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O historiador Peter Burke aponta as vantagens de ficar de boca fechada
Escutar o silêncio
PETER BURKE
especial para a Folha
Para nós é comum pensar o silêncio como algo negativo, a mera
ausência do som. Neste artigo eu
tentarei persuadir você a pensar o
silêncio de uma maneira mais positiva.
Os silêncios -é melhor pensar
no plural- podem ser longos ou
curtos. Variam tanto em qualidade quanto em quantidade. Podem
ser naturais ou culturais, por
exemplo. Podem ser voluntários
ou forçados, espontâneos ou estratégicos, cálidos ou frios ou, como às vezes dizemos, "um silêncio de pedra". Podem ser normais
ou patológicos. A ausência do falar pode igualmente expressar
discrição ou humildade. Um silêncio desdenhoso ou insolente
precisa ser distinguido de um
ameaçador. As pessoas se encontram sem palavras por assombro,
embaraço ou até raiva. Enfim, o
silêncio não é um fenômeno puramente negativo.
O silêncio de um mestre hábil é
novamente distinto dos exemplos
que já citei. É a arte de fazer uma
pergunta difícil e depois dar ao
aluno tempo suficiente para meditar, para pensar na resposta.
Nos mosteiros zen-budistas, como conta a história, o mestre está
preparado para passar anos à espera de uma boa resposta. Sócrates foi mestre desse método, e nós
perdemos mais do que nos damos
conta quando lemos um relato de
suas palavras em lugar de ouvi-las
diretamente. Passados 2.000 anos,
já não podemos ouvir seus silêncios claramente.
Em outras palavras, vale a pena
tentar escutar os silêncios, embora às vezes seja difícil interpretá-los. Os "atos de silêncio" humanos, como os chamam os linguistas, sempre têm um sentido, seja
esse consciente ou inconsciente,
embora certos silêncios sejam
mais valiosos ou mais carregados
de significação que outros. Nós os
chamamos às vezes de silêncios
"significativos" ou "eloquentes",
aconteçam eles ora nos discursos,
ora nos sermões, ora nas peças de
teatro ou nos concertos musicais.
Esses silêncios são eloquentes
porque são pausas deliberadas
que acontecem na hora apropriada, equivalentes aos espaços vazios na arquitetura ou na pintura.
Podem ser até mais efetivos quando são inesperados.
Em outras palavras, o silêncio é
uma arte, como diziam nossos
antepassados, a arte de domar a
nossa língua. É um saber que pode e precisa ser aprendido. Poderia ser considerado uma forma de
conhecimento, o conhecimento
de quando, onde e em quais situações é melhor não falar. Ou, como
diriam os sociolinguistas de hoje,
o silêncio em si é uma forma de
comunicação que, como as outras
formas de comunicação, tem suas
próprias regras e convenções.
O exemplo mais impressionante e sofisticado que eu conheço
vem do Oriente. Era conhecido
como a "fala de pincel", na época
em que os pincéis eram usados
em vez das canetas para escrever.
O sentido do termo é que os chineses e os japoneses não podem
entender a língua falada dos outros. Ao contrário, os ideogramas
escritos são igualmente legíveis e
têm o mesmo significado em ambas as culturas. Como resultado
dessa herança comum, os chineses e os japoneses podem usar papel e caneta para levar a cabo uma
conversa silenciosa.
Mas de certa forma a maioria de
nós participa da comunicação silenciosa todo o dia, quando indicamos algo com a cabeça, piscamos os olhos, levamos um dedo
aos lábios ou levantamos os olhos
para os céus, sem mencionar os
gestos menos gentis dos que estão
atrás de um volante.
A minha preocupação principal, aqui, é com a particular variedade do silêncio, o silêncio da
conversação. Hoje talvez nos
achemos liberados de tudo isso,
mas ainda passamos um bom
tempo obedecendo a essas leis da
conversação, conscientemente ou
não. Essas leis incluem também
os seus contrários, as leis do silêncio, que tratam daquilo que não é
permitido dizer: quando, onde,
por quem, a quem e também,
com certeza, sobre o quê -em
outras palavras, as leis dos temas
proibidos.
