São Paulo, Domingo, 19 de Setembro de 1999
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RÉPLICA
Leia texto sobre "Céu-Eclipse", enviado ao Mais! pelo autor do livro, Régis Bonvicino, como resposta à crítica publicada no domingo passado
Sobre o estado das coisas

HORÁCIO COSTA
especial para a Folha

Régis Bonvicino tem se afirmado como importante presença na literatura brasileira neste final de século."Céu-Eclipse", sua mais recente coletânea de poemas, reatesta sem ambiguidades seu lugar. Este livro aponta para a dicção subjetiva de homem e poeta amadurecido, que fala para a coletividade, num preciso momento histórico.
Comecemos pela felicidade da escolha do título, que vincula, num procedimento caro à tradição moderna -lembremo-nos do "soleil noir de la Mélancolie", do soneto "El Desdichado", de Gérard de Nerval-, duas noções antinômicas, porém conexas, para alcançar funcionamento metafórico transparente e palpável consistência poética. Se a noção de "céu" desperta, como amálgama de símbolos, a fuga para e o encontro com o infinito, num feixe de possibilidades que reverberam do uso da linguagem cotidiana até o nível da sensibilidade religiosa, "eclipse" representa, se não o oposto, ao menos uma degradação desse conceito luminoso, quase perfazendo -perseguindo sempre um horizonte simbólico- uma espécie de "não céu", a inversão iminente do "céu que nos protege" a promessa das mais variadas ameaças.
Agora bem, se a "transformação" do céu em "eclipse" apresenta uma possibilidade interpretativa segura do título, por outro lado, tal implicaria não menos uma redução do imbricamento poético desses dois termos antinômicos, que não está à altura de seu acerto. A meu ver, o enunciado "céu-eclipse" não deve ser reduzido em termos teleológicos que tais, porque isso acarretaria a disfuncionalização de sua mais importante atribuição, a de estabelecer um quociente de irisação metafórica para lá dos conteúdos simbólicos antes esboçados.
O título aponta para um tipo de sensibilidade e de uso linguístico que, enfrentando-se com a magnitude semântica de seus termos constitutivos, maliciosamente prefere hesitar entre o processo de nomeação - "céu de eclipse" ou, ainda, "eclipse do céu" e o de substituição "céu como eclipse", "eclipse como céu" - para propiciar, em sua dualidade irresolúvel, a perquirição mais propriamente poética. Essa operação de aproximar entidades vinculadas em seu "crux" pela antinomia, resolvidas no título do livro em equilíbrio instável, em constante hesitação, ilumina modelarmente a leitura de "Céu-Eclipse", como se estabelecendo uma unidade mínima de escritura (uma espécie de mínimo múltiplo comum retórico) que, indiretamente, porém, como bússola, se oferece como elemento dorsal para sua leitura, para sua interpretação.
Uma vez identificada essa inflexão de base, moderna e também pós-moderna (ao impor à primeira o capuz nem sempre tranquilizador da hesitação entre registros), convém chamar a atenção para o selo "poema-idéia", com o que o poeta nomeia o livro. Se por um lado o volume estampa as datas de sua escritura (maio 96/abril 99), o que poderia levar a pensá-lo como uma espécie "sui generis" de "diário poético" descontínuo, por outro esse selo busca transferir a experiência individual do poeta para a arena mais complexa da razão coletivamente compartilhável. Eticamente, não é gratuita tal designação, pois, antes de tudo, relativiza a disposição poemática em sua sucessividade, como se se tratassem eles, os poemas, de elos de um pensar poético perseguido por meio de sintagmas estruturantes do discurso (um "journal" sim, mas um "journal do pensamento" e não de eventos ou de eventualidades, em luta por seu acrisolamento em gramas de poesia).
