São Paulo, Domingo, 19 de Setembro de 1999
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O escritor Juan José Saer critica a tagarelice literária
A arte de dizer menos

MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação

A literatura está cada vez mais enredada no falatório da mídia. Essa é a opinião de Juan José Saer, 62, um dos principais escritores argentinos da atualidade. Há mais de 30 anos radicado na França, Saer não se preocupa em ferir suscetibilidades e diz abertamente que ser escritor não é algo que esteja ao alcance de qualquer um. "Qualquer pessoa, seja ela um ministro, um assassino de bebês ou uma prostituta, para realizar-se plenamente em qualquer uma dessas especialidades, escreve um romance. Todos se tornaram romancistas."
Para ele, a crescente necessidade de transformar em livro a própria experiência está intimamente ligada à cultura da informação deste fim de século. Contra a tagarelice e o ruído, Saer defende o silêncio como meio de renovar a desgastada experiência subjetiva. Não o silêncio de Rimbaud, que aos 19 anos desistiu da poesia, mas aquilo que pode ser silenciado no texto -tal como as pausas numa partitura.
"Para mim o mundo é opaco e os fatos e acontecimentos que nele ocorrem também o são (...) O silêncio que busco em meus livros é em certa medida a tradução dessa opacidade", diz Saer, que no próximo dia 8 receberá em Paris, junto com o poeta Haroldo de Campos, o Prêmio Roger Callois pelo conjunto da obra.
Conhecido no Brasil pelos romances "Ninguém Nada Nunca" e "A Pesquisa" (Companhia das Letras), Saer estará na Argentina em outubro para lançar seu novo livro de ensaios, "La Narración Objeto" (Ed. Seix Barral).
Leia a seguir a entrevista que ele concedeu à Folha, de Paris, por telefone.

Folha - Numa entrevista de 1994 o sr. disse que, em seus romances, "o verdadeiro da trama fica em silêncio". Gostaria que comentasse essa afirmação.
Juan José Saer -
O silêncio em literatura tem vários níveis. O primeiro deles é o silêncio mesmo da leitura. Uma das coisas específicas da literatura é a leitura em silêncio e em solidão. Isso é muito importante, porque torna a literatura mais difícil de ser apropriada pelo meio industrial, o que não acontece, por exemplo, com a música, tornada música de fundo ou música ambiente, ou com a pintura, que serve cada vez mais à difusão publicitária -um processo que foi notado por Walter Benjamin já nos anos 30. Penso nos quadros de Miró, totalmente banalizados pela publicidade, que tomou algumas de suas linhas para criar uma imagem da Espanha ou da Catalunha. Não se pode fazer isso com a literatura, sobretudo porque ela requer uma leitura silenciosa e solitária.
Outra coisa é o silêncio como tema, cujos sentidos podem ser imediatos ou metafóricos. Kafka, referindo-se metaforicamente ao silêncio numa de suas parábolas, disse que as sereias hoje têm uma arma mais fatal que suas canções, o silêncio -do qual já ninguém poderá escapar.
Por último, há o que se silencia no texto, seja porque o escritor não se atreve a falar de algo, seja porque, silenciando, aquilo que é dito adquire uma espécie de ambiguidade e força interior. É como se as coisas que não são ditas, mas que estão subjacentes ao texto, lhe conferissem uma outra dimensão. Isso ocorre com muitos autores, alguns extremamente elípticos, que dizem menos do que queriam dizer e muitas vezes nem sequer sugerem. As coisas não ditas ficam então flutuando, porque o leitor percebe que foram silenciadas conscientemente. Mas às vezes o silêncio se produz simplesmente por inconsciência do autor (o que a meu ver resulta ainda melhor), porque ele mesmo esquece ou omite aquilo que o leitor percebe. Isso é o que confere subjetividade tão forte aos grandes textos literários.

Folha - Hoje se tornou um lugar-comum da crítica dizer que tal ou qual autor escreve contra o silêncio...
Saer -
Eu sou a favor do silêncio!

Folha - ...E seus romances transformam o silêncio em matéria indispensável. Penso no início de "El Limonero Real" (1974): "Cinquenta anos de ouvir a voz dos galos de manhã (...) não lhe permitem escutar no presente outra coisa senão o silêncio".
Saer -
Creio que a busca do silêncio -o silêncio material, entendido como fenômeno físico- é a procura de uma espécie de autenticidade da experiência, de renovação da experiência, como se o silêncio fosse um ponto ou grau zero a partir do qual se começasse outra vez a perceber o mundo. Estamos rodeados de ruídos, e esses ruídos não são somente sonoros, são ruídos visuais, ideológicos. Escrevi no prólogo a "El Silenciero", grande livro de Antonio di Benedetto (1922-1986) -para mim o maior narrador argentino-, que o ruído é para ele um instrumento de não deixar ser, não deixar viver. Há coisas em "El Silenciero" muito interessantes. Ele notou, por exemplo, que nesses anos havia sido criada a expressão "estar en el ruido", no sentido de ser moderno, "estar na onda", ou seja, ter que se divertir, "viver a vida". Então ele responde que o que mais queria era escapar da vida imposta pelos outros e viver a que ele mesmo elegesse.

