São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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Ponto de fuga

A cabeça e a coxa

Jorge Coli

"Está claro, nem remotamente "O Escorpião Rei" se leva a sério. Na sua maneira rude, é a paródia de uma paródia." Essa passagem se encontra numa crítica de Stephen Holden, para o "New York Times". Tanto melhor: o filme se entrega à energia narrativa nutrida pelo humor. Brinca com uma visualidade inverossímil, cuja natureza é muito próxima dos quadrinhos e dos desenhos animados. São parentescos que já foram demonstrados pelo diretor Chuck Russell no "Pesadelo em Elm Street nš 3" e, sobretudo, em "O Máscara". Elas oferecem uma grande plasticidade às cenas de "O Escorpião Rei", que se tornam "elásticas", por assim dizer, com personagens catapultados pelo espaço largo.
O filme é mais solar do que os dois "Conan", dos quais ele deriva. Lembra ainda, em alguns aspectos, o díptico que Fritz Lang realizou em 1958, intitulado "O Tigre da Índia" (2 DVDs, Image): a prova pela qual a sensual feiticeira deve passar, desafiando cobras, a exposição do casal ao Sol do deserto fazem ressoar semelhanças entre os dois universos.
No entanto os "Conan" e o filme indiano de Lang eram iniciáticos, cada qual à sua maneira. "O Escorpião Rei", ao contrário, transforma o périplo individual em aventura política, em que uma federação de povos excluídos consegue derrubar a tirania para implantar um Estado justo. São negros, mulheres, malandros, foras-da-lei, crianças, que se unem e vencem. Pouco importa que o herói tenha uma circunferência de coxa maior que a de sua caixa craniana. O cinema de Hollywood é bem mais atilado do que sonha nossa vã filosofia.
Spoof - Nenhum intelectual "highbrow" destas e de outras plagas irá ver "Não É Mais um Besteirol Americano", primeiro filme do diretor Joel Gallen. Se fosse, encontraria ali seu deboche: ao explicar a uma classe que só vale o humor fino e literário de Shakespeare, Molière ou Wilde, um professor pedante vê irromper na sala de aula a mais escancarada e engraçada cena escatológica. Está claro, seria possível enobrecer isso invocando Boccaccio ou Rabelais. Mas não é preciso. A risada se firma por si só neste filme que faz a caricatura de um gênero já caricatural nele próprio, isto é, o das comédias de adolescentes. O arremedo e a zombaria explodem graças à inteligência truculenta e hilariante.

Jugular - "A Rainha dos Condenados", dirigido por Michael Rymer, possui o encanto dos filmes B, que hoje é tão raro. A presença de Aaliyah é mais mítica do que eficaz, antes símbolo do que atriz, e comovente por essa mesma razão. Muito menos ambicioso do que "Entrevista com o Vampiro", de Neil Jordan, demonstra, porém, afinidade maior com o universo de Anne Rice. Não se trata de fidelidade ao texto. Trata-se de suscitar um certo mundo decadente e deslumbrar-se pela cultura de modo meio ingênuo e desarmado, levando o kitsch, o brilho das quinquilharias, a transformar-se em sentimento melancólico de morte. Stuart Townsend, pelo seu físico e indolência, corresponde melhor que Tom Cruise ao Lestat dos livros.

Baú - Os filmes desta entressafra que precede ao lançamento de "Homem-Aranha" e de "Guerra nas Estrelas" não se pretendem obras marcantes. São produções medianas do cinema norte-americano que uma certa atitude intelectual, cega e pretensiosa, demoniza e despreza ao mesmo tempo.
Ocorre que a força dos filmes criados em Hollywood é agora, como sempre foi, capaz de produzir obras complexas, para além dos limites de um consumo imediato. Obras também muito menos obedientes às tiranias ideológicas do que certos raciocínios esquemáticos supõem. A História encarrega-se de ensinar. Mestres venerados, filmes admirados no presente, como grandes feitos culturais do século 20; Hawks ou Sirk, "Rebecca" ou "Relíquia Macabra"; eram percebidos, no passado, como fazendo parte de uma indústria destinada apenas a divertir. Outros filmes, outros mestres, ainda mais discretos, hoje estudados e amados, eram como se não existissem, eram como se fossem indignos do olhar.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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