São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ crítica

Em "Abril Despedaçado" Walter Salles transpõe a tragédia grega de Ésquilo para uma guerra entre famílias no sertão nordestino

O deus das pequenas coisas

Anthony Minghella
especial para "The Gardian"

É testemunho de um ano extremamente bom para o cinema internacional o fato de os jurados da Academia de Hollywood não terem considerado para melhor filme estrangeiro de 2001 as conquistas de "O Quarto do Filho", de Nanni Moretti, ou "Abril Despedaçado", obra de meu amigo, o diretor brasileiro Walter Salles, a notável sequência de "Central do Brasil".
Realmente há grandes possibilidades de que "Abril Despedaçado", tão formal e severo quanto sua paisagem impiedosa, não seja recebido com a mesma adulação do público e da crítica que cercou "Central do Brasil". Com sua pintura dickensiana dos despossuídos do Brasil e um desempenho impressionante de Fernanda Montenegro, "Central do Brasil" partiu corações no mundo inteiro, conquistando 55 prêmios internacionais, incluindo o Urso de Ouro no Festival de Berlim em 1998 e um Bafta -o Oscar do cinema britânico.
O filme também transformou a carreira de seu diretor e lançou Salles em uma jornada que o levou literalmente a uma odisséia de um ano promovendo "Central do Brasil", mas, de modo mais significativo, o pôs ao alcance do canto de sereia de Hollywood e das oportunidades de filmar em inglês com apoio financeiro substancial. Talvez o mais notável em "Abril Despedaçado" seja o fato de ser filmado em português.
O passado de Salles como crítico de cinema, documentarista de cineastas (incluindo Fellini e Kurosawa), produtor e diretor de comerciais é evidente em quase todos os quadros requintados de "Abril Despedaçado". O filme cria uma evocação pungente de uma primitiva paisagem rural, usando uma gramática cinematográfica que absorveu completamente a sintaxe do cinema mundial. Há fortes ecos de Vittorio de Sica e dos neo-realistas italianos, do método de documentário "mosca na parede" (misturando atores profissionais e não-profissionais). Também é intensamente pessoal, distintivo e sem concessões.
David Hare, um profundo admirador de "Abril Despedaçado", me escreveu sobre seu entusiasmo: "Salles usa a câmera como uma espécie de caligrafia, de uma maneira que você não percebe que ele está lá. Tem um dom infalível para o núcleo emocional da história e então, depois de definir seu rumo, parece se ausentar, de modo que você olha para a coisa em si". Hare também observou que, nesse sentido, Salles filma como um marxista -demonstrando os meios de produção, captando o que as pessoas realmente fazem, da mesma maneira que John Ford (incidentalmente um dos heróis de Salles) fez na sequência das minas de carvão em "Como Era Verde o Meu Vale".
Em "Abril Despedaçado" Salles mostra como se fabrica açúcar. A conquista especial do filme -vital em qualquer discussão sobre o que faz um filme falar ao público internacional- é que ele aborda uma coisa precisa e histórica e, ao transmiti-la com especificidade, a traduz para o universal e mítico. O filme, situado em 1910 num mundo árido e distante da sociedade civilizada, torna-se profundamente relevante e contemporâneo.
"Abril Despedaçado" se baseia no romance homônimo do albanês Ismail Kadaré (lançado no Brasil pela Cia. das Letras). Salles viu na história do Kanun, o código que rege as disputas familiares na Albânia, um paralelo com os conflitos familiares, geralmente conduzidos por proprietários de terras, que definiram as fronteiras de certos territórios no agreste do Nordeste brasileiro, na primeira metade do século 20. Por sugestão de Kadaré, Salles também mergulhou nas tragédias de Ésquilo e descobriu que na Grécia Antiga os crimes sangrentos não eram julgados pelo Estado.
Em vez disso, a solução era determinada pelas próprias famílias em guerra, que estabeleciam seus próprios códigos de reparação. Isso era semelhante à situação no Brasil, onde a ausência do Estado criou um vazio em que se desenvolveram guerras pela terra, e um ciclo incessante de violência devastou a região. Salles descobriu uma série de códigos que definem essas disputas, compiladas no livro "Lutas de Família no Brasil", de Sérgio Machado: "A vingança é um dever absoluto e inquestionável, uma obrigação inescapável sob pena de banimento.