As regras variam de um lugar
para outro, de um contexto social
para outro e de um tempo para
outro. Há uma geografia, uma sociologia e uma história do silêncio. Vamos começar pela geografia.
Alguns povos falam menos do
que outros; os europeus do norte,
por exemplo, menos do que os do
sul, como os italianos ou os gregos. A minha impressão dos brasileiros é que eles acham os ingleses artificial, incrível e até patologicamente silenciosos. Ora, os ingleses acham que os suecos são
bastante silenciosos, um estereótipo reforçado pelo famoso filme
do diretor Ingmar Bergman, "O
Silêncio" (1963). Para os suecos,
por outro lado, o povo silencioso
por excelência são os finlandeses.
Vamos continuar com o inglês
por um momento. Somos realmente tão silenciosos como pensamos, ou será esta imagem mais
um estereótipo bobo? Ao que sei,
nenhum sociolinguista tentou
medir diferenças nacionais em silêncio, embora não seja muito difícil levar a cabo um experimento
desse tipo. Mas contar os segundos de silêncio não é a única maneira de enfrentar o problema.
Considere o nosso vocabulário,
por exemplo. Temos uma grande
variedade de palavras para nomear as pessoas que falam demais, e a maioria delas é pejorativa. Essas pessoas são chamados
de "chatterboxes" (caixa de conversa) ou de "garrulous" (tagarela), de "loquacious" (loquaz),
"talkative" (falastrão), "wordy"
(verboso) e assim por diante. Nós
parecemos ser muito menos críticos com as pessoas que falam
pouco demais. Na verdade, algumas mulheres dizem que preferem um "homem forte e silencioso".
Vamos abordar a questão de
outra perspectiva, a experiência
de conversar ou tentar conversar
numa cultura na qual as regras
são diferentes das nossas, mesmo
que essa diferença pareça muito
pequena. Eu por acaso passei um
bom tempo nas culturas latinas,
desde a Itália até o Brasil, e uma
grande parte desse tempo passei
conversando. Desfrutei muito essa experiência, embora tenha a
certeza de que nessas culturas sou
percebido como uma pessoa bastante silenciosa. Uma razão do
meu silêncio é que fui criado na
crença de que é pouco gentil interromper as pessoas e portanto
eu espero até elas acabarem de falar. Mas elas nunca acabam!
Mais exatamente, as culturas diferem no tamanho da pausa depois da qual é considerado aceitável entrar na conversação. Os ingleses esperam um segundo mais
que os latinos. Talvez não seja um
segundo, mas uma fração de um
segundo, eu nunca tentei medi-lo.
O importante é que a demora, por
mais curta que seja, é fatal, porque
alguém sempre se adianta na minha frente. Portanto eu quase
nunca consigo dizer nada, pelo
menos em grupos de quatro pessoas ou mais, a não ser que alguém me faça uma pergunta direta e aguarde uma resposta.
A conclusão óbvia -mas importante- dessa tentativa de penetrar o silêncio inglês é que quase tudo é relativo, inclusive o silêncio. No século 17, quando os
ingleses começaram a colonizar a
Nova Inglaterra, notaram que os
seus vizinhos índios gostavam
ainda menos da "tagarelice" do
que eles mesmos. Certos povos
indígenas americanos, como os
apaches do Oeste, que moram no
Arizona, são famosos por ficar em
silêncio quando se encontram
com um desconhecido, ou nas fases iniciais de um namoro, ou
quando as crianças reencontram
os seus pais depois de uma longa
ausência, enfim, sempre e quando
uma pessoa ou uma situação lhes
é desconhecida. Nessas ocasiões
os apaches "desistem das palavras", como dizem eles mesmos,
até se acostumarem ao novo estado das coisas.
