São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2001

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+ literatura

Desprestigiada pela crítica e há quase 50 anos sem ser reeditada, "Música do Parnaso", de Botelho de Oliveira, é um dos grandes momentos da poesia brasileira

METÁFORA ENGENHOSA

Ivan Teixeira
especial para a Folha

Escrita no apogeu da propagação da poesia seiscentista italiana e espanhola, mas publicada em 1705, quando já se consolidava a reação ao estilo agudo e engenhoso, "Música do Parnaso", de Manuel Botelho de Oliveira, se apropria deliberadamente do código poético instaurado por Camões, Marino e Gôngora, entre outros. Não obstante, o poeta produz impressão de novidade, o que decorre não só da assimilação intrínseca daquele universo poético, mas sobretudo da ciência do idioma, o que, por si só, garantiria êxito às pulsações de seu livro. Botelho de Oliveira, portanto, não será lido como poeta original nem como inoperante imitador, mas como emulador da tradição em que se inscreve. Esse é o primeiro pressuposto para a leitura do poeta baiano e também para sua classificação, tomando-o, evidentemente, como um dos momentos mais extraordinários de toda a poesia praticada no Brasil, cujo desenvolvimento, aliás, seria impensável sem o sistema de tópicas e técnicas apreendido na Europa. Botelho de Oliveira era obcecado pela concentração semântica, pelo equívoco dos vocábulos e pela exploração das potencialidades sensoriais e intelectuais da imagem. Embora se percebam com muito relevo a agilidade sintática, a insinuação sonora e o soberbo cromatismo dos poemas, tudo em "Música do Parnaso" existe como suporte para o exercício da metáfora, que se articula coerentemente com os demais procedimentos do texto. Concebida conforme o padrão seiscentista, a metáfora de Botelho funda-se no princípio da analogia engenhosa, pois, desencadeando associações imprevistas no juízo, promove a semelhança entre assuntos diferentes. Em certo sentido, o livro cristaliza uma investigação artística da apreensão sensível do mundo, por reiterar à exaustão o risco de dizer as coisas pelo avesso delas mesmas. A doutrina da imagem implícita em Botelho integra um conjunto de técnicas que, aplicadas ao poema, constituem singular modalidade de conhecimento do mundo, cuja dispersão se unifica por meio da invenção sensorial das tópicas. Partilha da concepção de poesia como imitação e trabalho de arte, em que paciência e estudo convergem para o desenvolvimento de assuntos tradicionais que independem da psicologia do poeta. Não é sem causa que, em mais de uma ocasião, João Cabral de Melo Neto declarou apreço pela consciência artesanal de Botelho de Oliveira, lamentando o ostracismo de seu livro. Todavia esses aspectos todos, suficientes para nobilitar qualquer poeta em qualquer literatura, levaram a crítica tradicional brasileira, de pressupostos romântico-nacionalistas, a desprestigiar a poesia de Botelho de Oliveira, sob pretexto de que lhe faltam singularidade expressiva e integração com a realidade do país. Intérpretes como Cônego Fernandes Pinheiro, Sílvio Romero, José Veríssimo e Ronald de Carvalho consideram-na fria, cerebral, mecânica, artificial e ridícula. Seu estilo e matéria são interpretados como consequência da frivolidade do espírito barroco. Herdeiros do Iluminismo português, que se opôs à poesia seiscentista por entendê-la como resultado da hegemonia espanhola sobre Portugal, esses críticos odeiam a poesia luso-brasileira do período, especialmente em seu aspecto gongórico e, portanto, mais sensorial e vistoso. Essa visão acabou por determinar o destino editorial de "Música do Parnaso", que até hoje só foi reeditada na íntegra uma vez, graças ao trabalho de Antenor Nascentes, pelo Instituto Nacional do Livro, em 1953. Atualmente Botelho de Oliveira continua recebendo o desapreço dos críticos, quer mediante condenação explícita, quer mediante sumárias apreciações em histórias literárias, que não revelam leitura específica, embora apresentem uma ou outra sugestão interessante. As grandes exceções encontram-se em dois estudiosos preocupados com a investigação estilística do fenômeno literário, Eugênio Gomes e Péricles Eugênio da Silva Ramos, responsáveis por análises e notas capazes de desencadear a necessária reavaliação do poeta. Manuel Botelho de Oliveira não se limitou a escrever em português; entregou-se também a poemas em espanhol, em italiano e latim. Longe de indicar exibicionismo, o plurilinguismo de seu livro decorre antes do repertório coletivo da época e da concepção de poesia do autor, que, além de se inscrever na elocução dos poemas, pode ser abstraída de passagens da dedicatória e do prólogo do volume. Fiéis à sua função de "degrau para o argumento da obra", esses textos contêm uma pequena teoria poética, apresentada ora explícita, ora implicitamente. Independentemente das línguas, Botelho fiava-se no costume criado pela história da composição verbal, subordinada à instituição retórica e que ele aplica em seu livro. Essa história milenar, ele a traça em poucas linhas: tendo nascido na Grécia, a poesia passou para Roma; depois, espalhou-se em língua vulgar pela Itália, chegando à Espanha e a Portugal. Caberia a ele dar continuidade ao percurso, implantando-a e difundindo-a nas incultas terras do Brasil, já então em processo de civilização pela economia do açúcar. Tal visão sistêmica da poesia que hoje se diria estrutural, fundada em procedimentos cristalizados, fórmulas reiteradas e tópicas consagradas, prende-se à tradição aristotélica, segundo a qual a poética era entendida como capítulo da retórica. Praticava-se a poesia como modalidade verbal de imitação, cadenciada pela métrica e especialmente ornada por tropos e figuras, que falam pelo poeta. Vivendo antes da invenção do eu psicológico e quando ainda não existiam as liberdades e as ideologias burguesas, Botelho de Oliveira não podia, portanto, pensar em autenticidade expressiva nem no mito da singularidade nacionalista. Não obstante isso foi causa de ser classificado como artificial e inoperante pela interpretação do período colonial maquinada pelos figurões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que inventou um Brasil-Colônia à imagem e semelhança de d. Pedro 2º. Nesse particular, deve-se considerar, ainda, que a crítica romântica leu o poemeto "A Ilha de Maré" como exceção nativista ou prenúncio de nacionalismo brasileiro, desconsiderando, conforme sugere João Adolfo Hansen, que o elogio da parte não passa de apologia do todo do império português. Os coros de rimas em português e em espanhol (os demais ocupam pouco espaço no livro) subdividem-se em poemas dedicados a uma ninfa chamada Anarda, de pura idealização petrarquista (exaltação da beleza absoluta); e em versos relacionados à vida social da monarquia (exaltação dos modelos dignos de imitação). Ambas as modalidades são poemas líricos, no sentido clássico de celebração de noções abstratas em sua manifestação particular. Tanto nos poemas de elogio da amada quanto nos de exaltação de virtudes cívicas, observa-se a mesma exploração equívoca dos vocábulos, seja por meio da metáfora ou do trocadilho, seja por meio da calculada polissemia da frase ou da investigação de efeitos da luz e das cores sobre os afetos. No primeiro caso, celebram-se o amor, a beleza, o recato, a prudência da amada e a abnegação do amante diante de sua inacessibilidade. A apreciação desses poemas pressupõe a clara noção de que não se trata de poesia amorosa no sentido romântico, em que o indivíduo simula paixão, construindo a emotividade como parte imprescindível do enunciado poético. Trata-se, ao contrário, de poemas celebrativos, em que a encenação do elogio integra um todo conceitual, em que cada parte apresenta diferente prisma de um gênero retórico do discurso, jamais esquecido pelo poeta e do qual sempre deve se lembrar o leitor.

