|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de fuga
A abóbora e a pedra
Courbet era imenso, tagarela, irrequieto, provocador; desde seus primeiros quadros tentou-se buscar em suas obras a expressão de empenho político; mas há o homem e a arte
|
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Que acasalamento fabuloso de uma lesma e de
um pavão, que antíteses genéticas, que sudorese sebácea puderam gerar essa coisa
que se chama sr. Courbet? Sob
que redoma, com a ajuda de
qual esterco, em conseqüência
de qual mistura de vinho, de
cerveja, de coriza corrosiva e de
edema flatulento pôde crescer
essa abóbora sonora e peluda,
esse ventre estético, encarnação do Eu imbecil e impotente?"
Metáforas inesperadas, engraçadas, cheias de ódio: a escrita tem a habilidade jornalística do século 19, na qual o sensacionalismo impiedoso vem
vazado em linguagem rica, dominada e surpreendente.
O autor é Alexandre Dumas
Filho, escritor mundano, célebre pela sua "Dama das Camélias". O objeto de seu rancor é
um artista vaidoso, tagarela,
que proclama sempre suas
convicções de esquerda.
Courbet [1819-77] se envolvera nas revoltas da Comuna
de Paris [1871]. Uma vez o movimento esmagado, vai para a
prisão e depois para o exílio.
Dumas Filho, após a Comuna,
exprime o rancor que uma direita conservadora alimentava
contra o artista, cuja celebridade escandalosa o transformara
em ideal bode expiatório.
Courbet era gordo, imenso,
tagarela, irrequieto, provocador. Desde seus primeiros quadros até hoje tentou-se buscar,
em suas obras, a expressão de
um empenho político e social.
O próprio Courbet alimentou
essa idéia. Mas há o homem e a
arte. Ao contrário do pintor,
seus quadros são graves, silenciosos. Empregam uma paleta
muito severa e reduzida, sem
sedução. Exigem olhar calmo e
recolhimento.
Caluda
Certos quadros de Courbet
mostram elementos misteriosos: um gesto, um personagem
inesperado, um objeto incongruente. Ele quase não deixou
explicações. Vários estudiosos
se infiltram nesses mistérios
para atribuir-lhes alguma significação engajada. É inútil.
Courbet disse uma vez: "Eu
faço até as pedras pensarem".
Não é o espectador que pensa,
nem o artista. São as pedras.
Elas têm um pensamento de
pedra, feito de matéria pictural
e inexprimível por palavras.
Courbet será objeto de uma
grande retrospectiva em Paris,
no Grand Palais, que se abrirá
no dia 13 de outubro (sobre a
mostra: www.rmn.fr/galeriesnationalesdugrandpalais). Será a ocasião para refletir sobre esse pintor que desenhou o território do artista
moderno e da vanguarda. Também para pô-lo em valor, já que
alguns de seus grandes quadros
estão no museu d'Orsay e são
particularmente mal expostos,
sob uma luz cheia de reflexos.
Courbet foi um pintor meio
esquecido até que "A Origem
do Mundo", tela representando
um sexo feminino, que pertenceu a Lacan, fosse doada a Orsay e causasse escândalo.
Viço
Courbet nasceu em Ornans,
cidadezinha perto de Besançon, hoje com 4.000 habitantes. Ornans tem um museu e
um instituto Gustave Courbet,
que não apenas investem seriamente no estudo do artista mas
ampliam suas coleções com
compras de obras de grande
qualidade. Enquanto a mostra
de Paris não vem, essas instituições organizaram uma outra
em Ornans, intitulada "A Apologia da Natureza ou o Exemplo
de Courbet" (até 31/10).
Dileto
A arte de Courbet deve muito
à natureza da Franche-Comté,
sua Província de origem, rica de
verdes, de falésias e de nascentes. Em suas paisagens, tudo é
imóvel, enraizado, telúrico.
Não se trata tanto de uma apologia, no sentido de celebração.
É antes uma fusão da pintura
com os mistérios mais secretos
da terra, das árvores, das águas.
jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: + Dez Próximo Texto: Biblioteca Básica: Memórias Póstumas de Brás Cubas Índice
|