São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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Vida e obra de Reverendo Padre Cruchard pelo R.P. Cerpet, SJ

Dedicado à senhora baronesa Dudevant, Aurore Dupin

GUSTAVE FLAUBERT

Bartholomé Denys Romain Cruchard nasceu em Maniquerville-lès-Quiquerville, diocese de Lisieux.
A mãe, pobre camponesa, deu à luz num lagar de sidra -onde trabalhava por então-, sem demora nem dor, de modo que Cruchard costumava dizer: "Nosso Senhor nasceu numa manjedoura, e eu, num lagar", pilhéria que não deixava de repetir quando ensinava o catecismo às criancinhas.
Seus primeiros anos não tiveram absolutamente nada de notável; passaram-se no campo, onde ele pastoreava os animais sem imaginar que um de nossos maiores pontífices tivera origens igualmente modestas. Mas, em vez de vagabundear, como outros teriam feito, passava seu tempo a entoar cânticos à sombra das árvores, enquanto esculpia, munido de um canivete, pequenos objetos devocionais.
Foi em meio a tais ocupações que o surpreendeu, certo dia, monsenhor Cuisse, bispo da diocese, e esse santo prelado, à vista de tanta candura, não pôde conter as lágrimas. Tendo interrogado o jovem Cruchard e dando-se por satisfeito com as respostas, confiou-o aos cuidados do senhor padre Mauquonduit e, três anos depois, admitiu-o entre os bolsistas que ele mesmo mantinha no seminário de Lisieux.
Mas as esperanças de monsenhor viram-se, de início, singularmente frustradas. Cruchard, não obstante sua aplicação, era sempre o último da classe e parecia (com o perdão da palavra) imbecil.
Estavam a ponto de expulsá-lo do seminário, e seus pais, que a proteção de monsenhor fizera sonhar com a fortuna, estavam desesperados, quando Cruchard resolveu fazer a peregrinação a Hoqueuville, a fim de implorar a assistência da santa Mãe de Deus. Voltou ao seminário; era dia de redação. Cruchard tirou o primeiro lugar.
A partir desse momento, a vida de Cruchard no seminário não foi senão uma seqüência de triunfos. Não houve ano em que não arrebatasse os primeiros prêmios, e o eco de seus êxitos disseminara-se por toda a paróquia. Todos se alegravam à vista do rapaz, que, todavia, furtando-se aos elogios e confinado em sua cela, dedicava-se com ardor à dupla cultura das letras sagradas e profanas.

Tema escabroso
Foi ao fim do curso de retórica que ele compôs, para a cerimônia de premiação no seminário, uma tragédia latina intitulada "A Destruição de Sodoma". O tema era escabroso, Cruchard soube evitar os perigos e levou a decência a tal ponto que mal se percebia de que se tratava. Contudo, por razões de disciplina (ou de outra ordem, talvez), proibiu-se a representação -e Cruchard, é mister confessar, sentiu um vivo dissabor.
Foi uma razão para se devotar à lógica. Seu amor a são Tomás de Aquino fez-se tão intenso que empregava parte das noites a ler e reler esse autor -e como, no dormitório, sempre havia algum volume sob seu travesseiro, um dos colegas dizia espirituosamente que ele ia para a cama com o anjo da escola!
Graças a esse labor perseverante e ainda, vale recordar, à proteção daquela cujos favores ele já merecera, Cruchard estreou com estrondo, pregando na igreja catedral de Bayeux, onde, por toda uma quaresma, a província pendia de seus lábios.
Não tinha a doçura de Bourdaloue nem quiçá a polidez de Massillon; aproximava-se de Mascaron pelo colorido, de Cheminais pela graça e do padre Bridaine pela veemência; se é que se pode censurar alguma coisa na eloqüência de Cruchard, é que por vezes fosse incisiva demais e, por assim dizer, asiática, defeito perdoável aos grandes talentos e no qual o príncipe dos oradores latinos se acusa de haver incorrido, após longa temporada na ilha de Rodes.
A récita de Cruchard estava à altura de seu estilo; dotado de voz sonora, ele tonitruava e, como um novo Isaías, quisera despir-se -pois muitas vezes viu-se obrigado, descendo do púlpito, a trocar até três vezes a sobrepeliz, tão inundado de suor estava. Seu peito logo se debilitou, e, como consumido pelo fogo de sua eloqüência, Cruchard teve que se dar algum repouso. Aproveitou a circunstância de que o marquês de Crefforens, embaixador junto do rei de Nápoles, quisesse levá-lo consigo e fez uma viagem à Itália.