Nesses casos, a desgraça é não apenas do indivíduo, mas de toda a família". E ainda: "O dever da vingança recai naturalmente sobre o parente mais próximo da vítima. Se o parente mais próximo não realizar esse dever, a ofensa ao morto se voltará contra ele".
Salles conta sua história com certo distanciamento. Uma vida tirada, outra vida tirada em troca. Existe uma recusa deliberada de psicologia ou explicação. Essa técnica por si só distingue o filme da dramaturgia comercial, em que motivo e caráter ditam a forma de quase todo o filme. Salles defende a teoria de que o comportamento nesse filme é definido pelo atavismo, pela aridez punitiva da terra, por um deslocamento da lógica. Assim como em "Central do Brasil", o diretor usa a perspectiva de um menino para conferir clareza e inocência à sua narrativa. Pacu, o mais jovem dos dois filhos que restaram à família Breves, presencia seu irmão ser encarregado pelo pai de vingar a morte de seu irmão mais velho.
Está entendido que essa morte, por sua vez, exigirá uma reparação. Assim como os bois desatrelados da moenda de cana dos Breves continuam se arrastando em círculo, essa violência deve continuar.
O tempo necessário para o sangue na camisa de uma vítima secar e para brotar na camisa da próxima dá ao filme uma cronologia cuidadosamente calibrada. "Agora sua vida está dividida em duas", adverte a Tonho o patriarca cego do clã rival Ferreira. "Os 20 anos que você já viveu e o curto tempo que lhe resta. Está vendo aquele relógio? Cada vez que ele bater: mais um, mais um, mais um, estará lhe dizendo: menos um, menos um, menos um." É totalmente cinema de cineasta, cada imagem apresentada com um cuidado obsessivo; uma série de quadros austeros, a luz modelada num extremo claro-escuro.
Salles acredita, como Antonioni, que a geografia física tem um impacto sobre a geografia humana. Ele levou o elenco e a equipe para a região isolada, a mais de 150 quilômetros do hotel mais próximo, num calor terrível, preparou os atores durante várias semanas até que eles conseguissem executar o trabalho dos plantadores de cana, depois contou com a luz disponível para fotografar as imagens cruas que definem o filme.
De certa forma, o filme também é refém dessas imagens, assim como seus atores. Aqui as rédeas são mantidas justas, os atores atrelados à arquitetura do filme. Há pouco da confusão humanitária de "Central do Brasil", aquelas rupturas inesperadas que -Fernanda Montenegro delineando a boca com batom no horrível banheiro de um posto de gasolina- interrompem as estratégias formais do diretor.
O interlúdio romântico do filme, um anseio transferido de irmão para irmão, quase não transpira. Sua sensualidade recebe pouco alívio. Este é um filme para admirar, mais que amar, e termina sem a catarse emocional que transportou as platéias de "Central do Brasil".
E, num filme em que as regras são tudo -"Nesta casa os mortos comandam os vivos", observa a mãe de Pacu-, o evento que conspira para subverter essas regras tem significado opaco. Se "Abril Despedaçado" não satisfaz totalmente é porque sua notação dos efeitos da "omertà" sistemática é decidida pelo ato impulsivo de uma criança. O público pode decodificar esse ato como motivo suficiente para deter a matança, mas as próprias famílias estão além dessa lógica -do mesmo modo que se poderia dizer que um espelho continua refletindo, mesmo depois de quebrado- e assim o filme se esforça para alcançar sua epifania.
Mas esses são problemas menores num filme que consegue falar muito sobre a violência, embora quase sem palavras. Há imagens -a intensa penetração do sol pelas fendas de uma cabana, a moenda vista de cima, acionada pelos bois exaustos, uma camisa ensanguentada no varal, agitada pelo vento, Tonho caminhando para seu destino iluminado pela lua- que perdurarão muito depois que as extravagâncias grandiosas e cheias de efeitos deste ano desaparecerem da mente.
A cena central de vingança, em que Tonho mata seu equivalente na família Ferreira, é filmada com uma verve de parar o coração, enquanto o caçador e a presa correm pelos canaviais, o primeiro plano piscando numa perseguição fraturada e sem fôlego, rompendo os ritmos até então graves do filme. É o mais próximo da poesia que o cinema pode chegar.


Anthony Minghella é cineasta britânico, diretor de, entre outros, "O Paciente Inglês".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: + autores: A biopolítica humanitária
Próximo Texto: Ponto de fuga - Jorge Coli: A cabeça e a coxa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.