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IMAGENS DO FUTURO
CHEGADA
À LUA, ESPETÁCULO PROJETADO
PARA SER VISTO PELA TV,
DEIXOU
TAMBÉM COMO LEGADO
FILMES QUE APRESENTAM
O AVESSO
DO ENTUSIASMO PELA
CONQUISTA
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
George Orwell
[1903-50] um dia
fez um de seus protagonistas de
"1984" dizer:
"Quem controla o passado,
controla o futuro. Quem controla o presente, controla o
passado". Talvez seja o caso de
completar esse raciocínio
maior com uma proposição faltante, porém fundamental.
Proposição que deve vir por
último, produzindo assim uma
circularidade que certamente
está mais próxima da experiência real do tempo: "Quem controla o futuro, controla o presente".
Devemos acrescentar essa
proposição porque nossas representações do futuro sempre
foram o campo no interior do
qual as dinâmicas que influenciam o presente são decididas.
Pois tudo se passa como se o
tempo que nos rege fosse organizado "de maneira retroativa". Só somos capazes de dotar
o presente de sentido quando o
enxergamos a partir da construção de uma série virtual retroativa que vai do futuro aos
dias de hoje.
Por isso, talvez não seja totalmente correto dizer que o
presente é diretamente influenciado pelo passado. Na
verdade, em última instância, é
nossa capacidade de projetar o
futuro que faz o passado deixar
de ser um conjunto ilegível de
eventos dispersos para se tornar uma sequência de acontecimentos com força cumulativa. É o futuro que influencia diretamente o presente.
Vale aqui o dito preciso de
Walter Benjamin [1897-1940]:
"O historicismo se contenta
em estabelecer um nexo causal
entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por
isso um fato histórico. Ele se
transforma em fato histórico
postumamente, graças a acontecimentos que podem estar
dele separados por milênios".
Ou seja, é "da frente para trás"
que contamos a história.
Lembremos ainda que, para
um momento histórico como a
modernidade ocidental, momento que não acredita mais
que o recurso às tradições passadas e às autoridades substancialmente enraizadas possa
fornecer procedimentos para
justificar o presente, a capacidade de projetar o futuro
transforma-se em uma operação decisiva. Para uma era assombrada pelo problema da
autocertificação, a cadeia do
tempo só pode começar a partir do futuro, já que é de lá que
vêm os valores que nos guiam:
o novo, o moderno, o revolucionário.
Batalha pelo futuro
Neste sentido, não é um simples acaso que, durante algumas décadas do século 20, a batalha pela hegemonia político-ideológica tenha alcançado o
espaço.
A corrida tecnológica empreendida pelos "cosmonautas" soviéticos e os "astronautas" americanos pela conquista
do espaço, com toda a carga
simbólica que tal "conquista"
carrega, aparece atualmente
como uma estranha metáfora.
Se é certo que o céu e suas estrelas parecem escrever nosso
futuro, poderíamos dizer que a
conquista espacial nos forneceu a metáfora do "salto gigantesco para a humanidade" capaz de criar a imagem espetacularizada da aceleração da história. Poderíamos mesmo dizer
que essa seria a versão que a sociedade do espetáculo criou para substituir o "salto de tigre
em direção ao passado", de
Walter Benjamin. Um salto que
seria capaz de apagar as feridas
dos conflitos passados, redimindo suas cicatrizes.
Talvez seja o caso de falar
aqui de "substituição" porque a
conquista espacial foi um belo
exemplo de um acontecimento
que estava em outro lugar.
Lembremos como este foi
talvez o primeiro fato milimetricamente montado para ser
exibido, em escala planetária,
pela televisão. A condição fundamental para dar este salto gigantesco para a humanidade
era: ele deveria caber em uma
tela de televisão. Tela que, pela
primeira vez, estava enfim distribuída por quase todo o globo.
É difícil imaginar o impacto
dessa história sem lembrar o
papel testemunhal das imagens
globalmente difundidas. Talvez
isso nos permita dizer que, com
a emissão televisiva da chegada
à Lua, o imaginário global processou a verdadeira informação, a saber, a partir de agora a
aceleração da história se dará a
partir da imagem.
A imagem será nosso futuro,
nosso céu e nossas estrelas. Seu
regime espetacular fornecerá a
forma estrutural do nosso destino ou, se quisermos, a forma
estrutural do controle a que estaremos submetidos. Como se
Guy Debord fosse a verdade de
Neil Armstrong.
Talvez isto nos explique um
fato curioso que fica mais claramente visível quando voltamos
os olhos para este peculiar regime de imagens que é o cinema.
Poderíamos esperar que, a
partir da corrida espacial, nossas representações cinematográficas do futuro e do espaço
fossem animadas por um certo
entusiasmo da conquista. No
entanto, os filmes que realmente ficaram na história do cinema a partir do final dos anos 60
parecem querer nos fornecer
uma gramática da distopia.
Distopias
Peguemos, por exemplos, filmes como "Laranja Mecânica"
(1971), de Stanley Kubrick,
"Blade Runner" (1982), de Ridley Scott, e "Brazil - O Filme"
(1985), de Terry Gilliam.
Para além da particularidade
de cada um desses filmes, encontramos versões da ideia de
que só conseguimos projetar o
futuro como lente de aumento
das clivagens, das estruturas de
controle e da brutalidade do
presente.
Como se a imagem do futuro
estivesse submetida de maneira tal ao jogo de interesses e à
lógica de reprodução do presente que a única imagem
capaz de fazer jus àquilo que
ainda não encontrou figura no
interior de nossas formas de vida fosse a imagem do futuro como ruína. Contra o esvaziamento dos acontecimentos
vindo de nossa maneira peculiar de dar saltos gigantescos,
descobrimos a força da distopia
e da desconfiança.
Neste sentido, talvez o filme
mais impressionante para pensarmos "a contrapelo" as imagens do futuro que chegaria por
meio da conquista da Lua continue sendo "Solaris" (1972), de
Andrei Tarkovski.
Muito haveria a se dizer sobre esse que talvez seja um
dos grandes filmes da história
do cinema. Mas fica aqui apenas sua representação da "conquista" de um planeta (Solaris)
cuja aproximação começa a
despertar alucinações nos astronautas.
Alucinações capazes de dar
realidade a histórias destruídas, como a história do astronauta, protagonista principal,
cuja mulher que havia se suicidado revive incessantemente
em sua nave espacial. Confrontação que o faz encontrar, no
futuro, os fantasmas do seu
passado.
Como se alcançar o verdadeiro futuro fosse indissociável da
capacidade de acolher e redimir o passado em seus fracassos. Desta imagem do futuro,
ainda continuamos à procura.
VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP.
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