janice Caiafa é antropóloga, poeta e professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora de, entre outros, "Ouro" (7Letras) e "Movimento Punk na Cidade - A Invasão dos Bandos Sub" (Jorge Zahar).


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