São Paulo, domingo, 19 de julho de 2009

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IMAGENS DO FUTURO

CHEGADA À LUA, ESPETÁCULO PROJETADO PARA SER VISTO PELA TV, DEIXOU TAMBÉM COMO LEGADO FILMES QUE APRESENTAM O AVESSO DO ENTUSIASMO PELA CONQUISTA

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

George Orwell [1903-50] um dia fez um de seus protagonistas de "1984" dizer: "Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado". Talvez seja o caso de completar esse raciocínio maior com uma proposição faltante, porém fundamental.
Proposição que deve vir por último, produzindo assim uma circularidade que certamente está mais próxima da experiência real do tempo: "Quem controla o futuro, controla o presente".
Devemos acrescentar essa proposição porque nossas representações do futuro sempre foram o campo no interior do qual as dinâmicas que influenciam o presente são decididas.
Pois tudo se passa como se o tempo que nos rege fosse organizado "de maneira retroativa". Só somos capazes de dotar o presente de sentido quando o enxergamos a partir da construção de uma série virtual retroativa que vai do futuro aos dias de hoje.
Por isso, talvez não seja totalmente correto dizer que o presente é diretamente influenciado pelo passado. Na verdade, em última instância, é nossa capacidade de projetar o futuro que faz o passado deixar de ser um conjunto ilegível de eventos dispersos para se tornar uma sequência de acontecimentos com força cumulativa. É o futuro que influencia diretamente o presente.
Vale aqui o dito preciso de Walter Benjamin [1897-1940]: "O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios". Ou seja, é "da frente para trás" que contamos a história.
Lembremos ainda que, para um momento histórico como a modernidade ocidental, momento que não acredita mais que o recurso às tradições passadas e às autoridades substancialmente enraizadas possa fornecer procedimentos para justificar o presente, a capacidade de projetar o futuro transforma-se em uma operação decisiva. Para uma era assombrada pelo problema da autocertificação, a cadeia do tempo só pode começar a partir do futuro, já que é de lá que vêm os valores que nos guiam: o novo, o moderno, o revolucionário.

Batalha pelo futuro
Neste sentido, não é um simples acaso que, durante algumas décadas do século 20, a batalha pela hegemonia político-ideológica tenha alcançado o espaço.
A corrida tecnológica empreendida pelos "cosmonautas" soviéticos e os "astronautas" americanos pela conquista do espaço, com toda a carga simbólica que tal "conquista" carrega, aparece atualmente como uma estranha metáfora.
Se é certo que o céu e suas estrelas parecem escrever nosso futuro, poderíamos dizer que a conquista espacial nos forneceu a metáfora do "salto gigantesco para a humanidade" capaz de criar a imagem espetacularizada da aceleração da história. Poderíamos mesmo dizer que essa seria a versão que a sociedade do espetáculo criou para substituir o "salto de tigre em direção ao passado", de Walter Benjamin. Um salto que seria capaz de apagar as feridas dos conflitos passados, redimindo suas cicatrizes.
Talvez seja o caso de falar aqui de "substituição" porque a conquista espacial foi um belo exemplo de um acontecimento que estava em outro lugar.
Lembremos como este foi talvez o primeiro fato milimetricamente montado para ser exibido, em escala planetária, pela televisão. A condição fundamental para dar este salto gigantesco para a humanidade era: ele deveria caber em uma tela de televisão. Tela que, pela primeira vez, estava enfim distribuída por quase todo o globo.
É difícil imaginar o impacto dessa história sem lembrar o papel testemunhal das imagens globalmente difundidas. Talvez isso nos permita dizer que, com a emissão televisiva da chegada à Lua, o imaginário global processou a verdadeira informação, a saber, a partir de agora a aceleração da história se dará a partir da imagem.
A imagem será nosso futuro, nosso céu e nossas estrelas. Seu regime espetacular fornecerá a forma estrutural do nosso destino ou, se quisermos, a forma estrutural do controle a que estaremos submetidos. Como se Guy Debord fosse a verdade de Neil Armstrong.
Talvez isto nos explique um fato curioso que fica mais claramente visível quando voltamos os olhos para este peculiar regime de imagens que é o cinema.
Poderíamos esperar que, a partir da corrida espacial, nossas representações cinematográficas do futuro e do espaço fossem animadas por um certo entusiasmo da conquista. No entanto, os filmes que realmente ficaram na história do cinema a partir do final dos anos 60 parecem querer nos fornecer uma gramática da distopia.

Distopias
Peguemos, por exemplos, filmes como "Laranja Mecânica" (1971), de Stanley Kubrick, "Blade Runner" (1982), de Ridley Scott, e "Brazil - O Filme" (1985), de Terry Gilliam.
Para além da particularidade de cada um desses filmes, encontramos versões da ideia de que só conseguimos projetar o futuro como lente de aumento das clivagens, das estruturas de controle e da brutalidade do presente.
Como se a imagem do futuro estivesse submetida de maneira tal ao jogo de interesses e à lógica de reprodução do presente que a única imagem capaz de fazer jus àquilo que ainda não encontrou figura no interior de nossas formas de vida fosse a imagem do futuro como ruína. Contra o esvaziamento dos acontecimentos vindo de nossa maneira peculiar de dar saltos gigantescos, descobrimos a força da distopia e da desconfiança.
Neste sentido, talvez o filme mais impressionante para pensarmos "a contrapelo" as imagens do futuro que chegaria por meio da conquista da Lua continue sendo "Solaris" (1972), de Andrei Tarkovski.
Muito haveria a se dizer sobre esse que talvez seja um dos grandes filmes da história do cinema. Mas fica aqui apenas sua representação da "conquista" de um planeta (Solaris) cuja aproximação começa a despertar alucinações nos astronautas.
Alucinações capazes de dar realidade a histórias destruídas, como a história do astronauta, protagonista principal, cuja mulher que havia se suicidado revive incessantemente em sua nave espacial. Confrontação que o faz encontrar, no futuro, os fantasmas do seu passado.
Como se alcançar o verdadeiro futuro fosse indissociável da capacidade de acolher e redimir o passado em seus fracassos. Desta imagem do futuro, ainda continuamos à procura.


VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP.


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