|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+Livros
Órfãos de majestade
Historiadora Mona Ozouf defende que a Revolução Francesa não foi a luta do povo "bom" contra o rei "mau"
RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nas últimas décadas, as interpretações da Revolução
Francesa [1789] se
dividiram em duas
vertentes. À esquerda, [o historiador francês] Michel Vovelle
promoveu o estudo de lutas populares, fazendo também bom
uso da história das mentalidades cunhada por [Lucien] Febvre e [Marc] Bloch.
Em 1989, Vovelle foi convidado por Mitterrand [presidente da França de 1981 a 1995]
a dirigir as comemorações acadêmicas do bicentenário da Revolução, o que fez com um congresso mundial e pluralista.
Já François Furet (1927-97),
ex-comunista, comandou uma
revisão da historiografia revolucionária, denunciando Robespierre e o terror. Sua equipe, da qual fez parte Mona
Ozouf, autora de um belo "Varennes - A Morte da Realeza",
que acaba de sair em português, soube estudar a fundo as
ideias em jogo na época revolucionária. Digamos que, para
ele, a revolução tinha acabado;
para Vovelle, ela continuava.
Furet deve muito a Tocqueville -que em 1856 publicou
"O Antigo Regime e a Revolução", ora reeditado em português. O grande problema que
Tocqueville vê no processo revolucionário (que ele não
aplaude nem condena) é que a
monarquia absoluta não dera
lugar para os cidadãos treinarem o manejo da coisa pública.
Já na Inglaterra, júris e parlamentos treinaram os cidadãos
para decidir em matéria política e judiciária, isso desde os séculos 12 e 13.
Teoria ou prática
Sem poderem praticar a política, os franceses a teorizaram.
A França tem em 1789 grandes
teorias sobre o poder (é o século dos "philosophes"), mas pouco conhecimento prático. Para
os ingleses, é o contrário.
Tocqueville prefere, na política, a prática. Como a teoria
francesa quer fundar a sociedade desde o zero (veja-se "O
Contrato Social" de Rousseau),
a revolução tenta varrer o passado. Daí, o risco do terror. Para
ele, a revolução completa um
trabalho de centralização administrativa iniciado pelo Antigo Regime; teria sido preciso
tanto sangue e guerra para chegar a um resultado que o governo anterior produziria?
Fernando Novais [historiador], certa vez, criticou Furet e
seus mentores: disse que, contra Robespierre, eles retomavam a posição dos "monarchiens", monarquistas constitucionais que ficaram sem lugar naqueles inícios dos anos
1790 em que nem a corte, querendo restaurar o absolutismo,
nem os revolucionários, querendo os direitos humanos,
aceitavam um compromisso
-uma França que seria inglesa,
como? Se não tinha 600 anos
de participação nos assuntos
públicos...
Revolução e cinema
Mas o melhor, aqui, é passar
para o cinema. Ariane
Mnouchkine [diretora francesa] filmou em 1974 uma bela
peça: "1789". Ela começa em
1791, quando Luís 16 e Maria
Antonieta tentam fugir para o
estrangeiro, mas são reconhecidos na cidadezinha de Varennes e forçados a voltar a Paris.
No palco vemos todas as mesuras típicas de cortesãos. Mas,
de repente, soa um grito: "Não é
assim que vamos contar essa
história!". E há um segundo começo: uma camponesa vai dar à
luz quando um nobre, vindo da
caça, lava as botas na bacia de
água quente que estava reservada para o parto. "1789" é uma
peça do povo, que revive a revolução, tanto que termina com o
público dançando ao som da
"Ode à Alegria" de Beethoven.
Ettore Scola [cineasta italiano] rodou, em 1982, "Casanova
e a Revolução", obra de ficção
em que o aventureiro veneziano [Giacomo Casanova, interpretado pelo ator Marcello
Mastroianni] acaba, sem querer, no meio da fuga para Varennes. Parece uma resposta a
Mnouchkine.
O momento alto é quando
uma condessa (Hanna Schygulla) explica o que o rei pretendia. Ele trajaria suas vestes solenes e, mostrando-se ao povo
com elas, sem os (maus) intermediários que eram os deputados à Assembleia, restabeleceria a boa relação entre o pai que
tudo sabe e protege seus súditos e estes, que são seus filhos
inocentes e ignorantes.
Obviamente, isso já era impossível. Foram-se os tempos
da realeza paternalista. Esse filme é Furet, é Ozouf -que ainda
não escrevera seu "1791" ["Varennes - A Morte da Realeza"],
mas que o termina citando a
película.
Maus vizinhos
O que nos mostram Scola e
Ozouf? Que a revolução não é a
luta do bem contra o mal (ok),
nem do bom povo contra o mau
rei. É o fim de um tempo em
que a realeza era paternal e o
começo dos tempos em que vivemos a dificuldade de nos tornarmos irmãos, primos ou
mesmo vizinhos, porque já não
pensamos o poder na dicotomia entre o bom pai e o usurpador mau (Hamlet é o grande
exemplo desse confronto, com
um pai homônimo assassinado
pelo mau tio Cláudio).
Mas o que falta a Ozouf, cujo
livro é primoroso? Falta-lhe
enfatizar que, se a realeza morre, quem a mata é a nobreza. "O
rei era bom", dizia [o historiador Jules] Michelet em sua
"História da Revolução Francesa", e era exatamente esse o
problema: atendia a tudo o que
lhe pediam os nobres. E eles,
mostra H. Taine nas "Origens
da França Contemporânea",
haviam deixado de cumprir
suas obrigações para com os inferiores.
Uma coisa era a nobreza ter
prerrogativas, mas também deveres com os pobres. Outra foi
ela ficar apenas nos privilégios,
desdenhando o povo. O rei era
bom, ele poderia aceitar uma
monarquia constitucional (e
Furet estaria feliz), que evoluiria à inglesa num século 19 pacífico. Mas a aristocracia era a
má intermediária -ela, não os
revolucionários condenados
pela condessa no filme.
Quem matou a monarquia
não foi a multidão que em 1792
invadiu as Tulherias [em Paris]
em resposta à invasão da França pelas monarquias coligadas.
Foi a própria coalizão reacionária, somada a uma aristocracia
idem. Em Varennes, as coisas
parecem indefinidas. Quando o
rei -preso, não há como esquecê-lo- é trazido a Paris, um
cartaz difundido no caminho
diz tudo: "Qualquer pessoa que
aplaudir o rei será açoitada,
quem o insultar será enforcado". Ele continua um personagem sagrado, e por isso a pena
para o insulto é maior do que
para o aplauso. Mas, se os óleos
da coroação ainda ungem o seu
corpo, o poder já lhe escapa.
RENATO JANINE RIBEIRO é professor de ética
e filosofia política na USP e autor de "O Afeto
Autoritário" (ed. Ateliê), entre outros livros.
VARENNES - A MORTE DA REALEZA
Autora: Mona Ozouf
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
(tel. 0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 53 (360 págs.)
O ANTIGO REGIME E A REVOLUÇÃO
Autor: Alexis de Tocqueville
Tradução: Rosemary C. Abílio
Editora: WMF Martins Fontes
(tel. 0/ xx/11/3241-3677)
Quanto: R$ 44,50 (338 págs.)
Texto Anterior: Declínio do império Próximo Texto: +Lançamentos Índice
|