São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2007

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Ponto de fuga

A abóbora e a pedra


Courbet era imenso, tagarela, irrequieto, provocador; desde seus primeiros quadros tentou-se buscar em suas obras a expressão de empenho político; mas há o homem e a arte

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Que acasalamento fabuloso de uma lesma e de um pavão, que antíteses genéticas, que sudorese sebácea puderam gerar essa coisa que se chama sr. Courbet? Sob que redoma, com a ajuda de qual esterco, em conseqüência de qual mistura de vinho, de cerveja, de coriza corrosiva e de edema flatulento pôde crescer essa abóbora sonora e peluda, esse ventre estético, encarnação do Eu imbecil e impotente?"
Metáforas inesperadas, engraçadas, cheias de ódio: a escrita tem a habilidade jornalística do século 19, na qual o sensacionalismo impiedoso vem vazado em linguagem rica, dominada e surpreendente.
O autor é Alexandre Dumas Filho, escritor mundano, célebre pela sua "Dama das Camélias". O objeto de seu rancor é um artista vaidoso, tagarela, que proclama sempre suas convicções de esquerda.
Courbet [1819-77] se envolvera nas revoltas da Comuna de Paris [1871]. Uma vez o movimento esmagado, vai para a prisão e depois para o exílio.
Dumas Filho, após a Comuna, exprime o rancor que uma direita conservadora alimentava contra o artista, cuja celebridade escandalosa o transformara em ideal bode expiatório.
Courbet era gordo, imenso, tagarela, irrequieto, provocador. Desde seus primeiros quadros até hoje tentou-se buscar, em suas obras, a expressão de um empenho político e social.
O próprio Courbet alimentou essa idéia. Mas há o homem e a arte. Ao contrário do pintor, seus quadros são graves, silenciosos. Empregam uma paleta muito severa e reduzida, sem sedução. Exigem olhar calmo e recolhimento.

Caluda
Certos quadros de Courbet mostram elementos misteriosos: um gesto, um personagem inesperado, um objeto incongruente. Ele quase não deixou explicações. Vários estudiosos se infiltram nesses mistérios para atribuir-lhes alguma significação engajada. É inútil.
Courbet disse uma vez: "Eu faço até as pedras pensarem".
Não é o espectador que pensa, nem o artista. São as pedras.
Elas têm um pensamento de pedra, feito de matéria pictural e inexprimível por palavras.
Courbet será objeto de uma grande retrospectiva em Paris, no Grand Palais, que se abrirá no dia 13 de outubro (sobre a mostra: www.rmn.fr/galeriesnationalesdugrandpalais). Será a ocasião para refletir sobre esse pintor que desenhou o território do artista moderno e da vanguarda. Também para pô-lo em valor, já que alguns de seus grandes quadros estão no museu d'Orsay e são particularmente mal expostos, sob uma luz cheia de reflexos.
Courbet foi um pintor meio esquecido até que "A Origem do Mundo", tela representando um sexo feminino, que pertenceu a Lacan, fosse doada a Orsay e causasse escândalo.

Viço
Courbet nasceu em Ornans, cidadezinha perto de Besançon, hoje com 4.000 habitantes. Ornans tem um museu e um instituto Gustave Courbet, que não apenas investem seriamente no estudo do artista mas ampliam suas coleções com compras de obras de grande qualidade. Enquanto a mostra de Paris não vem, essas instituições organizaram uma outra em Ornans, intitulada "A Apologia da Natureza ou o Exemplo de Courbet" (até 31/10).

Dileto
A arte de Courbet deve muito à natureza da Franche-Comté, sua Província de origem, rica de verdes, de falésias e de nascentes. Em suas paisagens, tudo é imóvel, enraizado, telúrico. Não se trata tanto de uma apologia, no sentido de celebração.
É antes uma fusão da pintura com os mistérios mais secretos da terra, das árvores, das águas.


jorgecoli@uol.com.br


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