São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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Guardiões do mistério perdido

Em "Segredos Guardados", Reginaldo Prandi conta a história e os impasses das religiões de origem africana

YVONNE MAGGIE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quesalid, um jovem indígena da América do Norte, cuja carreira de curador e adivinho foi documentada no início do século 20 pelo fundador da moderna antropologia norte-americana Franz Boas, era um cético. Duvidava tanto das crenças mágicas dos curandeiros locais que resolveu passar pelos rituais de iniciação de curandeiro para desvendar os segredos do ofício. Caminhou na trilha da magia e foi descobrindo os truques empregados pelos outros curandeiros da aldeia. Revelava o truque dos outros e ia desmascarando os seus rivais no afã de provar que a magia não era verdadeira. Cada vez que conseguia desmascarar um feiticeiro, no entanto, seu próprio poder crescia.
Quesalid foi ficando famoso, formando uma grande clientela, até que um dia, em um festival de curandeirismo, conseguiu vencer um dos mais famosos da região, um ancião respeitadíssimo por suas curas milagrosas. Quesalid conseguiu demonstrar que o velho usava um truque mágico e com isso desmascarou-o. Seu poder aumentou barbaramente e, a partir desse dia, foi considerado o mais famoso de todos os curandeiros do local. O velho feiticeiro não se conformara e desgraçado pela derrota enviou um emissário para falar com Quesalid. Queria afinal saber qual o truque empregado por Quesalid. Para infelicidade do ancião, Quesalid silenciou-se e não respondeu ao velho, que pouco depois faleceu solitário sem saber da resposta de seu concorrente.
Segundo Claude Lévi-Strauss, essa história revela a importância dos segredos na construção do poder do feiticeiro. Na narrativa da magia é indispensável a crença no segredo para que a função mágica seja exercida com eficácia. Sem a crença no segredo é impossível a cura mágica. Quesalid sabia disso e, entre revelar o seu truque e confirmar o secreto poder da magia, ficou com o segundo, fazendo assim com que a crença se perpetuasse.


A mais impres-sionante mudança no cenário religioso brasileiro é o poder das igrejas evangélicas de prometer livrar os seus fiéis do medo do feitiço


Reginaldo Prandi começa o seu livro perguntando sobre os segredos guardados de uma das mais famosas mães-de-santo da história da Bahia, Aninha do Axé Opô Afonjá. Em um relato vivo, fala de sua visita à casa de Agenor Miranda Rosa, um oluô, adivinho de enorme prestígio no Brasil. Pai Agenor, como era conhecido, não confirmou nem negou a existência do baú contendo os segredos de Aninha, mas ao mesmo tempo afirmou que a crença em segredos guardados revelava muitas vezes a ignorância dos filhos que, perpetuando a crença na existência de segredos, justificavam os seus erros.
Ao longo de "Segredos Guardados", que conta a história dos cultos de origem africana no Brasil de uma forma simples e direta sem o pesado recurso acadêmico das muitas citações e dúvidas, Prandi vai descrevendo os percalços por que passou essa religião no Brasil. Ele fala dos terreiros de candomblé com uma intimidade de quem está dentro da crença e vai levando o leitor pelos muitos caminhos em que a religião trazida pelos negros africanos escravizados foi se integrando à sociedade de classes. Relata a capacidade incrível e a plasticidade dessa religião que se espalhou pelo Brasil chegando mesmo a gerar, nas décadas de 1950 e 1960, uma religião mais popular e menos africana, a umbanda. Mesmo sofrendo repressão moral, religiosa e policial ao longo de muitos anos, as religiões afro-brasileiras se tornaram de certa forma vitoriosas, ganhando adeptos em toda a sociedade brasileira e inspirando a nossa música, nossa poesia e nossa maneira de ser. Uma religião de origem étnica, negra, tornou-se uma religião sincrética e de todos; um encontro entre ricos, pobres, brancos, negros e índios.
Mas Prandi observa que essa religião, que começou africana e negra e foi se tornando cada vez mais brasileira, parece não ter mais a sua força de outrora. Vem perdendo paulatinamente fiéis, sobretudo para as igrejas neopentecostais conforme mostrou o censo do ano 2000. Como explicar isso? Prandi não se furta a enfrentar a questão e como um Quesalid brasileiro recomenda: "Recobrar segredos é imperativo para restaurar o grande poder mágico da religião". Prandi recomenda recuperar a tradição, "pois em algum lugar ainda existem, conforme se crê, muitos segredos guardados". Mas que segredos são esses, se, como ensina a história de Quesalid, o segredo dos segredos é que não existem mesmo?
Será que as religiões afro-brasileiras perdem força por terem cuidado pouco dos segredos, da tradição africana, como disse Reginaldo Prandi? Não terá sido também porque o país mudou e muitos brasileiros se cansaram de viver assombrados pelo poder do feitiço, da magia? Parece que esta é a resposta que estão dando muitos dos que se convertem às religiões evangélicas de toda a sorte. A mais impressionante e importante mudança no cenário religioso brasileiro dos últimos dez anos parece ser o enorme poder das igrejas evangélicas de prometer livrar os seus fiéis do medo do feitiço.

Yvonne Maggie é professora titular de antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Segredos Guardados
352 págs., R$ 45 de Reginaldo Prandi. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3707-3500).



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