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Filosofia barata
O papel
do Estado como
financiador das humanidades volta a ser questionado diante
da crise econômica
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LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA
Há meses já não se
ouve o economês.
A crise do mercado
teve tão estranho
efeito linguístico?
Não, nenhuma coletividade esquece tão depressa seu dialeto.
Mas, afinal, isso não tem
maior importância: antes de se
considerar "ciência exata", a
economia costumava chamar-se "economia política" e, mesmo sem o economês, continua
a ser.
A reflexão deriva de dois textos cuja única ligação está em
terem sido lidos quase ao mesmo tempo. O primeiro dá profundidade temporal ao tema.
Antonio Machado abria um pequeno texto de 1922 com a pergunta que atribuía a Pío Baroja
[ambos escritores espanhóis]:
com que deve, de preferência,
preocupar-se o Estado do futuro? Com a produção de alta cultura ou de cultura mediana?
Menos que a resposta do
próprio Machado -"não esqueçamos que a cultura é intensidade (...) antes, muito antes que extensão e propaganda"-, ressalte-se a própria pergunta: ela se investe de uma incômoda atualidade.
Mas, afinal, resmungará o cético, que relação pode haver
entre uma indagação formulada há quase um século, em um
país distante, e o que se passa
agora entre nós?
Contra a suspeita de arbitrariedade, vale que logo se acrescente a segunda fonte. Em "As
humanidades hoje, em tempo
de indigência" (no jornal suíço
"Neue Zürcher Zeitung), Hans
Gumbrecht reflete sobre os
ecos da atual crise econômica,
nos ambientes acadêmicos
norte-americano e alemão.
Traduzo o parágrafo decisivo: "As humanidades (...) são
uma manifestação de luxo das
sociedades ricas. Em tempos
de crise, é melhor afastar-se
delas. Uma outra direção, em
troca, difundida sobretudo nas
universidades alemãs, se intimida ante o fim de uma opulência, antes desconhecida, do
apoio à pesquisa, e a ela contrapõe o seguinte argumento: a
qualidade da interpretação, da
escrita e do debate filosófico, literário e histórico basicamente
independe da existência do
campo correspondente de pesquisas particulares ou de cursos de pós-graduação. É o contrário do que sucede nas ciências da natureza, cujo êxito depende da possibilidade de pesquisas coletivas e da disponibilidade de uma aparelhagem
técnica sempre nova. Uma discussão filosófica produtiva não
custa mais do que as horas
de trabalho dos que dela participam".
Papel do Estado
Para declarar por que o assunto nos toca, desenvolvo minha telegrafia. Considere-se,
em primeiro lugar, a reflexão
que o poeta Machado extraía de
Pío Baroja. Presente em artigo
de 1922, ela precede o colapso
de 1929, antecessor do que hoje
nos toca. Ou seja, a preocupação em o Estado investir antes
em uma educação "básica" do
que em uma "especializada"
surge, nos países menos avançados, antes da primeira grande crise do capitalismo. Estranha menos, portanto, que ela
ecoe em um "país em desenvolvimento" quase um século depois -trata-se de uma "afinidade eletiva".
Venho então ao que extraio
da passagem de Gumbrecht. É
possível que, também entre
nós, não falte quem creia que
isso de humanidades é um luxo
descartável. Por que o digo? Seja pela maior abundância de
bolsas de pesquisa e da oportunidade de realização de pós-doutorados nas áreas que "burrocraticamente" se insiste em
chamar de "exatas", seja pela
aceitação de nossas autoridades acadêmicas, em todos os
seus níveis, de que a penúria de
nossas bibliotecas é algo tão incontornável como um traço da
natureza.
Não adianta perguntar por
que incontornável: não teremos resposta. Ora, se o governo
já assim age, o que impede que
os editores privados cada vez
mais restrinjam a edição de
obras que não lhes assegurem
um alto retorno?
Mais grave do que tudo que
se disse acima é o encaixe das
duas posições acima referidas
com a política pedagógica que
vem sendo implantada desde o
governo anterior: a política da
horizontalidade dos cursos.
Concretamente, ela significa:
abrem-se mais turmas, as universidades aumentam suas cotas de alunos por áreas, favorecem-se os docentes que se interessam por temas mais "leves",
por fim, estimula-se o ensino à
distância.
Maquiagem
Só pedantes elitistas, de espécie ignorada em um país culturalmente pobre como somos,
seriam contrários ao incremento, em larga escala, da formação docente. Mas o que se
observa não é incremento algum. É bastante óbvio que um
mísero professor no interior
dos Estados mais atrasados da
Federação -e, por certo, não só
deles- há de ter meios de minorar sua ignorância e, assim,
de diminuir sua difusão entre
os que o cercam.
Mas, sob o nome de incremento à formação, o que passamos a ter usualmente é maquiagem e embuste, os quais,
por cima, são incentivados em
detrimento do ensino especializado. Não creio que isso se dê
em toda a extensão da universidade brasileira. Mas sei que se
torna o pão de cada dia na área
das humanidades.
Nesta, a pesquisa especializada é quase impossível pela má
qualidade das bibliotecas; pelos
prazos exíguos para que os alunos concluam seus trabalhos,
suas dissertações e suas teses;
pelo pouco intercâmbio com
outros centros. Desse modo, as
humanidades se tornam cada
vez mais semelhantes a parques zoológicos, espaços habitados por animais de uma espécie em extinção.
LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente
na seção "Autores", do Mais!.
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