São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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CADA UM NA SUA

QUATRO HOMOSSEXUAIS COMENTAM AS DIVISÕES E DISCRIMINAÇÕES PRÓPRIAS AO MUNDO GAY

PAULO SAMPAIO
DA REVISTA DA FOLHA

Inspirada no atacante Ronaldo, do Real Madrid, que afirmou ser "branco" e embaralhou os termos de distinção de raça no país, a drag queen Bianca Exótica parece querer propor uma espécie de "mestiçagem" no desejo: "Será que algum dia a gente vai se perguntar o que é ser gay?", indaga.
Por enquanto, não. As divisões permanecem, mesmo entre homossexuais. Os que se consideram mais masculinos não querem ser associados às "pintosas" (os facilmente reconhecíveis como gays), "quá-quás" (muito efeminados) ou drag queens. As drags afirmam que as "barbies" (musculosos) só são masculinas na aparência, até o momento de abrir a boca e falar com voz fina. Os mais valorizados são os que "têm jeito de heterossexual". Algumas lésbicas "femininas" não se sentem atraídas por sapatões. Gays e lésbicas não costumam se freqüentar. Parece paradoxal, mas internamente elementos dessa comunidade se rejeitam.


Eu não quero reconhecer a bichinha que existe em mim e passo a vida lutando contra esse meu pedaço

Não adianta querer negar que a imagem é forte. No mundo GLBT é muito mais do que no hétero



Para conversar sobre essas divisões e suas próprias experiências, a Folha reuniu quatro homossexuais, dois homens e duas mulheres: a cantora, escritora e colunista da Revista da Folha Vange Leonel, 42; o psicólogo que atua em terapia afirmativa com gays, lésbicas e bissexuais e assina uma coluna na "G-On Line" Klecius Borges, 52; Rafaela Garcia, 29, recém-chegada da Holanda e procurando emprego; e o professor de inglês Edson Soares, 29, também conhecido na noite como Bianca Exótica, performer e drag queen. Leia abaixo trechos da entrevista.
 

Folha - Os homossexuais são preconceituosos entre si?
Rafaela Garcia -
Cada um tem seu estilo. Eu jamais ficaria com uma menina masculina. Não me atrai. Se fosse pegar uma masculina, pegava logo um homem.

Vange Leonel - Existem gostos diferentes. Meninas que preferem determinados tipos, outras que não têm exatamente uma predileção. O preconceito surge quando você generaliza. Quer dizer: porque eu não gosto de menina-machinho, acho que elas não deveriam existir. Há pessoas que são separatistas, isolam mesmo.

Folha - Gays costumam discriminar a "bichinha", a "pintosa", a "quá-quá". Acha que as lésbicas são menos preconceituosas entre si?
Vange -
As lésbicas se preocupam menos com a aparência das pessoas pelas quais elas se apaixonam. Pelo que eu noto, os homens gays estão mais preocupados em ser jovens, bombadinhos.

Bianca Exótica - São muitas turmas. Dependendo de onde você vai tem mais o grupo das "poc-pocs" (alusão ao barulho que os muito femininos fazem com sapato quando andam), "barbies" e até travestis, que não aceitam drag queens e vice-versa.

Folha - De onde vem a discriminação interna entre gays?
Klecius Borges -
A diversidade no grupo chamado GLBT é tão grande quanto no heterossexual. O que existe de diferente é só a orientação predominante do desejo. O preconceito é algo que faz parte da natureza de grupos e subgrupos.

Folha - Mas no caso dos gays, valoriza-se justamente aquele que não parece pertencer ao grupo, o mais masculino ou mais identificado com a "normalidade".
Klecius -
Se o gay sofre desde muito cedo porque apresenta um comportamento de gênero fora da norma, uma das tendências é se tornar mais masculino para se defender. Ele pensa: "Quanto mais masculino eu for, menos diferente eu serei e, portanto, mais protegido estarei". A homofobia internalizada vale tanto para gays quanto para lésbicas. A gente cresce com uma imagem muito negativa do homossexualismo. Eu costumo dizer que o maior elogio que se pode fazer a um gay é: "Nossa, você nem parece gay."

Folha - Então tudo parte do padrão heterossexual?
Klecius -
Sim. Em uma sociedade patriarcal como a nossa, a condição mais desvalorizada na escala gay é a do feminino. Mulheres de uma maneira geral enfrentam muitos preconceitos. Homens femininos, mais ainda.

Folha - Se tomarmos o gay feminino como o mais desvalorizado, a gente pode concluir que em uma boate você (Bianca Exótica) não fica com ninguém. É mais fácil pegar alguém que não esteja vivendo dentro dessa escala, na rua...
Bianca -
É verdade. Se eu chego em uma boate como essa (a The Week), ou mesmo no Rio de Janeiro, na "Ex-Demente", cheia de bicha bombada, escultural... Imagina: elas vêem uma magra, cabeluda, vestida de mulher, acham que é um corpo estranho ali. Já até fiquei em boate, mas quando o menino abriu a boca e eu vi que a voz era fina, não quis mais. Preconceito meu.

Folha - Mas então você tem essa homofobia anti-gay-feminino?
Bianca -
Ah, sim, para transar, claro. Tenho muitos amigos femininos, mas não tenho tesão neles.