Folha - O sr. não acha que muito da literatura atual também "está no ruído"?
Saer -
Sim, claro. Houve um aumento do aspecto industrial da edição, que demanda cada vez mais "matéria-prima" para produzir suas mercadorias e continuar a existir. Sempre houve escritores populares, e não sou contra isso, mas o que acontece hoje com esse projeto industrial? Agora, na França, apareceram de uma só vez umas 600 novelas. De umas 550 delas nunca se ouvirá falar, e é possível que haja entre elas umas 10 excelentes, mas das quais nunca nos inteiraremos porque nem sequer os livreiros as querem, já que não têm mais lugar onde as colocar. E assim chegamos a esse tipo de cadeia infernal.
Por outro lado, há uma confusão entre literatura e jornalismo que antes não existia. Há um tipo de literatura jornalística, de estilo rápido, descuidado, descosturado, que passou ao campo da ficção. Parece que o romance se tornou o ponto culminante na vida espiritual de um homem. Qualquer pessoa, seja ela um ministro, um assassino de bebês ou uma prostituta, para realizar-se plenamente em qualquer uma dessas especialidades, escreve um romance. Todos se tornaram romancistas. Mas a gente confunde o fato de estar alfabetizada com o fato de ser escritor. A narrativa é uma arte que tem suas regras, como a pintura, a música, não é um puro vômito confessional nem resultado de uma experiência rica ou particular. A experiência de Kafka, um empregado numa agência de seguros, não tinha nada de interessante; ou de Borges, que trabalhou numa pequena biblioteca de bairro; ou de Guimarães Rosa, que era diplomata, mas cujo mundo certamente não tinha nada a ver com o mundo do sertão. Enfim, as pessoas não entendem que um romance é o resultado de uma organização particular, uma construção específica que não necessariamente tem relação com o referente jornalístico.

Folha - A literatura seria uma forma de reação a essa ditadura da comunicabilidade? Saer - Exatamente. Mas é preciso antes dizer que essa comunicabilidade ruidosa da imprensa não comunica nada. Porque a comunicação, que pretende veicular mensagens puras, imediatamente compreensíveis, é distorcida por seus próprios meios e instrumentos. Se observarmos como os jornais, a televisão etc. organizam a informação, nos damos conta de que o "conteúdo" que eles pretendem comunicar está tratado e modificado de mil maneiras diferentes, segundo as intenções de quem o edita -o que não quer dizer que a gente de imprensa seja desonesta ou mal-intencionada. Simplesmente as leis de seu meio os obrigam a isso. Por exemplo, a relevância de um artigo depende quase exclusivamente do lugar que lhe dão no jornal e do tamanho das letras de seu título.

Folha - O uso do silêncio e do não dito, em seus romances, seria uma estratégia de neutralizar esse discurso hoje hegemônico da objetividade?
Saer -
Para mim o mundo é opaco, e os fatos e acontecimentos que nele ocorrem também o são. Creio que todo discurso afirmativo, toda pretensa clarividência, tem pouca razão de ser. O silêncio que busco em meus livros é em certa medida a tradução dessa opacidade. Em suma, se relaciona com uma espécie de reserva de subjetividade. Mas não aquela subjetividade romântica, que partia da psicologia dos personagens. Não se trata de criar um tipo, um caráter, mas de conferir uma existência subjetiva a partir do que é silenciado. Meus personagens falam pouco -ao contrário de seu autor (risos).
Mesmo em minha incursão pela novela policial ("A Pesquisa", livro publicado este ano no Brasil), tratei de trabalhar a opacidade, usando um desenlace duplo -quando toda novela policial se sustenta num final de sentido unívoco. É o que chamo de "política da decepção". Além disso, a única morte real no romance é a de uma mariposa, que aparece no final do livro. Todas as outras são apenas narradas em "flashback".

Folha - O sr. costuma escrever em silêncio?
Saer -
Sempre em silêncio, acompanhado de mate, café ou água. Quando era jovem, ainda na Argentina, conseguia escrever com algum barulho. Mas hoje não. Além do mais, tenho que me isolar dos sons franceses que me cercam, não posso deixar que eles entrem na prosa castelhana -só escrevo em espanhol, exceto coisas rápidas e práticas. A verdade é que sou um homem da primeira metade do século, não uso e-mail e meu fax está quebrado. Mas, como este século ainda não acabou, tenho mais uns meses para considerar-me um contemporâneo.



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