São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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VISÍVEIS E PRIVILEGIADOS

CAIO ROSENTHAL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Hoje todas as análises que dizem respeito ao futuro epidemiológico da Aids apontam para as populações mais desfavorecidas como sendo o alvo preferencial da endemia. Assim, não será diferente do que hoje acontece, por exemplo, com a esquistossomose, malária, leishmaniose, a tuberculose etc. Ou será que alguém já viu uma "celebridade" com barriga d'água ou com os intestinos cheios de vermes?
Mas se a Aids não depende de saneamento básico como esgoto, água encanada e não depende do tipo de alimentação e tampouco de mosquitos ou outros vetores para sua transmissão, então por que considerá-la uma doença de pobres? O motivo é simples: é porque as informações a respeito da doença, que ajudariam a preveni-la, não chegam aos ouvidos dos que mais precisam.
O perfil da Aids hoje entre nós está bem definido e basta observar as pessoas que freqüentam os hospitais públicos, aliás entupidos de gente, ao contrário dos privados. Esses, apesar da baixa demanda, têm como hábito, a mando dos planos de saúde e seguradoras, empurrar para o serviço público tudo que é caro e que consome mais despesas. Nessas horas, "a saúde é um dever do Estado e um direito do cidadão", dizem os chefes das medicinas de grupo e das seguradoras, lavando as mãos das responsabilidades que lhes cabem.
Na enorme maioria são pessoas humildes, com renda familiar baixíssima, donas de casa, migrantes, pessoas abandonadas pela família, moradores de rua, desempregados, travestis, profissionais do sexo de rua, crianças prostituídas em troca de uma pedrinha de crack, catadores de lixo e aqueles que ainda não entenderam sua preferência sexual, perplexos e desorientados. Esses são os "pobres" que hoje convivem com o vírus da Aids cujo perfil já predomina nas estatísticas oficiais.
Feitos os comentários, vamos à parada. A Associação da Parada do Orgulho de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros traz em sua página na internet a seguinte introdução: "Nosso objetivo primeiro é dar visibilidade às categorias sócio-sexuais e fomentar a noção de políticas públicas para os homossexuais". Nada mais justo. É assim que, historicamente, por sociedades organizadas, se dão as conquistas de direitos em todos os segmentos e, portanto, a associação está no caminho certo.
A pesquisa Datafolha apresenta algo que à primeira vista parece contraditório: a ausência na parada de pessoas com o perfil acima descrito. Os números mostram que 77% das pessoas lá presentes eram do sexo masculino. Os brancos e pardos eram 89% e apenas 6% negros. Em relação ao nível de escolaridade, os participantes são considerados muito acima da média se compararmos a parada a um Carnaval de rua ou a um jogo de futebol e o mesmo comentário serve para a renda familiar; alta para a média da população.
A pesquisa então evidencia que o perfil dos freqüentadores da parada é muito diferente daqueles que hoje compõem a maioria dos que convivem com o vírus HIV e, conseqüentemente, as respostas relativas ao HIV sofrem um certo viés e distanciam-se do mundo real. A análise das respostas dos presentes na parada deixa-nos em situação até que confortável. É tranqüilizador saber que 77% das pessoas lá presentes já fizeram o teste da aids, que 62% usam camisinha sempre, em todas as situações e, destes, 73% são do sexo masculino; melhor ainda.
À primeira vista poderia chamar a atenção a resposta à pergunta em que 15% das pessoas responderam que, após a descoberta do coquetel de medicamentos, aumentaram a freqüência com que usam camisinha e apenas 5% disseram que diminuiu. Ora, se 62% responderam que usam camisinha sempre, é porque este hábito foi aumentando com o decorrer do tempo e, como a descoberta do coquetel já está em uso há pelo menos nove anos, estamos diante de uma coincidência temporal. É o que se espera desta população que possui melhor consciência dos riscos do sexo desprotegido.
Por último, gostaria de deixar como sugestão aos organizadores da parada a inclusão também daqueles que hoje representam o verdadeiro perfil da Aids.


Caio Rosenthal é médico infectologista do Hospital do Servidor Público Estadual e do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e membro do Conselho Regional de Medicina de São Paulo.


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