Folha - Os gays podem ser extremamente rigorosos na avaliação do candidato a parceiro. Dizem coisas como: "Qualquer deslize do cara, na voz, no jeito, eu pego. Pra mim já não serve". A patrulha é fortíssima.
Klecius -
Há uma cisão entre imagem e auto-imagem. Conheço poucos gays que se dizem efeminados. Porque é difícil olhar para o espelho e reconhecer isso. É mais fácil apontar no outro, porque se trata de uma característica que desqualifica em uma sociedade heterocentrada. Eu não quero reconhecer a bichinha que existe em mim e passo a vida lutando contra esse meu pedaço.

Folha - Como é possível se enganar?
Klecius -
Ninguém se engana. Apenas a informação vai para o nível inconsciente. Tudo que eu não gosto fica na sombra.

Folha - E os femininos?
Klecius -
Sofrem do mesmo jeito. Lidam com a situação se expondo, em vez de se recolher. Tem que desenvolver compensações para se defender da desvalorização da sociedade, dos gays e deles mesmos. Muitas vezes tornam-se sarcásticos, ácidos.

Folha - Nos sites de busca gays, a maioria dos homossexuais se define como "não efeminado", ou "homem com jeito de homem" -e dizem querer o mesmo.
Vange -
Uma seção de classificados desse tipo tende a atender os desejos do mercado. Para corresponder às expectativas você mente, omite, maquia, distorce. Isso é o que o Klecius falou da tal cisão entre o que eu sou e o que eu penso que sou.

Klecius - O valor maior é parecer um heterossexual. Quanto mais atributos eu tiver (aparência de macho, ser casado, ter filhos), melhor.

Folha - "Não freqüentar o meio (gay)" é outro apelo usado nos sites.
Klecius -
Quando o cara entra num site desses ele já está no meio. Então há uma defasagem entre o que está acontecendo e o que ele pensa que está acontecendo.

Folha - Existe preconceito de gays com lésbicas e vice-versa? Por que muitos deles não se dão?
Vange -
Existe uma necessidade territorial. Então é melhor que o bar seja só de lésbicas. Assim, você não comete a gafe de paquerar uma heterossexual, que vai ficar atormentada com isso. E os gays não estão lá também para serem paquerados por lésbicas.

Folha - Mas por que alguns gays não gostam de lésbicas e vice-versa?
Vange -
Acontece que o que nos une é a orientação sexual. Tem gente do mais variado tipo. Lésbica que não gosta de gay, lésbica que gosta, gay que não gosta de lésbica e assim por diante.

Folha - Na parada, havia um trio elétrico de um grupo de lésbicas onde homens não podiam subir.
Vange -
Isso é necessário, porque a gente sofre de uma certa invisibilidade. Você vê que na última meia hora aqui só se falou de gay. Se a gente não delimita, desaparece. Por exemplo, ninguém fala que, entre as lésbicas, existe o equivalente das drag queens, que são as "drag kings"...

Folha - Quantas?
Vange -
Pouquíssimas. Mas conheço muita mulher que é bem macho.

Folha - Muitas? Mesmo em relação aos gays?
Vange -
Bastante, mas estão na invisibilidade, não aparecem em revista nem em programas de TV.

Folha - Você acha que a sua geração (para Rafaela) se relaciona diferente?
Rafaela -
A maior parte dos meus amigos é gay. Quase não freqüento bar de lésbicas. Eu fico mais com as meninas do que namoro. Acho que as mais velhas se ligam de outra maneira. Mas, na aparência, existem masculinas e femininas de todas as idades. Isso é igual.

Folha - Você já deixou de paquerar alguém por achar muito sapatão?
Rafaela -
Nem me aproximo. Pode ser bonita, mas se for estilo masculina, calça larga, cabelo repicado curto, parece que me bloqueia. Não adianta querer negar que a imagem é forte. No mundo GLBT é muito mais do que no hétero. O homem gay ainda mais do que a mulher.

Folha - Você (para Vange) se considera feminina?
Vange -
Sou andrógina. E a favor da detonação desse conceito de gênero. Eu gosto de misturar. O grande potencial que o homossexual tem é alcançar o casamento entre o macho e a fêmea que existe dentro de nós. Quanto mais você explora isso, mais completo fica. E mais feliz, porque não precisa solapar uma parte sua.

Folha - Existe discriminação com profissões como cabeleireiro, bailarino etc?
Bianca -
Tem até aquela história: quando dois gays supostamente masculinos, fortes, se conhecem em uma boate e um deles é estilista, por exemplo, ele diz que "mexe com moda". O verbo "mexer" é usado para uma série de profissões que não são muito viris. Então, o cara é cabeleireiro ("mexo com cabelo") ou enfermeiro ("mexo com doente").

Folha - Na pesquisa Datafolha, 41% dos entrevistados na parada consideram o preconceito sofrido pelos negros igual ao sofrido pelos homossexuais.
Klecius -
Eu discordo. Porque os negros nascem negros, os homossexuais supostamente escolhem ser como são. Então o preconceito contra os homossexuais é muito mais forte. Tanto que, aqui no Brasil, o que é ser negro? O Ronaldinho não é negro.

Bianca - Será que vai ter um dia em que a gente também vai se perguntar o que é ser gay?

Klecius - O primeiro passo é entender que ninguém escolhe ser gay. É politicamente correto dizer: "Respeito a opção de cada um", como se alguém pudesse escolher. O que eu "posso" é escolher se eu vou ou não me assumir como homossexual. Não é que alguém acorda um dia e diz: "Tô pensando em ser gay...".


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