Em outras palavras, a questão
do silêncio não é só uma questão
de certas pessoas ou de certos povos que recusam fazer discursos
longos. Igualmente importante é
a existência de diferenças culturais consideráveis quanto ao que
se poderia chamar de "tolerância"
com o silêncio das outras pessoas,
diferenças no tempo que o silêncio pode durar até tornar incômoda a situação.
A tolerância inglesa do silêncio,
embora claramente mais baixa do
que a tolerância dos finlandeses
ou dos apaches do Oeste, sempre
foi suficiente para surpreender
muitos visitantes estrangeiros.
Um visitante da Suíça no século
18, por exemplo, nos deixou um
relato vívido dos jantares nas casas de campo inglesas, os cavalheiros retirando-se à sala de fumar não para conversar, muito
menos para debater, mas apenas
para pitar os seus cachimbos e, de
quando em quando, a fim de impedir que o silêncio se torne frio,
soltar uma frase como "How d'ye
do?" (Como vai?).
O visitante estrangeiro achou
esse costume um pouco estranho,
mas não de todo desagradável.
Decerto ele deu uma interpretação notavelmente generosa, elogiando a sinceridade de um povo
que não falava quando não tinha
nada para dizer e contrastando
esse autocontrole com a loquacidade dos franceses. Os ingleses do
século 18 parecem ter sido bem
menos generosos com eles próprios. De todo jeito, já faziam piadas sobre si mesmos nesse aspecto. Numa época em que os clubes
só começavam a entrar em moda
em Londres e noutras partes, o famoso jornal "The Spectator" descreveu a fundação de um "Mum
Club" que proibia os sócios de falarem entre si.
E assim, nos anos 1950, quando
o dramaturgo romano-francês
Eugène Ionesco satirizava um casal típico de ingleses na sua comédia "A Cantora Careca", incluindo nas suas marcações de cena
"um longo momento de silêncio
inglês", ele estava se inserindo numa longa tradição. Silêncio, por
favor, somos ingleses.
Os estereótipos servem no palco
do teatro, mas nós precisamos ter
cuidado para não os confundir
com a realidade. Por essa razão,
com o propósito de minar o estereótipo tradicional inglês de um
italiano falador, gostaria de falar
sobre a história do silêncio na Itália. Vou enfocar o século 16, a época de algumas discussões famosas
sobre a arte da conversação, como
as de Baldassare Castiglione, Giovanni Della Casa e Stefano Guazzo (três textos que foram traduzidos no século 16 e eram bem conhecidos na Inglaterra elisabetana).
Vamos voltar às leis da conversação -quem diz o quê, para
quem, quando e onde- e traduzir essas leis do silêncio. Quem
exatamente deve ficar calado, segundo esses escritores? Em primeiro lugar, as crianças na presença de adultos. Essa idéia de que
as crianças devem ser vistas, mas
não ouvidas, não foi uma invenção dos vitorianos. É muito mais
velha.
Em segundo lugar, as mulheres
deviam ficar em silêncio, especialmente em público, ou seja, na presença de homens que não fossem
parentes delas. O silêncio era um
símbolo da modéstia feminina.
Até uma proposta de casamento,
segundo um moralista italiano,
devia ficar sem resposta, sendo o
silêncio sinal suficiente de consentimento. Os homens sempre
citavam o elogio de São Paulo à
mulher calada.
"Por meio do silêncio", conta
um outro livro italiano de boa
conduta, "as mulheres logram a
fama da eloquência". Ele não se
referia aos olhares eloquentes pelos quais as damas de Gênova em
particular eram famosas. "Elas sabem escrever uma carta inteira
com um só olhar", declarou um
visitante. Ao contrário, o silêncio
que os livros elogiavam nas mulheres era o silêncio da submissão.
