São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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A biopolítica humanitária

Slavoj Zizek

Quando Donald Rumsfeld qualificou os combatentes do Taleban feitos prisioneiros de "combatentes ilegítimos" (em oposição aos prisioneiros de guerra "regulares"), não quis dizer simplesmente que eles foram proscritos por suas atividades criminosas terroristas: quando um cidadão americano comete um crime grave, como homicídio, ele não deixa de ser um "criminoso legítimo", e a distinção entre criminosos e não-criminosos não se sobrepõe à distinção entre cidadãos "legítimos" e aqueles que, na França, são conhecidos como "sans-papiers" (sem-documentos). Talvez a categoria de "homo sacer", reatualizada recentemente pelo filósofo Giorgio Agamben em seu livro homônimo ("Homo Sacer", ed. da UFMG) -aqueles que, segundo o direito romano da Antiguidade, podiam ser mortos com impunidade, e cuja morte era destituída de valor sacrificial, pela mesma razão-, seja a mais apropriada para cobrir essa nova categoria emergente dos excluídos, que não são apenas terroristas, mas também os receptores de ajuda humanitária (ruandeses, bósnios, afegãos etc.). O "homo sacer" de hoje é o objeto privilegiado da biopolítica humanitária. Em ambos os casos, a população é reduzida a objeto da biopolítica. Assim, é crucial somar o lado humanitário à lista usual dos "homo sacer" de hoje (os "sans-papier" franceses, os favelados brasileiros, os moradores dos guetos afro-americanos dos Estados Unidos etc.): talvez as pessoas vistas como receptoras de ajuda humanitária sejam a melhor personificação do "homo sacer" atual. Devemos, portanto, supor o paradoxo de que campos de concentração e campos de refugiados, para a entrega de ajuda humanitária, representam as duas faces, "humana" e "desumana", da mesma matriz formal "sócio-lógica". A piada cruel do filme "Ser ou Não Ser" ("To Be or Not to Be", 1942), de Ernst Lubitsch, se aplica em ambos os casos: quando indagado sobre campos de concentração alemães na Polônia ocupada, o "Erhardt" do campo de concentração responde, irritado: "Nós concentramos, e os poloneses acampam". E o mesmo não se aplicaria, também, à falência da Enron (companhia norte-americana do setor energético), em janeiro de 2002, que pode ser interpretada como uma espécie de comentário irônico sobre o conceito da sociedade de risco? Milhares de funcionários que perderam seus empregos e suas economias foram expostos a riscos, sem dúvida nenhuma, mas não tiveram nenhuma possibilidade real de escolha. Para eles, o risco apareceu como destino, fatalidade. Já aqueles que efetivamente dispunham de informações privilegiadas sobre os riscos -e, também, da possibilidade de intervir na situação (os diretores da empresa)- minimizaram seus riscos ao vender suas ações antes da falência. Assim, os riscos e as opções reais foram muito bem distribuídos. Portanto, fazendo referência ao conceito popular atual segundo o qual a sociedade de hoje pode ser descrita como a sociedade das escolhas e dos riscos, pode-se dizer que alguns (os diretores da Enron) fazem todas as escolhas, enquanto outros (os funcionários comuns) correm todos os riscos. Percebe-se essa lógica do "homo sacer" claramente no modo como a imprensa ocidental relata os fatos relativos à Cisjordânia ocupada: enquanto o Exército israelense, conduzindo o que Israel qualifica de uma operação "de guerra", ataca as forças policiais palestinas e destrói sistematicamente a infra-estrutura palestina, sua resistência é citada como prova de que estamos tratando com terroristas. Esse paradoxo está inscrito na própria noção de "guerra ao terror" -uma guerra estranha, na qual o inimigo é criminalizado se ele simplesmente se defende e reage com disparos ao ser alvo de disparos. Assim, está surgindo uma nova categoria que não é o inimigo comum nem o criminoso comum: os terroristas da Al Qaeda não são soldados inimigos, são "combatentes ilegítimos"; mas tampouco são simples criminosos. Os EUA se opuseram de frente à idéia de que os ataques ao WTC fossem tratados como atos criminosos apolíticos. Em suma, o que está emergindo na pele do terrorista ao qual se declara guerra é precisamente a figura do inimigo político, excluído do espaço político propriamente dito.

Dois tipos de conflito
Essa é outra faceta da nova ordem global: já não temos guerras no sentido antigo, do conflito regulamentado entre Estados soberanos, no qual vigoram determinadas regras (o tratamento dado a prisioneiros, a proibição de determinadas armas etc.). O que restam são dois tipos de conflito: ou as lutas entre grupos distintos de "homo sacer", isto é, "conflitos étnico-religiosos", que violam as leis dos direitos humanos universais, não contam como guerras propriamente ditas e pedem a intervenção "humanitária pacifista" de potências ocidentais, ou ataques diretos contra os EUA ou outros representantes da nova ordem global, caso em que não temos guerras propriamente ditas, apenas situações em que "combatentes ilegítimos" opõem resistência às forças da ordem universal.
Neste segundo caso, nem sequer podemos imaginar uma organização humanitária neutra, como a Cruz Vermelha, fazendo a mediação entre as partes em guerra, organizando trocas de prisioneiros etc.: um lado no conflito (a força global dominada pelos EUA) já assume o papel da Cruz Vermelha -ele não se enxerga como uma das partes em guerra, mas como um agente mediador da paz e da ordem global que está esmagando rebeliões específicas e, ao mesmo tempo, fornecendo ajuda humanitária às "populações locais".
Essa estranha "coincidência dos opostos" chegou ao auge em abril de 2002, quando o deputado norueguês direitista Harald Nasvik propôs os nomes de George W. Bush e Tony Blair como candidatos ao Prêmio Nobel da Paz, citando seu papel decisivo na "guerra ao terror". Com isso, o velho lema orwelliano segundo o qual "guerra é paz" finalmente se torna realidade, de tal modo que a ação militar contra o Taleban é quase proposta como maneira de garantir o livre fornecimento de ajuda humanitária. Assim, já não temos a oposição entre guerra e ajuda humanitária: as duas estão estreitamente ligadas.
A mesma intervenção pode funcionar simultaneamente em dois níveis: a derrubada do regime do Taleban é apresentada como parte da estratégia adotada para ajudar a população afegã oprimida pelo Taleban -como disse Tony Blair em setembro de 2001, talvez seja preciso bombardear o Taleban para garantir o transporte e a distribuição de alimentos aos afegãos. Talvez a imagem mais emblemática de como as "populações locais" são tratadas como "homo sacer" é a de um avião de guerra americano sobrevoando o Afeganistão: nunca se sabe ao certo se ele está prestes a lançar bombas ou pacotes de comida.


Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem". Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.


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