São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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O macaco cientista

ROBERT LOUIS STEVENSON

Em certa ilha do Caribe, eis que se erguia uma casa, contígua a um extenso arvoredo. Na casa morava um vivisseccionista e, nas árvores, um clã de macacos antropomorfos. Deu-se que um desses, sendo pego por acaso pelo vivisseccionista, por algum tempo foi mantido numa jaula no laboratório. Lá o macaco, apavorado com o que via, por tudo quanto ouviu, se interessou a fundo; e, como teve a felicidade de ainda cedo escapar de sua jaula (a de número 701) e de voltar para sua própria família com apenas uma lesão sem gravidade no pé, julgou que ele mesmo, no fim das contas, saíra em grande vantagem.
Bastou-lhe estar de regresso para se intitular doutor e começar a incomodar seus vizinhos com a pergunta: por que não são progressistas os macacos?
"Não sei o que quer dizer progressista", disse um deles, jogando um coco na avó.
"Não sei nem quero saber", disse um outro, dependurando-se numa árvore próxima.
"Ora, deixe disso", gritou um terceiro.
"Que se dane o progresso!", disse o chefe, que era um velho conservador de força bruta. "Tentem proceder melhor assim mesmo, do jeito que vocês são."
Mas o macaco cientista, ao estar só com os machos jovens, fez-se ouvir com mais atenção.
"O homem não passa de um macaco desenvolvido", disse ele, com o rabo enrolado num galho alto. "Como o registro geológico ainda está incompleto, é impossível dizer de quanto tempo ele precisou para se levantar e de que tempo poderemos nós precisar para seguir seus passos. Mas, mergulhando decididamente "in medias res" ["no meio das coisas"; expressão de uso outrora freqüente que procede do verso 148 da "Arte Poética", de Horácio], por um sistema concebido por mim, creio que surpreenderemos a todos. O homem perdeu séculos com a religião, a moral, a poesia e outras bobagens, séculos antes de chegar à ciência propriamente dita, e só há pouco ele começou a fazer vivissecção. Nós vamos inverter as coisas, começando pela vivissecção."
"Pelo amor do coco, o que é vivissecção?", perguntou um macaco.
O doutor explicou então em detalhes o que tinha visto no laboratório; e alguns de seus ouvintes, alguns, mas nem todos, se encantaram com aquilo.
"Nunca ouvi falar de nada tão bestial!", exclamou um macaco que perdera uma orelha numa briga com a tia.
"E qual a utilidade disso?", perguntou outro.
"Pois você não vê?", disse o doutor. "Fazendo vivissecção em homens, descobrimos como os macacos são feitos e assim progredimos."
"Mas por que não fazer vivissecção em nós mesmos?", perguntou um de seus discípulos, que era dado a discussões.
"Que horror!", disse o doutor. "Não vou ficar sentado aqui ouvindo coisas assim; em público, pelo menos, não."
"Mas e os criminosos?", indagou o encrenqueiro.
"É altamente questionável que exista algo como o certo e o errado: e onde está seu criminoso?", respondeu o doutor. "Além do mais, o público não toleraria isso, e os homens servem muito bem; são todos do mesmo gênero."
"Parece uma brutalidade com os homens", disse o macaco de uma orelha só.
"Bem, para começo de conversa", disse o doutor, "os homens dizem que nós não sofremos e que somos o que eles chamam de autômatos; tenho pois todo o direito de dizer o mesmo sobre eles".
"Acho isso um absurdo", disse o encrenqueiro; "e é, além do mais, autodestrutivo. Se são apenas autômatos, não há nada que eles possam nos esclarecer sobre nós; mas, se forem capazes de nos instruir com alguma coisa a nosso próprio respeito, ora, cocos!, eles então têm de sofrer".
"Seu modo de pensar é bem o meu", disse o doutor, "e esse argumento, na verdade, só é apropriado para as revistas mensais. Digamos pois que eles sofram. Muito bem, é em benefício de uma raça inferior, que necessita de ajuda, que sofre: nada então pode haver de mais correto. Além disso, sem dúvida alguma faremos descobertas que a eles mesmos irão provar-se úteis".
"Mas como haveremos de fazer descobertas", indagou o encrenqueiro, "se não sabemos pelo que procurar?".
"Deus meu, valha-me o rabo!", bradou o doutor, exasperado em sua dignidade. "Creio que nas ilhas Windward não há um símio que seja de espírito tão pouco científico quanto o seu! Ora essa, saber o que procurar! A verdadeira ciência não tem nada a ver com isso. Você vai só fazendo vivissecções ao acaso e, se de fato descobrir alguma coisa, que surpresa será maior do que a sua?"
"Tenho ainda uma objeção a fazer", disse o encrenqueiro, "muito embora, note bem, esteja longe de negar que seria uma brincadeira ótima. É que os homens são tão fortes, e ainda por cima têm aquelas armas...".
"Por isso", concluiu o doutor, "nós vamos apanhar uns bebês".
Na mesma tarde, o doutor voltou ao jardim do vivisseccionista, surrupiou uma de suas navalhas pela janela do quarto de vestir e, numa segunda ida até lá, retirou seu bebê de uma bacineta no quarto das crianças. Houve um grande rebuliço no alto das árvores. O macaco de uma orelha só, que era um bom camarada, acalentou o bebê nos braços; outro lhe enfiou amêndoas na boca, entristecendo-se porque o bebê não quis saber de comê-las.
"Não tem juízo", disse ele então.
"Mas seria melhor se não chorasse", disse o de uma orelha só; "parece um macaco, de tão horroroso!".
"Isso é uma infantilidade", disse o doutor. "Passem-me a navalha."
Nesse instante, porém, o sem orelha, após cuspir no doutor, saiu fugindo com o neném para o topo da árvore vizinha.
"Bah!", gritou o macaco de uma orelha só, "vivissecte-se você mesmo!".
Nisso todo o bando começou a gritar em correrias; e a algazarra chamou a atenção do chefe, que andava pelas redondezas, catando pulgas.
"Que está havendo por aqui?", gritou o chefe. E, ao lhe ser dito o que ocorria, coçou a testa. "Pelo maior dos cocos!", gritou ele de novo. "Será que é tudo um pesadelo? Como podem os macacos rebaixar-se a um tal barbarismo? Levem esse bebê de volta para lá de onde ele veio."
"Você não tem espírito científico", disse o doutor.
"Se tenho ou não espírito científico", replicou o chefe, "não sei; mas tenho aqui um pau bem grosso e, se você puser as garras nesse neném, quebro-lhe a cabeça na hora".
E assim eles levaram o bebê para o espaço do jardim da frente. O vivisseccionista (um respeitável chefe de família) ficou no auge da alegria e, com toda a leveza de seu coração, antes de o dia terminar deu início, em seu laboratório, a mais três experimentos.


Tradução de Leonardo Fróes.


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