Idéias platônicas
Assim a crueldade e a indiferença de Anarda nada mais são do que particularização da perfeição das idéias platônicas, completamente inacessíveis ao sentido dos homens. Sua proverbial indiferença não passa de alegoria pedagógica, no sentido de impor a contemplação mística das formas essenciais e condenar os impulsos sensoriais, dualidade de que decorre o reiterado desencontro do poeta com a musa, visto que esse só sabe abordá-la pela encenação encantatória da aparência. O eu lírico a ambiciona, a corteja, mas o faz em termos humanos e sensoriais. Por isso ela se esquiva, como a luz do sol, que se pode sentir mas nunca tocar. Sendo pura inteligibilidade, representa o eterno feminino, em sua multiplicidade de aspectos e cores: atormenta os sentidos, mas se protege com a intangibilidade das formas essenciais.
Todavia nem só de amor vive "Música do Parnaso". Há também os poemas voltados para a celebração dos modelos dignos de imitação nas relações históricas da monarquia. Esses são os poemas encomiásticos, que se consubstanciam na tópica da construção da eternidade por meio das letras, que é o núcleo semântico dessa espécie de poesia. A crítica tradicional não deu por ela, contentando-se em acusar o poeta de indiferença social ou de bajulação aos poderosos.
Pela perspectiva que procura recriar as condições de produção e de recepção do texto artístico, os poemas encomiásticos serão vistos como manifestação do desejo de integração social, pois celebram a virtude civil, particularizada no rei, em homens de gênio e em agentes da nobreza, das letras, do clero e das armas. Ao elogiar o rei e aqueles que contribuem diretamente para a boa governação dos povos, o poeta procura incluir-se como membro hipotético do conselho de sua majestade, cuja razão requer a prudência do apoio para que a cabeça coordene com equidade os membros do corpo místico do Estado.
Como se vê, a integração social em Botelho de Oliveira se dá pela fórmula horaciana, segundo a qual a arte deve se empenhar na busca da utilidade, do prazer e dos afetos persuasivos, sendo certo que o poeta privilegiou a noção de prazer, por meio do encantamento dos sentidos e da diversão do intelecto. Na dedicatória de seu livro, manifesta a convicção de que dessa atividade resulta o aprimoramento intelectual da pessoa, que é luzimento da sociedade, pois, sendo exercício do entendimento, a poesia é também agente de civilização. Assim há, no mínimo, dois modos complementares de ler "Música do Parnaso": primeiro, como manifestação lúdica do engenho; segundo, como índice de incorporação da América ao jogo civilizado praticado na Europa.


Ivan Teixeira é professor de literatura na Escola de Comunicações e Artes da USP e autor, entre outros, de "Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica" (Edusp).



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