São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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O PRECONCEITO ESPELHADO

JOÃO SILVÉRIO TREVISAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A pesquisa Datafolha realizada durante a 9ª Parada GLBT de São Paulo revela características de uma parcela populacional que a sociedade brasileira teima em ignorar. Uma das questões apresentou a entrevistados de ambos os sexos a frase "alguns homossexuais exageram nos trejeitos, o que alimenta o preconceito contra os gays". Como resposta, 57% disseram concordar totalmente, e 19%, parcialmente com a sentença. Ou seja, uma grande parcela de homossexuais parece ter introjetado o preconceito social, culpando os homens efeminados pelo preconceito existente contra a população homossexual.


Em geral, ser efeminado é tão negativo quanto ser velho e feio


Nessa constatação está subjacente, antes de tudo, uma rejeição ao estereótipo social que define homossexuais como efeminados. A construção social da identidade homossexual masculina sofre com a perpetuação desse estereótipo, que constitui a base do preconceito. O terror de grande parte dos adolescentes masculinos que tomam consciência da sua orientação homossexual é cair no padrão de efeminação como uma vocação "natural", tornando-os vítimas de achincalhe e desprezo.
Assim, a rejeição à efeminação constatada pela pesquisa aponta para uma afirmação contra o estereótipo e uma garantia, perante a sociedade, de que o masculino não está sendo rompido. É preciso parecer genuinamente macho, como um mecanismo de defesa contra a "marca" efeminada veiculada pelo preconceito.
Mas aí se insere a constatação mais paradoxal da pesquisa: a reação homossexual ao estereótipo social leva homossexuais a praticarem o mesmo preconceito que os vitima. Nas salas de paquera gay da internet é quase lugar-comum a garantia de "virilidade" das ofertas sexuais e o rechaço a "desmunhecados". Muitas vezes chega-se à crueldade que beira o ódio homofóbico dos homossexuais supostamente másculos contra os efeminados.
Apesar das grandes exceções, o gosto médio no "açougue" homossexual ressoa o padrão consagrado, com a beleza e a juventude como principais moedas de troca. Em geral, ser efeminado é tão negativo quanto ser velho e feio. O pavor contra tais características "desabonadoras" remete ao medo da solidão, pois aumentariam a segregação de indivíduos homossexuais.
O preconceito introjetado reflete um grave problema que grassa como uma epidemia na população homossexual: a baixa auto-estima. Homossexuais vivem 24 horas por dia o risco da rejeição, em todas as instâncias da vida social -no trabalho, família, igreja, escola- e na mídia. Dois homens que se desejam são obrigados a repensar os papéis de gênero, para dividir entre si, de modo equânime e novo, o papel masculino e feminino conforme recebidos da sua cultura. Daí ser comum uma reação dúbia ao feminino, simultaneamente rejeitado e cultuado. Mas é também essa dubiedade que permite a homossexuais transitarem mais facilmente pelos gêneros.

"Marca" social
O dado mais importante da pesquisa Datafolha é detectado indiretamente. A população homossexual presente nas paradas e em situações longe da clandestinidade aponta para um fenômeno recente: a busca de uma nova identidade pública. Claro que há um grande contingente que continua mantendo uma vida secreta detrás de casamentos heterossexuais, alimentando uma "bissexualidade compulsória". Mas, para quem superou a necessidade de se mascarar, qual seria a "marca" social do amor que ousa dizer o seu nome?
Por exemplo: frente à cultura institucionalizada que só permite expressão afetiva entre casais heterossexuais, como se comportarão em público casais homossexuais de homens ou mulheres? Esse tipo de questionamento não existia até pouco tempo atrás, quando homens desmunhecados e mulheres masculinizadas apareciam como únicos signos de homossexualidade.
Agora, quando se busca tirar das sombras essa forma divergente de desejo, surgem inúmeras alternativas, muitas nunca antes tentadas. É assim que, entre a população homossexual masculina, proliferam rapazes fortões, de musculatura forjada em academias de ginástica e pela ingestão de anabolizantes. Em sua obsessão com a aparência hipermasculina, acabam exercendo um verdadeiro travestimento do masculino. Famosos por tirar a camisa sempre que possível, esses exibicionistas procuram garantir um passaporte social para a sua homossexualidade, sem atentar que o excesso mais os revela do que oculta.
A proverbial ironia do meio gay apelidou-os de "barbies" ou "bofecas" -mistura de "bofe" durão com "boneca" delicada. Outra identidade testada é a velha e cada vez mais cultivada "discrição": aparecer sim, mas sem emitir sinais de homossexualidade que possam soar comprometedores. As tentativas abrangem também a exacerbação do feminino como simulacro de identidade. Aí se inserem as drag queens, fenômeno ascendente, antes restrito ao transformismo do Carnaval. Mas o simulacro deixa de ser simulacro quando se torna estilo de vida, como no caso do crescente contingente de travestis do feminino, que destroçaram a fronteira entre os papéis de gênero. Uma curta estadia no centro de São Paulo revelará os mais improváveis tipos na mistura de gêneros.
Outro dia, encontrei fazendo feira um homem moreno musculosíssimo, com um longo rabo-de-cavalo, tatuagens e... Minissaia, sem esquecer a maquiagem e os sapatos de salto alto.
Em suma, o segmento homossexual compõe atualmente um imenso laboratório desejante que, ao testar novas formas identitárias públicas, aciona uma reformulação prática dos conceitos de gênero. Com isso, enquanto grupo cada vez mais visível na sociedade, homossexuais masculinos e femininas vivem um grande momento no exercício da pluralidade, que tanto defendem. Por sua vez, a sociedade democrática tem responsabilidade de integrar essas experimentações que ocorrem à sua revelia. Faz-se necessária uma reformulação libertária das leis e implantação de políticas públicas, visando combater preconceitos e garantir direitos da comunidade homossexual. É inaceitável que uma sociedade democrática trate como leprosos morais cidadãos (ãs) cujo "crime" é tão somente amar fora dos padrões impostos.

João Silvério Trevisan é escritor e roteirista, autor de "Em Nome do Desejo", "Devassos no Paraíso" e "Ana em Veneza" (todos pela ed. Record).


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