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O escritor Juan José Saer critica a tagarelice literária
A arte de dizer menos
MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação
A literatura está cada vez mais
enredada no falatório da mídia.
Essa é a opinião de Juan José Saer,
62, um dos principais escritores
argentinos da atualidade. Há mais
de 30 anos radicado na França,
Saer não se preocupa em ferir suscetibilidades e diz abertamente
que ser escritor não é algo que esteja ao alcance de qualquer um.
"Qualquer pessoa, seja ela um ministro, um assassino de bebês ou
uma prostituta, para realizar-se
plenamente em qualquer uma
dessas especialidades, escreve um
romance. Todos se tornaram romancistas."
Para ele, a crescente necessidade
de transformar em livro a própria
experiência está intimamente ligada à cultura da informação deste fim de século. Contra a tagarelice e o ruído, Saer defende o silêncio como meio de renovar a desgastada experiência subjetiva.
Não o silêncio de Rimbaud, que
aos 19 anos desistiu da poesia,
mas aquilo que pode ser silenciado no texto -tal como as pausas
numa partitura.
"Para mim o mundo é opaco e
os fatos e acontecimentos que nele ocorrem também o são (...) O
silêncio que busco em meus livros
é em certa medida a tradução dessa opacidade", diz Saer, que no
próximo dia 8 receberá em Paris,
junto com o poeta Haroldo de
Campos, o Prêmio Roger Callois
pelo conjunto da obra.
Conhecido no Brasil pelos romances "Ninguém Nada Nunca"
e "A Pesquisa" (Companhia das
Letras), Saer estará na Argentina
em outubro para lançar seu novo
livro de ensaios, "La Narración
Objeto" (Ed. Seix Barral).
Leia a seguir a entrevista que ele
concedeu à Folha, de Paris, por
telefone.
Folha - Numa entrevista de
1994 o sr. disse que, em seus romances, "o verdadeiro da trama
fica em silêncio". Gostaria que
comentasse essa afirmação.
Juan José Saer - O silêncio em
literatura tem vários níveis. O primeiro deles é o silêncio mesmo da
leitura. Uma das coisas específicas
da literatura é a leitura em silêncio
e em solidão. Isso é muito importante, porque torna a literatura
mais difícil de ser apropriada pelo
meio industrial, o que não acontece, por exemplo, com a música,
tornada música de fundo ou música ambiente, ou com a pintura,
que serve cada vez mais à difusão
publicitária -um processo que
foi notado por Walter Benjamin
já nos anos 30. Penso nos quadros
de Miró, totalmente banalizados
pela publicidade, que tomou algumas de suas linhas para criar
uma imagem da Espanha ou da
Catalunha. Não se pode fazer isso
com a literatura, sobretudo porque ela requer uma leitura silenciosa e solitária.
Outra coisa é o silêncio como tema, cujos sentidos podem ser
imediatos ou metafóricos. Kafka,
referindo-se metaforicamente ao
silêncio numa de suas parábolas,
disse que as sereias hoje têm uma
arma mais fatal que suas canções,
o silêncio -do qual já ninguém
poderá escapar.
Por último, há o que se silencia
no texto, seja porque o escritor
não se atreve a falar de algo, seja
porque, silenciando, aquilo que é
dito adquire uma espécie de ambiguidade e força interior. É como
se as coisas que não são ditas, mas
que estão subjacentes ao texto, lhe
conferissem uma outra dimensão. Isso ocorre com muitos autores, alguns extremamente elípticos, que dizem menos do que
queriam dizer e muitas vezes nem
sequer sugerem. As coisas não ditas ficam então flutuando, porque
o leitor percebe que foram silenciadas conscientemente. Mas às
vezes o silêncio se produz simplesmente por inconsciência do
autor (o que a meu ver resulta ainda melhor), porque ele mesmo esquece ou omite aquilo que o leitor
percebe. Isso é o que confere subjetividade tão forte aos grandes
textos literários.
Folha - Hoje se tornou um lugar-comum da crítica dizer que
tal ou qual autor escreve contra
o silêncio...
Saer - Eu sou a favor do silêncio!
Folha - ...E seus romances
transformam o silêncio em matéria indispensável. Penso no
início de "El Limonero Real"
(1974): "Cinquenta anos de ouvir a voz dos galos de manhã (...)
não lhe permitem escutar no
presente outra coisa senão o silêncio".
Saer - Creio que a busca do silêncio -o silêncio material, entendido como fenômeno físico-
é a procura de uma espécie de autenticidade da experiência, de renovação da experiência, como se
o silêncio fosse um ponto ou grau
zero a partir do qual se começasse
outra vez a perceber o mundo. Estamos rodeados de ruídos, e esses
ruídos não são somente sonoros,
são ruídos visuais, ideológicos.
Escrevi no prólogo a "El Silenciero", grande livro de Antonio di
Benedetto (1922-1986) -para
mim o maior narrador argentino-, que o ruído é para ele um
instrumento de não deixar ser,
não deixar viver. Há coisas em "El
Silenciero" muito interessantes.
