São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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+ sociedade

Em novo livro, o antropólogo Peter Fry diz que Brasil se submete a lógica estrangeira de "combate" ao racismo

A feijoada mudou

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

O Brasil está sendo pressionado pelos organismos multilaterais a adotar políticas de ação afirmativa que acabam importando "racismos". A afirmação é do antropólogo inglês Peter Fry, 63, que está lançando "A Persistência da Raça", uma autobiografia intelectual.
Radicado no Brasil depois de alternar residência nas últimas décadas com a África, Fry ganhou projeção na década de 70 com seu ensaio "Feijoada e "Soul Food'", em que classificava a idéia de democracia racial no Brasil como uma forma de manter as diferenças sociais. Agora, faz uma autocrítica e reabilita Gilberto Freyre, de quem era grande crítico. Na entrevista a seguir, Fry diz ter uma visão otimista sobre a questão racial no Brasil e afirma que as igrejas neopentecostais têm um papel modernizante, com imposição de regras universais, enquanto que o candomblé seria particularista.
 

Folha - Gilberto Freyre estava certo?
Peter Fry -
(risos) Conheci o trabalho do Gilberto Freyre na década de 70. Ele tinha uma desculpa culturalista para a permanência dos portugueses em Angola e Moçambique. Achei escandaloso. A partir daí não o levei a sério, no início. Depois desse meu périplo todo, cheguei à conclusão de que nos pontos centrais ele tinha uma certa razão. Reconhecia que havia uma outra maneira de colonizar e que os portugueses tinham uma visão diferente da dos ingleses -e ele tinha toda a razão. Os ingleses segregavam, e os portugueses pelo menos falavam em assimilação. Reli "Casa Grande e Senzala" (Global) com outros olhos e achei que ele tinha um argumento muito persuasivo. É um estudo muito produtivo, a idéia de um Brasil misturado, de um Brasil híbrido.

Folha - O sr. faz uma crítica contundente às políticas oficiais de ação afirmativa...
Fry -
Eu acho que cabe à sociedade discutir as conseqüências dessas políticas. Parece, à primeira vista, uma medida para beneficiar alguns poucos. Acho também que a nova política, de classificar as pessoas apenas como brancos ou negros, precisaria ser discutida. Ruanda é o exemplo limite. Era uma sociedade estamental quando a Bélgica chegou. Havia duas categorias de pessoas, mas todos falavam a mesma língua e participavam da mesma cultura. Foram os belgas que introduziram as diferenças. Daí em diante foram se cristalizando identidades estanques que levaram mais tarde a um grande conflito. Não estou dizendo que os conflitos não teriam acontecido, mas penso que isso contribuiu. Hoje se fala do Brasil como se fosse feito de grupos étnicos estanques. Eu não vejo assim. O Brasil foi constituído como um país monolíngüe. Essa idéia de culturas específicas me soa muito, muito estranho. Agora, quando se discute isso "ad nauseam", pode virar uma profecia que se autocumpre.


Fala-se do Brasil como se fosse feito de grupos étnicos estanques


Acho que deveríamos discutir políticas que vão em sentido contrário. Uma das razões que me levaram a ficar no Brasil é o fato de que eu achava que existia uma coisa muito especial nesse sentido. Era possível inventar uma maneira de lidar com a questão racial que não era pelo fortalecimento das identidades raciais.

Folha - O sr. conhece bem a realidade da África austral. Como o sr. vê as diferenças nessa discussão em relação ao Brasil?
Fry -
No caso da África do Sul, acho que não havia alternativa. A ação afirmativa em sociedades calcadas na idéia de raça é uma conseqüência lógica. Ao mesmo tempo que fizeram isso, imaginaram uma ação pública que não fosse racialmente determinada. Tanto é que inventaram o termo "rainbow nation", uma nação arco-íris. Achei isso tão interessante, porque era olhar um pouco para o Brasil. Mas aí vem meu pessimismo com o Zimbábue. O que eu vejo é que a questão da raça lá é absolutamente determinante, o presidente atribui o fracasso do governo à ação dos brancos. Um exemplo que posso dar no Brasil é sobre os políticos em relação ao candomblé, na virada do século 19. Os políticos iam ao candomblé no Brasil não só para conseguir o apoio do povo, mas também para conseguir o apoio dos orixás.

Folha - O sr. defende as políticas de universalização, que seriam uma forma eficiente de se contrapor às desigualdades, inclusive raciais...
Fry -
Estou acompanhado pesquisas em escolas de ensino médio no Rio de Janeiro, e o que mais me chama a atenção nessas escolas é um aumento na proporção de negros e pardos em relação aos números que se encontram na população. Quando vejo pessoas de todas as cores estudando e convivendo juntas, vejo isso com otimismo. Acho que está mudando a representação negativa sobre o negro no Brasil. Por isso coloquei no meu livro o capítulo sobre o mercado de beleza no Brasil. Por isso fiquei mais assustado ainda com essa história de ação afirmativa.

Folha - E a questão do avanço dos neopentecostais?
Fry -
Acho que são de certa forma uma metáfora para a modernidade. Trata-se de um indivíduo que se salva obedecendo regras que são comuns a todos, enquanto que no candomblé cada um tem a sua regra, é absolutamente particularista.

Folha - O que o sr. achou da declaração de Ronaldinho de que é branco?
Fry -
Achei engraçadíssimo. O Brasil é signatário de uma convenção que diz que as pessoas são o que elas dizem que são. Então acho que o Ronaldo tem o direito ser o que quiser. Achei fantástico porque ele foi "acusado" de ser preto. Nos EUA, uma gota de sangue negro enegrece, a "one drop rule", enquanto no Brasil sempre existiu aquele idéia de que o sangue branco "embranquece"... As duas ideologias são igualmente burras, estapafúrdias.

Folha - A "persistência da raça" não é uma forma de submissão à cultura colonizada?
Fry -
Acho que sim, porque as organizações multilaterais estão sempre falando em diversidade. O Brasil quer fazer parte do Conselho de Segurança da ONU e quer mostrar para o mundo inteiro que está fazendo coisas. Eu suponho que o mundo obriga o Brasil a resolver suas situações. Então é obrigado, sim. Coloquei algumas situações no livro em que há uma política de governo de aliança com as organizações internacionais nesse sentido. Não tenho dúvida de que há muita pressão.


A Persistência da Raça
352 págs., R$ 39,90 de Peter Fry. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20291-380, tel.0/xx/21/2585-2000).



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