Estudo do árabe
Desembarcando na terra do velho Evandro, Cruchard entregou-se ao entusiasmo pelas belas-artes: medalhas, quadros, antigüidades -ele estuda, anota, devora tudo!
Quis mesmo aprender árabe com um renegado que conhecera na antiga Partênope, e nessa ocasião seus inimigos espalharam o rumor de que Cruchard estivera a ponto de tomar o turbante.
Cruchard julgou que responder a uma calúnia tão infame estava abaixo de sua dignidade, mas não deixou de pressentir que seu amor às letras o levava longe demais e, ao fim de três anos, tendo-se apressado a retornar à França, solicitou e obteve a cúria de Manicamp que, de resto pouquíssimo importante, proporcionou-lhe todo o ócio necessário a suas obras, das quais citaremos as mais importantes.
"De Turre Babylionorum", três vols. in-fólio; "A Autenticidade da Revelação Provada por Diversas Inscrições Descobertas entre os Selvagens da América do Norte", seguida de um dicionário e de uma gramática da língua desses povos; "O Ateísmo Derrotado", em réplica a diversos artigos do senhor B., dois vols.; "Architofel, ou os Perigos da Ambição", romance publicado sob o véu do anonimato; "As Artimanhas de Calvino", dedicado aos da R.P.R; "Diabolus et Jansenius", diálogo ao gosto de Erasmo; "De Pondere, Intimis, Mensura Figuraque Arcae Noë, et Numero Animalium Authentico quae in Illa Inclusa et Vedi Finora cum Novis Caelaturis Magnificis", Lugduni Batavorum, quatro vols, in-fólio; "Manual de Oração Extraído dos Padres Gregos com Remissões às Regras de Santo Inácio"; "Vida de Monsenhor Cuisse", oito volumes, inacabada.
Apesar dessas obras, que publicou uma atrás da outra, Cruchard teria continuado desconhecido se uma circunstância extraordinária não o tivesse convocado a mais vasto teatro. A favorita de um grande príncipe reinava então sobre a França, e, a fim de dela libertar seu senhor, um ministro hábil, político profundo (perfeitamente informado por *** -o leitor compreenderá o escrúpulo que nos impede de declarar seu nome), teve a idéia de trazer o padre Cruchard a Paris, a fim de torná-lo diretor de consciência dessa pessoa ilustre.
Um lugar tão novo não espantou Cruchard. Em meio às pompas de Versalhes, conservou a mesma firmeza viril que exibia no campo e logo se fez querido de toda a corte pela graça de seu espírito e pela facilidade de seu convívio -a tal ponto que, à mesa do senhor duque de Laroche-Guyon, comeu sozinho um peru e três coelhos, e monsenhor de Chavignolles (o mesmo cujo sobrinho teve um fim tão trágico nas galeras de Malta e que, apesar de grande militar, passava apenas a leite) assustou-se com seu apetite e exclamou: "Padre Cruchard, o senhor é o primeiro teólogo e o primeiro garfo do reino!".
Seis meses mais tarde, a favorita abandonara a corte e, sob o nome de Louise de la Miséricorde, preparava-se a edificar o mundo com suas virtudes assim como o afligira com seus erros. A partir de então, todas as grandes damas suspiravam por ter o padre Cruchard como diretor de consciência.
Muitas dessas ilustres mundanas não o deixavam em paz, por assim dizer, o dia inteiro. Rainhas mandavam buscá-lo a todo instante. Para que chegasse mais rápido, a senhora de Lavillac mandava-lhe a carruagem, e a senhorita de Brichateau confessava que não podia cear sem ele. Ainda assim, Cruchard guardava-se em especial para as Visitandinas ou, melhor dizendo, para as Damas do Desespero, que são um ramo daquelas. Tão logo chegava, todas se precipitavam como corças alvoroçadas a fim de sorver as águas refrescantes de sua palavra.
Enquanto viveu, elas não quiseram nenhum outro e lançaram mão de mil artifícios a fim de mantê-lo. Até mesmo monsenhor arcebispo de Paris fracassou; era uma afeição similar àquela das recém-conversas por monsenhor de Cambrai e àquela das carmelitas pelo senhor de Bérulle. Em suma, parecia-lhes impossível receber a graça senão pelo canal de Cruchard.

"Como vai a jumenta"?
Pois ele sabia amar! Pois ele conhecia os corações! Hábil no trato das paixões, sabia distinguir-lhes as fontes, sabia lançar-lhes ao meio a âncora da redenção ou, expondo seus erros, fazer com que chegassem a bom porto. "Não vos atormenteis com o pecado", dizia ele, "essa inquietação é um fermento de orgulho. Nem todas as quedas são perigosas, e por vezes os vícios tornam-se degraus para ascender aos céus". A exemplo do bem-aventurado são Francisco de Sales, chamava a carne de jumenta. Chegava mesmo a abordar suas penitentes, perguntando-lhes com um sorriso: "Como vai a jumenta?", e não permitia que fossem duras demais com o pobre animal.
Finalmente, pessoas das mais piedosas concordavam que ele as ajudava a fazer infinitos progressos rumo à perfeição, enquanto outras diziam ter experimentado mais prazer nas conversas com o padre Cruchard do que nos braços dos amantes. Mas, se era um tanto suave quanto à moral, a ponto de ser tachado de molinista, ele se mostrava inflexível quanto ao dogma, não admitindo que pudesse haver qualquer mérito fora da igreja e, quando lhe objetavam com os sábios da Antigüidade, ele dizia: "Estou seguro de que Deus fez a graça de torná-los cristãos antes da morte, de um modo ou de outro".
Depois de santo Epifânio, certamente não terá havido homem mais indignado diante da heresia. A simples idéia de heresia causava-lhe acessos de fúria e (em suas palavras) não podia ver um jansenista "sem ter vontade de estrangulá-lo".
Nos últimos anos de vida, Cruchard, muito obeso, não saía mais de seu gabinete, e suas faculdades, há que reconhecer, diminuíram-se consideravelmente. Conservou, ainda assim, sua alegria inalterável, da qual deu uma última prova alguns minutos antes de morrer, quando disse, zombando de seu nome: "Sinto que a Bilha vai se quebrar de vez".
Que me seja permitido, retomando esse último motejo, afirmar, com todos que te conheceram, que "tu eras, ó Cruchard, um vaso de eleição".


Tradução de Samuel Titan Jr.


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