Ainda mais surpreendente, talvez, é descobrir que até os homens adultos eram aconselhados
a "falar pouco" na Itália. A reserva
era marca da discrição. Um provérbio italiano recomendava ficar
de olhos abertos e de boca fechada. O propósito de todos esses
conselhos era mais prático do que
moral: era para não divulgar os
assuntos particulares às pessoas
desconhecidas, para não dar informação aos rivais ou inimigos
potenciais.
Esses livros italianos expressam
o que se pode chamar de "cultura
da desconfiança", em que as outras pessoas, pelo menos fora da
família, são consideradas hostis
por suposição -ou no mínimo
prontas para aproveitar qualquer
fraqueza. O silêncio era um escudo. Esse "silêncio da discrição" recomendado aos homens adultos
contrasta com o silêncio de submissão esperado das mulheres e
das crianças.
Essas regras não eram absolutas, decerto. Em alguns locais,
desde cortes a mosteiros, e em
certas ocasiões, o silêncio era considerado particularmente importante. Os italianos aparentemente
achavam difícil ficar calados dentro da igreja e frequentemente
conversavam no teatro durante o
espetáculo. Por outro lado, eram
supostamente capazes de ficar calados nos cassinos de Veneza, os
famosos "ridotti".
Os criminosos tinham orgulho
da sua capacidade de ficar calados
sob interrogatório.
O silêncio da resistência mais
geral, que os sicilianos chamam
de "omertà" (hombridade), tem
sido uma grande força na sua história em particular. O silêncio é
também uma forma de resolução
de conflitos. No caso da Itália de
hoje, um sociólogo sugeriu que os
conflitos menores são associados
ao barulho, enquanto as brigas
mais sérias são resolvidas em ou
pelo silêncio. Se as pessoas gritarem quando você encostar no carro delas, não fique com medo. Só
quando elas ficam caladas há motivo de preocupação, porque as
ações podem vir em lugar das palavras.
E com isso chegamos ao objeto
do silêncio das pessoas. Em muitas partes do mundo a religião e o
silêncio são vinculados. Pode ser
uma forma de mostrar respeito
aos deuses. Uma outra alternativa
seria a crença ou a suposição de
que as verdades religiosas são inefáveis, impossíveis de expressar
por meio da linguagem humana.
Na Itália do século 16, os livros
de conselhos frequentemente recomendavam aos leitores falarem
pouco sobre a política, especialmente às pessoas desconhecidas,
para não as ofender. A cultura da
desconfiança também era a cultura em que ambos, o ofender e o
ofender-se, eram extremamente
fáceis -e muitos adultos habitualmente carregavam um punhal ou pelo menos uma faca. O
punhal pode não estar mais na
moda, mas a tradição do silêncio
político continua. Perguntar a um
desconhecido sobre o partido político que ele apóia é considerado
descortês. Na verdade, até pouco
tempo atrás a palavra "máfia" não
se ouvia na Sicília, ao menos em
público, até que o tabu foi propositalmente quebrado pelo prefeito
de Palermo.
Há uma tentação de argumentar que na Europa do sul a política
é um tema proibido, enquanto na
Europa do norte o tabu é o sexo.
Novamente, devemos estar atentos aos estereótipos simplistas, especialmente quando se trata de
divisão norte-sul. Afinal de contas, no século 16 as damas italianas eram aconselhadas a ter cuidado com as possíveis conotações
sexuais dos seus comentários.
Um escritor até as aconselhou a
falar "castanhas" quando na verdade queriam dizer "figos", uma
fruta que era vinculada à sexualidade. Nesse campo minado das
palavras, o silêncio total deve ter
sido às vezes a saída mais segura.
Não há que estranhar que as pessoas falassem do silêncio como de
uma arte. Ele implicava muito
mais do que saber escutar bem.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "A
Arte da Conversação" e "História Social da
Linguagem" (Ed. da Unesp).
Tradução de Polina Vasiliev.
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