Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CADA UM NA SUA
QUATRO HOMOSSEXUAIS COMENTAM AS DIVISÕES E DISCRIMINAÇÕES PRÓPRIAS AO MUNDO GAY
PAULO SAMPAIO
DA REVISTA DA FOLHA
Inspirada no atacante Ronaldo, do
Real Madrid, que afirmou ser
"branco" e embaralhou os termos
de distinção de raça no país, a
drag queen Bianca Exótica parece
querer propor uma espécie de "mestiçagem" no desejo: "Será que algum
dia a gente vai se perguntar o que é
ser gay?", indaga.
Por enquanto, não. As divisões
permanecem, mesmo entre homossexuais. Os que se consideram mais
masculinos não querem ser associados às "pintosas" (os facilmente reconhecíveis como gays), "quá-quás"
(muito efeminados) ou drag queens.
As drags afirmam que as "barbies"
(musculosos) só são masculinas na
aparência, até o momento de abrir a
boca e falar com voz fina. Os mais
valorizados são os que "têm jeito de
heterossexual". Algumas lésbicas
"femininas" não se sentem atraídas
por sapatões. Gays e lésbicas não
costumam se freqüentar. Parece paradoxal, mas internamente elementos dessa comunidade se rejeitam.
Eu não quero reconhecer
a bichinha que existe em mim e passo a vida lutando
contra esse
meu pedaço
Não adianta
querer
negar que
a imagem
é forte.
No mundo
GLBT é
muito mais do
que no hétero
|
Para conversar sobre essas divisões e suas próprias experiências, a
Folha reuniu quatro homossexuais,
dois homens e duas mulheres: a cantora, escritora e colunista da Revista
da Folha Vange Leonel, 42; o psicólogo que atua em terapia afirmativa
com gays, lésbicas e bissexuais e assina uma coluna na "G-On Line"
Klecius Borges, 52; Rafaela Garcia,
29, recém-chegada da Holanda e
procurando emprego; e o professor
de inglês Edson Soares, 29, também
conhecido na noite como Bianca
Exótica, performer e drag queen.
Leia abaixo trechos da entrevista.
Folha - Os homossexuais são preconceituosos entre si?
Rafaela Garcia - Cada um tem seu
estilo. Eu jamais ficaria com uma
menina masculina. Não me atrai. Se
fosse pegar uma masculina, pegava
logo um homem.
Vange Leonel - Existem gostos diferentes. Meninas que preferem determinados tipos, outras que não têm
exatamente uma predileção. O preconceito surge quando você generaliza. Quer dizer: porque eu não gosto
de menina-machinho, acho que elas
não deveriam existir. Há pessoas
que são separatistas, isolam mesmo.
Folha - Gays costumam discriminar a
"bichinha", a "pintosa", a "quá-quá".
Acha que as lésbicas são menos preconceituosas entre si?
Vange - As lésbicas se preocupam
menos com a aparência das pessoas
pelas quais elas se apaixonam. Pelo
que eu noto, os homens gays estão
mais preocupados em ser jovens,
bombadinhos.
Bianca Exótica - São muitas turmas.
Dependendo de onde você vai tem
mais o grupo das "poc-pocs" (alusão
ao barulho que os muito femininos
fazem com sapato quando andam),
"barbies" e até travestis, que não
aceitam drag queens e vice-versa.
Folha - De onde vem a discriminação
interna entre gays?
Klecius Borges - A diversidade no
grupo chamado GLBT é tão grande
quanto no heterossexual. O que
existe de diferente é só a orientação
predominante do desejo. O preconceito é algo que faz parte da natureza
de grupos e subgrupos.
Folha - Mas no caso dos gays, valoriza-se justamente aquele que não parece pertencer ao grupo, o mais masculino ou mais identificado com a "normalidade".
Klecius - Se o gay sofre desde muito
cedo porque apresenta um comportamento de gênero fora da norma,
uma das tendências é se tornar mais
masculino para se defender. Ele pensa: "Quanto mais masculino eu for,
menos diferente eu serei e, portanto,
mais protegido estarei". A homofobia internalizada vale tanto para
gays quanto para lésbicas. A gente
cresce com uma imagem muito negativa do homossexualismo. Eu costumo dizer que o maior elogio que se
pode fazer a um gay é: "Nossa, você
nem parece gay."
Folha - Então tudo parte do padrão
heterossexual?
Klecius - Sim. Em uma sociedade
patriarcal como a nossa, a condição
mais desvalorizada na escala gay é a
do feminino. Mulheres de uma maneira geral enfrentam muitos preconceitos. Homens femininos, mais
ainda.
Folha - Se tomarmos o gay feminino
como o mais desvalorizado, a gente
pode concluir que em uma boate você
(Bianca Exótica) não fica com ninguém. É mais fácil pegar alguém que
não esteja vivendo dentro dessa escala, na rua...
Bianca - É verdade. Se eu chego em
uma boate como essa (a The Week),
ou mesmo no Rio de Janeiro, na
"Ex-Demente", cheia de bicha bombada, escultural... Imagina: elas
vêem uma magra, cabeluda, vestida
de mulher, acham que é um corpo
estranho ali. Já até fiquei em boate,
mas quando o menino abriu a boca e
eu vi que a voz era fina, não quis
mais. Preconceito meu.
Folha - Mas então você tem essa homofobia anti-gay-feminino?
Bianca - Ah, sim, para transar, claro. Tenho muitos amigos femininos,
mas não tenho tesão neles.
Folha - Os gays podem ser extremamente rigorosos na avaliação do candidato a parceiro. Dizem coisas como:
"Qualquer deslize do cara, na voz, no
jeito, eu pego. Pra mim já não serve".
