São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2007

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+ Memória

A ciranda das artes

Com reflexão pioneira sobre moda, cinema e estética, Gilda de Mello e Souza é tema de debates no interior de SP

João Gilberto/Divulgação
A ensaísta Gilda de Mello e Souza em foto do músico João Gilberto, em 1968, nos EUA


WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um evento multimídia promovido pelo Sesc Araraquara (SP) homenageia Gilda de Mello e Souza (1919-2005) até 30 de setembro. No evento, intitulado "Gilda, a Paixão pela Forma", serão contempladas as várias facetas de suas atividades.
Haverá leituras de seus contos e de peças de teatro sobre as quais escreveu, exibição de filmes que analisou e de sua entrevista em DVD a respeito do cineasta Luchino Visconti [1906-76], um concerto e um ciclo de conferências. No mesmo período, uma exposição da cerâmica de Sara Carone, cuja obra mereceu sua atenção, completa essa escolha. Tudo com muita pertinência. Por que em Araraquara?
Porque ela pertencia a uma família araraquarense, tendo-se transferido para São Paulo a fim de fazer seus estudos, período em que moraria na casa do primo Mário de Andrade [1893-1945].
Das primeiras mulheres a estudar na Faculdade de Filosofia da USP, Gilda freqüentou as turmas estreantes, que tiveram o privilégio de ser alunas dos mestres europeus. Foi assim que se tornou discípula de Roger Bastide, Jean Maugüé e Claude Lévi-Strauss, o que definiria sua vida e sua carreira.
Por dez anos, foi assistente de Roger Bastide, passando depois a professora de estética, disciplina que inaugurou.
Gilda participaria da fundação da revista "Clima", em 1941, juntamente com colegas da faculdade, como Antonio Candido (com quem se casaria), Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Ruy Coelho, Lourival Gomes Machado, entre outros. Ali publicaria artigos e contos. Os membros da revista viriam a figurar entre os intelectuais mais relevantes do país nas décadas seguintes.
Sua tese de doutoramento, "A Moda no Século 19", republicada em 1987 pela Companhia das Letras com o título "O Espírito das Roupas", fora publicada inicialmente em 1952. Só bem mais tarde o tema seria descoberto pela universidade francesa, quando Roland Barthes publicou "O Sistema da Moda".
Em 1979 saiu "O Tupi e o Alaúde" (ed. Duas Cidades), uma exegese da prosa de Mário de Andrade, na qual Gilda se revelou excelente intérprete do escritor, sobre o qual ministrou numerosos cursos. Estudou-o nesse e noutros trabalhos enquanto ficcionista, poeta, colecionador, ensaísta, musicólogo e viajante.

Polifonia
Coligiu ensaios esparsos em "Exercícios de Leitura" (1980, Duas Cidades) e "A Idéia e o Figurado" (2005, ed. 34), nos quais se pode avaliar o alcance de sua erudição e a finura de suas análises, apreciados por quem assistia a seus cursos, conferências e argüições de tese ou lia seus livros e artigos.
É nesses volumes que se evidenciam seus vastos conhecimentos de artes plásticas. Gilda, enquanto estudava os teóricos, freqüentava museus e exposições, no país e no exterior, porque atribuía o valor da experiência a um contato pessoal com as obras. Nesses livros, a autora fala de estética, literatura, teatro, cinema, artes plásticas, cerâmica, cinema, fotografia e até de dança, num original ensaio sobre Fred Astaire.
Pedem destaque os textos sobre a filmografia de Antonioni, de Fellini, de Visconti e de Glauber Rocha, cineastas de sua preferência, cujas obras meticulosamente disseca.
À vista da obra de Gilda, se tentarmos definir qual é seu método de análise, logo sobressaem dois elementos. Primeiro, o primado do visual: o visual comanda sua percepção, que muitas vezes pode ser o insight do pormenor significativo.
Segundo, o contato com a obra concreta, para em seguida proceder a sua contextualização, a fim de extrair ilações psicológicas e sociais. Essa dupla estratégia, muito sua, conduz ao diagnóstico de uma tensão interna à obra de arte, que se pode traduzir numa opulência maior mas também, conforme o caso, numa fissura insolúvel.
Uma surpresa que seus livros nos reservam é que se tenha dedicado a fazer um estudo do gestual de Fred Astaire.
Parco na camuflagem -o preto-e-branco da casaca com cartola-, o dançarino tampouco chama a atenção para o corpo, que não aspira a ser mais que o suporte da beleza do gesto, "pura, livre, autônoma e descarnada". Sua coreografia delineia o sonho da felicidade num universo paralelo, regido pela harmonia, onde não vigoram brutalidade ou feiúra.
E fica para o leitor a lição da ousadia intelectual de Gilda, que selecionou um objeto de estudo inesperado e sem estatuto para dele extrair a beleza da reflexão.

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é crítica e ensaísta, autora de "As Musas sob Assédio" (Senac), entre outros.

MAIS INFORMAÇÕES - A programação de "Gilda, a Paixão pela Forma" pode ser consultada pelo telefone 0/xx/16/3301-7500


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