Vamos a alguns poemas. Em consonância com o que acaba de ser dito, reproduzo aqui "Esboço": "Facas em punho/ numa reunião de muros/ riscados/ Tarde de verão/ na cela/ sentados -/ uma lâmpada no teto/ é um sol apagado". Nesse caso, a temática do confinamento, de acordo com a notação da peça, claramente cidadã, referente ao universo social do Brasil contemporâneo, adquire por meio da imagem disposta nos versos finais um cariz ontológico: aqui, ao contrário do que preveria o título, esse "esboço" define-se em idéia, traço certeiro, intróito à paisagem, seja ela a aferível com as que se nos deparamos no dia-a-dia ou as regidas pelo "sol negro" plantado no centro do hemisfério do céu-eclipse.
Justamente, ao longo do livro, impõe-se a exploração, por parte do poeta, do espaço e dos avatares urbanos, referidos principalmente à pulsação, ao influxo de São Paulo, mas também na reverberação dele, poeta, por metrópoles similares. No poema "031197" (notação que joga com a acepção de "diário"), a escritura espraia-se nesse embate, para terminar por formular-se num procedimento de sumarização semelhante ao apontado: "Eu também moro nas ruas. Uma ponta de cigarro na orelha e um cinzeiro -na mão. "Você não parece morar nas ruas". Um caco de dente na boca. Naquele instante, edifícios saqueavam sombras, insones, parindo cobras. Ele poderia subitamente Ter sacado a faca, na calçada, disseram. Há margens debruadas de luzes. Edifícios cúbicos movendo-se sob arcadas de samaúmas. Esquinas defuntas? E, sob um arco, down town, lâmpadas inchadas medindo o horizonte. Correm vozes em desordem, mudas, e um guincho talvez de guaxanim. De tarde, corvos latindo nas árvores e um cacto abrupto de casa. Estradas guiando noites. Quase ao lado do Johnnie's, Coffee Shop, com seu leve jogo de luzes. Paredes não se encolhiam como sono. Aqua & branco. Alba imóvel dentro do quarto". Um "guincho de guaxanim" (variação eufônica de "guaxinim", do tupi "waxi'ni") -fulguração do confinamento, grito do excluído- opõe-se a esse "aqua & branco", a essa "alba imóvel dentro do quarto". O movimento de recepção da alteridade resulta, exemplarmente, num outro, de acepção pendular, se quisermos, que implica sua decantação: trabalho poético.
Um último poema."Sem Título" recoloca esse movimento em aras da mais cristalina melancolia, para a exploração da possibilidade da escritura poética sob os ventos tão pouco alísios como os que nos defrontamos: "Corpo/ inconsciente/ de uma nuvem/ carga exponencial nula/ De uma flor/ ao sol/ braços e pernas de/ Osíris/ Por limbos -/ olhou pela janela/ afastando a/ cortina de repente/ Noite/ olhou para o vidro/ cego antes/ um avião vazio a caminho/ Espere não espere/ à distância do/ silêncio à sombra do espaço/ a música dos limbos/ Sexta, 9 de outubro de 98/ 9 de outubro de 99/ Sábado/ e o hino dos dias". Nessa retomada da noção clássica, que vê a palavra poética como instrumento apto para a captação da música das esferas ou "música dos limbos", reapresenta-se a instabilidade referencial já aludida. Se, por uma via, afirma o "quid" do verbo e da tradição poética, por outra esse "perder-se" nessa repetitividade calendárica (como "avião vazio" contra "vidro cego", em sua perpétua busca do nímio ou do nada), de um dia que se prevê circularmente passado um ano e, em sua supina insignificação, aponta para o sentido contrário: palavra e experiência destituídas,"hino" que se balança entre ser e deixar de ser.
Escreveu acertadamente Claude Royet-Journoud ao falar da poesia de Bonvicino: " ...Na minuciosa lentidão do mundo (...) um imperceptível movimento abala a superfície, que, sob nossos olhos, se arruína e num instante se reconstrói". "Céu-Eclipse" dá conta dessa configuração problemática e fala ao tempo por vir.


Horácio Costa é poeta, ensaísta, doutor em literatura pela Universidade Yale e professor titular de literatura da Universidade Autônoma do México.


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