A patrulha é fortíssima.
Klecius - Há uma cisão entre imagem e auto-imagem. Conheço poucos gays que se dizem efeminados.
Porque é difícil olhar para o espelho
e reconhecer isso. É mais fácil apontar no outro, porque se trata de uma
característica que desqualifica em
uma sociedade heterocentrada. Eu
não quero reconhecer a bichinha
que existe em mim e passo a vida lutando contra esse meu pedaço.
Folha - Como é possível se enganar?
Klecius - Ninguém se engana. Apenas a informação vai para o nível inconsciente. Tudo que eu não gosto
fica na sombra.
Folha - E os femininos?
Klecius - Sofrem do mesmo jeito.
Lidam com a situação se expondo,
em vez de se recolher. Tem que desenvolver compensações para se defender da desvalorização da sociedade, dos gays e deles mesmos. Muitas
vezes tornam-se sarcásticos, ácidos.
Folha - Nos sites de busca gays, a
maioria dos homossexuais se define
como "não efeminado", ou "homem
com jeito de homem" -e dizem querer o mesmo.
Vange - Uma seção de classificados
desse tipo tende a atender os desejos
do mercado. Para corresponder às
expectativas você mente, omite, maquia, distorce. Isso é o que o Klecius
falou da tal cisão entre o que eu sou e
o que eu penso que sou.
Klecius - O valor maior é parecer
um heterossexual. Quanto mais atributos eu tiver (aparência de macho,
ser casado, ter filhos), melhor.
Folha - "Não freqüentar o meio
(gay)" é outro apelo usado nos sites.
Klecius - Quando o cara entra num
site desses ele já está no meio. Então
há uma defasagem entre o que está
acontecendo e o que ele pensa que
está acontecendo.
Folha - Existe preconceito de gays
com lésbicas e vice-versa? Por que
muitos deles não se dão?
Vange - Existe uma necessidade
territorial. Então é melhor que o bar
seja só de lésbicas. Assim, você não
comete a gafe de paquerar uma heterossexual, que vai ficar atormentada
com isso. E os gays não estão lá também para serem paquerados por lésbicas.
Folha - Mas por que alguns gays não
gostam de lésbicas e vice-versa?
Vange - Acontece que o que nos
une é a orientação sexual. Tem gente
do mais variado tipo. Lésbica que
não gosta de gay, lésbica que gosta,
gay que não gosta de lésbica e assim
por diante.
Folha - Na parada, havia um trio elétrico de um grupo de lésbicas onde homens não podiam subir.
Vange - Isso é necessário, porque a
gente sofre de uma certa invisibilidade. Você vê que na última meia hora
aqui só se falou de gay. Se a gente
não delimita, desaparece. Por exemplo, ninguém fala que, entre as lésbicas, existe o equivalente das drag
queens, que são as "drag kings"...
Folha - Quantas?
Vange - Pouquíssimas. Mas conheço muita mulher que é bem macho.
Folha - Muitas? Mesmo em relação
aos gays?
Vange - Bastante, mas estão na invisibilidade, não aparecem em revista nem em programas de TV.
Folha - Você acha que a sua geração
(para Rafaela) se relaciona diferente?
Rafaela - A maior parte dos meus
amigos é gay. Quase não freqüento
bar de lésbicas. Eu fico mais com as
meninas do que namoro. Acho que
as mais velhas se ligam de outra maneira. Mas, na aparência, existem
masculinas e femininas de todas as
idades. Isso é igual.
Folha - Você já deixou de paquerar
alguém por achar muito sapatão?
Rafaela - Nem me aproximo. Pode
ser bonita, mas se for estilo masculina, calça larga, cabelo repicado curto, parece que me bloqueia. Não
adianta querer negar que a imagem
é forte. No mundo GLBT é muito
mais do que no hétero. O homem
gay ainda mais do que a mulher.
Folha - Você (para Vange) se considera feminina?
Vange - Sou andrógina. E a favor da
detonação desse conceito de gênero.
Eu gosto de misturar. O grande potencial que o homossexual tem é alcançar o casamento entre o macho e
a fêmea que existe dentro de nós.
Quanto mais você explora isso, mais
completo fica. E mais feliz, porque
não precisa solapar uma parte sua.
Folha - Existe discriminação com profissões como cabeleireiro, bailarino
etc?
Bianca - Tem até aquela história:
quando dois gays supostamente
masculinos, fortes, se conhecem em
uma boate e um deles é estilista, por
exemplo, ele diz que "mexe com
moda". O verbo "mexer" é usado
para uma série de profissões que não
são muito viris. Então, o cara é cabeleireiro ("mexo com cabelo") ou enfermeiro ("mexo com doente").
Folha - Na pesquisa Datafolha, 41%
dos entrevistados na parada consideram o preconceito sofrido pelos negros
igual ao sofrido pelos homossexuais.
Klecius - Eu discordo. Porque os
negros nascem negros, os homossexuais supostamente escolhem ser
como são. Então o preconceito contra os homossexuais é muito mais
forte. Tanto que, aqui no Brasil, o
que é ser negro? O Ronaldinho não é
negro.
Bianca - Será que vai ter um dia em
que a gente também vai se perguntar
o que é ser gay?
Klecius - O primeiro passo é entender que ninguém escolhe ser gay. É
politicamente correto dizer: "Respeito a opção de cada um", como se
alguém pudesse escolher. O que eu
"posso" é escolher se eu vou ou não
me assumir como homossexual.
Não é que alguém acorda um dia e
diz: "Tô pensando em ser gay...".
Texto Anterior: Visíveis e privilegiados Próximo Texto: + livros: Apenas dor, sem angústia Índice
|