Ele notou, por exemplo, que nesses anos havia sido criada a expressão "estar en el ruido", no
sentido de ser moderno, "estar na
onda", ou seja, ter que se divertir,
"viver a vida". Então ele responde
que o que mais queria era escapar
da vida imposta pelos outros e viver a que ele mesmo elegesse.
Folha - O sr. não acha que muito da literatura atual também
"está no ruído"?
Saer - Sim, claro. Houve um aumento do aspecto industrial da
edição, que demanda cada vez
mais "matéria-prima" para produzir suas mercadorias e continuar a existir. Sempre houve escritores populares, e não sou contra isso, mas o que acontece hoje
com esse projeto industrial? Agora, na França, apareceram de uma
só vez umas 600 novelas. De umas
550 delas nunca se ouvirá falar, e é
possível que haja entre elas umas
10 excelentes, mas das quais nunca nos inteiraremos porque nem
sequer os livreiros as querem, já
que não têm mais lugar onde as
colocar. E assim chegamos a esse
tipo de cadeia infernal.
Por outro lado, há uma confusão entre literatura e jornalismo
que antes não existia. Há um tipo
de literatura jornalística, de estilo
rápido, descuidado, descosturado, que passou ao campo da ficção. Parece que o romance se tornou o ponto culminante na vida
espiritual de um homem. Qualquer pessoa, seja ela um ministro,
um assassino de bebês ou uma
prostituta, para realizar-se plenamente em qualquer uma dessas
especialidades, escreve um romance. Todos se tornaram romancistas. Mas a gente confunde
o fato de estar alfabetizada com o
fato de ser escritor. A narrativa é
uma arte que tem suas regras, como a pintura, a música, não é um
puro vômito confessional nem resultado de uma experiência rica
ou particular. A experiência de
Kafka, um empregado numa
agência de seguros, não tinha nada de interessante; ou de Borges,
que trabalhou numa pequena biblioteca de bairro; ou de Guimarães Rosa, que era diplomata, mas
cujo mundo certamente não tinha
nada a ver com o mundo do sertão. Enfim, as pessoas não entendem que um romance é o resultado de uma organização particular, uma construção específica
que não necessariamente tem relação com o referente jornalístico.
Folha - A literatura seria uma
forma de reação a essa ditadura
da comunicabilidade?
Saer - Exatamente. Mas é preciso
antes dizer que essa comunicabilidade ruidosa da imprensa não
comunica nada. Porque a comunicação, que pretende veicular
mensagens puras, imediatamente
compreensíveis, é distorcida por
seus próprios meios e instrumentos. Se observarmos como os jornais, a televisão etc. organizam a
informação, nos damos conta de
que o "conteúdo" que eles pretendem comunicar está tratado e
modificado de mil maneiras diferentes, segundo as intenções de
quem o edita -o que não quer
dizer que a gente de imprensa seja
desonesta ou mal-intencionada.
Simplesmente as leis de seu meio
os obrigam a isso. Por exemplo, a
relevância de um artigo depende
quase exclusivamente do lugar
que lhe dão no jornal e do tamanho das letras de seu título.
Folha - O uso do silêncio e do
não dito, em seus romances, seria uma estratégia de neutralizar esse discurso hoje hegemônico da objetividade?
Saer - Para mim o mundo é
opaco, e os fatos e acontecimentos que nele ocorrem também o
são. Creio que todo discurso afirmativo, toda pretensa clarividência, tem pouca razão de ser. O silêncio que busco em meus livros é
em certa medida a tradução dessa
opacidade. Em suma, se relaciona
com uma espécie de reserva de
subjetividade. Mas não aquela
subjetividade romântica, que partia da psicologia dos personagens.
Não se trata de criar um tipo, um
caráter, mas de conferir uma existência subjetiva a partir do que é
silenciado. Meus personagens falam pouco -ao contrário de seu
autor (risos).
Mesmo em minha incursão pela
novela policial ("A Pesquisa", livro publicado este ano no Brasil),
tratei de trabalhar a opacidade,
usando um desenlace duplo
-quando toda novela policial se
sustenta num final de sentido unívoco. É o que chamo de "política
da decepção". Além disso, a única
morte real no romance é a de uma
mariposa, que aparece no final do
livro. Todas as outras são apenas
narradas em "flashback".
Folha - O sr. costuma escrever
em silêncio?
Saer - Sempre em silêncio,
acompanhado de mate, café ou
água. Quando era jovem, ainda na
Argentina, conseguia escrever
com algum barulho. Mas hoje
não. Além do mais, tenho que me
isolar dos sons franceses que me
cercam, não posso deixar que eles
entrem na prosa castelhana -só
escrevo em espanhol, exceto coisas rápidas e práticas. A verdade é
que sou um homem da primeira
metade do século, não uso e-mail
e meu fax está quebrado. Mas, como este século ainda não acabou,
tenho mais uns meses para considerar-me um contemporâneo.
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