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+ sociedade
Em novo livro, o antropólogo Peter Fry diz que Brasil se submete a lógica estrangeira de "combate" ao racismo
A feijoada mudou
MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO
O
Brasil está sendo pressionado pelos organismos
multilaterais a adotar políticas de ação afirmativa
que acabam importando "racismos". A afirmação é do antropólogo
inglês Peter Fry, 63, que está lançando "A Persistência da Raça", uma
autobiografia intelectual.
Radicado no Brasil depois de alternar residência nas últimas décadas
com a África, Fry ganhou projeção
na década de 70 com seu ensaio
"Feijoada e "Soul Food'", em que
classificava a idéia de democracia racial no Brasil como uma forma de
manter as diferenças sociais. Agora,
faz uma autocrítica e reabilita Gilberto Freyre, de quem era grande
crítico. Na entrevista a seguir, Fry diz
ter uma visão otimista sobre a questão racial no Brasil e afirma que as
igrejas neopentecostais têm um papel modernizante, com imposição
de regras universais, enquanto que o
candomblé seria particularista.
Folha - Gilberto Freyre estava certo?
Peter Fry - (risos) Conheci o trabalho do Gilberto Freyre na década de
70. Ele tinha uma desculpa culturalista para a permanência dos portugueses em Angola e Moçambique.
Achei escandaloso. A partir daí não
o levei a sério, no início. Depois desse meu périplo todo, cheguei à conclusão de que nos pontos centrais ele
tinha uma certa razão. Reconhecia
que havia uma outra maneira de colonizar e que os portugueses tinham
uma visão diferente da dos ingleses
-e ele tinha toda a razão. Os ingleses segregavam, e os portugueses pelo menos falavam em assimilação.
Reli "Casa Grande e Senzala" (Global) com outros olhos e achei que ele
tinha um argumento muito persuasivo. É um estudo muito produtivo,
a idéia de um Brasil misturado, de
um Brasil híbrido.
Folha - O sr. faz uma crítica contundente às políticas oficiais de ação afirmativa...
Fry - Eu acho que cabe à sociedade
discutir as conseqüências dessas políticas. Parece, à primeira vista, uma
medida para beneficiar alguns poucos. Acho também que a nova política, de classificar as pessoas apenas
como brancos ou negros, precisaria
ser discutida. Ruanda é o exemplo limite. Era uma sociedade estamental
quando a Bélgica chegou. Havia
duas categorias de pessoas, mas todos falavam a mesma língua e participavam da mesma cultura. Foram
os belgas que introduziram as diferenças. Daí em diante foram se cristalizando identidades estanques que
levaram mais tarde a um grande
conflito. Não estou dizendo que os
conflitos não teriam acontecido,
mas penso que isso contribuiu. Hoje
se fala do Brasil como se fosse feito
de grupos étnicos estanques. Eu não
vejo assim. O Brasil foi constituído
como um país monolíngüe. Essa
idéia de culturas específicas me soa
muito, muito estranho. Agora,
quando se discute isso "ad nauseam", pode virar uma profecia que
se autocumpre.
Fala-se do Brasil como se fosse feito de grupos étnicos estanques
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Acho que deveríamos discutir políticas que vão em sentido contrário.
Uma das razões que me levaram a ficar no Brasil é o fato de que eu achava que existia uma coisa muito especial nesse sentido. Era possível inventar uma maneira de lidar com a
questão racial que não era pelo fortalecimento das identidades raciais.
Folha - O sr. conhece bem a realidade da África austral. Como o sr. vê as
diferenças nessa discussão em relação ao Brasil?
Fry - No caso da África do Sul, acho
que não havia alternativa. A ação
afirmativa em sociedades calcadas
na idéia de raça é uma conseqüência
lógica. Ao mesmo tempo que fizeram isso, imaginaram uma ação pública que não fosse racialmente determinada. Tanto é que inventaram
o termo "rainbow nation", uma nação arco-íris. Achei isso tão interessante, porque era olhar um pouco
para o Brasil. Mas aí vem meu pessimismo com o Zimbábue. O que eu
vejo é que a questão da raça lá é absolutamente determinante, o presidente atribui o fracasso do governo à
ação dos brancos. Um exemplo que
posso dar no Brasil é sobre os políticos em relação ao candomblé, na virada do século 19. Os políticos iam
ao candomblé no Brasil não só para
conseguir o apoio do povo, mas
também para conseguir o apoio dos
orixás.
Folha - O sr. defende as políticas de
universalização, que seriam uma forma eficiente de se contrapor às desigualdades, inclusive raciais...
Fry - Estou acompanhado pesquisas em escolas de ensino médio no
Rio de Janeiro, e o que mais me chama a atenção nessas escolas é um aumento na proporção de negros e
pardos em relação aos números que
se encontram na população. Quando vejo pessoas de todas as cores estudando e convivendo juntas, vejo
isso com otimismo. Acho que está
mudando a representação negativa
sobre o negro no Brasil. Por isso coloquei no meu livro o capítulo sobre
o mercado de beleza no Brasil. Por
isso fiquei mais assustado ainda com
essa história de ação afirmativa.
Folha - E a questão do avanço dos
neopentecostais?
Fry - Acho que são de certa forma
uma metáfora para a modernidade.
Trata-se de um indivíduo que se salva obedecendo regras que são comuns a todos, enquanto que no candomblé cada um tem a sua regra, é
absolutamente particularista.
Folha - O que o sr. achou da declaração de Ronaldinho de que é branco?
Fry - Achei engraçadíssimo. O Brasil é signatário de uma convenção
que diz que as pessoas são o que elas
dizem que são. Então acho que o Ronaldo tem o direito ser o que quiser.
Achei fantástico porque ele foi "acusado" de ser preto. Nos EUA, uma
gota de sangue negro enegrece, a
"one drop rule", enquanto no Brasil
sempre existiu aquele idéia de que o
sangue branco "embranquece"... As
duas ideologias são igualmente burras, estapafúrdias.
Folha - A "persistência da raça" não
é uma forma de submissão à cultura
colonizada?
Fry - Acho que sim, porque as organizações multilaterais estão sempre
falando em diversidade. O Brasil
quer fazer parte do Conselho de Segurança da ONU e quer mostrar para o mundo inteiro que está fazendo
coisas. Eu suponho que o mundo
obriga o Brasil a resolver suas situações. Então é obrigado, sim. Coloquei algumas situações no livro em
que há uma política de governo de
aliança com as organizações internacionais nesse sentido. Não tenho
dúvida de que há muita pressão.
A Persistência da Raça
352 págs., R$ 39,90
de Peter Fry. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20291-380, tel.0/xx/21/2585-2000).
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