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RÉPLICA
Leia texto sobre "Céu-Eclipse", enviado ao Mais! pelo autor do livro, Régis Bonvicino, como resposta à crítica publicada no domingo passado
Sobre o estado das coisas
HORÁCIO COSTA
especial para a Folha
Régis Bonvicino tem se afirmado como importante presença na
literatura brasileira neste final de
século."Céu-Eclipse", sua mais
recente coletânea de poemas, reatesta sem ambiguidades seu lugar.
Este livro aponta para a dicção
subjetiva de homem e poeta amadurecido, que fala para a coletividade, num preciso momento histórico.
Comecemos pela felicidade da
escolha do título, que vincula,
num procedimento caro à tradição moderna -lembremo-nos
do "soleil noir de la Mélancolie",
do soneto "El Desdichado", de
Gérard de Nerval-, duas noções
antinômicas, porém conexas, para alcançar funcionamento metafórico transparente e palpável
consistência poética. Se a noção
de "céu" desperta, como amálgama de símbolos, a fuga para e o
encontro com o infinito, num feixe de possibilidades que reverberam do uso da linguagem cotidiana até o nível da sensibilidade religiosa, "eclipse" representa, se não
o oposto, ao menos uma degradação desse conceito luminoso,
quase perfazendo -perseguindo
sempre um horizonte simbólico- uma espécie de "não céu", a
inversão iminente do "céu que
nos protege" a promessa das mais
variadas ameaças.
Agora bem, se a "transformação" do céu em "eclipse" apresenta uma possibilidade interpretativa segura do título, por outro lado, tal implicaria não menos uma
redução do imbricamento poético desses dois termos antinômicos, que não está à altura de seu
acerto. A meu ver, o enunciado
"céu-eclipse" não deve ser reduzido em termos teleológicos que
tais, porque isso acarretaria a disfuncionalização de sua mais importante atribuição, a de estabelecer um quociente de irisação metafórica para lá dos conteúdos
simbólicos antes esboçados.
O título aponta para um tipo de
sensibilidade e de uso linguístico
que, enfrentando-se com a magnitude semântica de seus termos
constitutivos, maliciosamente
prefere hesitar entre o processo de
nomeação - "céu de eclipse" ou,
ainda, "eclipse do céu" e o de
substituição "céu como eclipse",
"eclipse como céu" - para propiciar, em sua dualidade irresolúvel,
a perquirição mais propriamente
poética. Essa operação de aproximar entidades vinculadas em seu
"crux" pela antinomia, resolvidas
no título do livro em equilíbrio
instável, em constante hesitação,
ilumina modelarmente a leitura
de "Céu-Eclipse", como se estabelecendo uma unidade mínima de
escritura (uma espécie de mínimo
múltiplo comum retórico) que,
indiretamente, porém, como bússola, se oferece como elemento
dorsal para sua leitura, para sua
interpretação.
Uma vez identificada essa inflexão de base, moderna e também
pós-moderna (ao impor à primeira o capuz nem sempre tranquilizador da hesitação entre registros), convém chamar a atenção
para o selo "poema-idéia", com o
que o poeta nomeia o livro. Se por
um lado o volume estampa as datas de sua escritura (maio 96/abril
99), o que poderia levar a pensá-lo
como uma espécie "sui generis"
de "diário poético" descontínuo,
por outro esse selo busca transferir a experiência individual do
poeta para a arena mais complexa
da razão coletivamente compartilhável. Eticamente, não é gratuita
tal designação, pois, antes de tudo, relativiza a disposição poemática em sua sucessividade, como
se se tratassem eles, os poemas, de
elos de um pensar poético perseguido por meio de sintagmas estruturantes do discurso (um
"journal" sim, mas um "journal
do pensamento" e não de eventos
ou de eventualidades, em luta por
seu acrisolamento em gramas de
poesia).
Vamos a alguns poemas. Em
consonância com o que acaba de
ser dito, reproduzo aqui "Esboço": "Facas em punho/ numa reunião de muros/ riscados/ Tarde de
verão/ na cela/ sentados -/ uma
lâmpada no teto/ é um sol apagado". Nesse caso, a temática do
confinamento, de acordo com a
notação da peça, claramente cidadã, referente ao universo social do
Brasil contemporâneo, adquire
por meio da imagem disposta nos
versos finais um cariz ontológico:
aqui, ao contrário do que preveria
o título, esse "esboço" define-se
em idéia, traço certeiro, intróito à
paisagem, seja ela a aferível com
as que se nos deparamos no dia-a-dia ou as regidas pelo "sol negro"
plantado no centro do hemisfério
do céu-eclipse.
Justamente, ao longo do livro,
impõe-se a exploração, por parte
do poeta, do espaço e dos avatares
urbanos, referidos principalmente à pulsação, ao influxo de São
Paulo, mas também na reverberação dele, poeta, por metrópoles similares. No poema "031197" (notação que joga com a acepção de
"diário"), a escritura espraia-se
nesse embate, para terminar por
formular-se num procedimento
de sumarização semelhante ao
apontado: "Eu também moro nas
ruas. Uma ponta de cigarro na
orelha e um cinzeiro -na mão.
"Você não parece morar nas ruas".
Um caco de dente na boca. Naquele instante, edifícios saqueavam sombras, insones, parindo
cobras. Ele poderia subitamente
Ter sacado a faca, na calçada, disseram. Há margens debruadas de
luzes. Edifícios cúbicos movendo-se sob arcadas de samaúmas. Esquinas defuntas? E, sob um arco,
down town, lâmpadas inchadas
medindo o horizonte. Correm vozes em desordem, mudas, e um
guincho talvez de guaxanim. De
tarde, corvos latindo nas árvores e
um cacto abrupto de casa. Estradas guiando noites. Quase ao lado
do Johnnie's, Coffee Shop, com
seu leve jogo de luzes. Paredes não
se encolhiam como sono. Aqua &
branco. Alba imóvel dentro do
quarto". Um "guincho de guaxanim" (variação eufônica de "guaxinim", do tupi "waxi'ni") -fulguração do confinamento, grito
do excluído- opõe-se a esse
"aqua & branco", a essa "alba
imóvel dentro do quarto". O movimento de recepção da alteridade resulta, exemplarmente, num
outro, de acepção pendular, se
quisermos, que implica sua decantação: trabalho poético.
Um último poema."Sem Título" recoloca esse movimento em
aras da mais cristalina melancolia, para a exploração da possibilidade da escritura poética sob os
ventos tão pouco alísios como os
que nos defrontamos: "Corpo/ inconsciente/ de uma nuvem/ carga
exponencial nula/ De uma flor/ ao
sol/ braços e pernas de/ Osíris/
Por limbos -/ olhou pela janela/
afastando a/ cortina de repente/
Noite/ olhou para o vidro/ cego
antes/ um avião vazio a caminho/
Espere não espere/ à distância do/
silêncio à sombra do espaço/ a
música dos limbos/ Sexta, 9 de
outubro de 98/ 9 de outubro de
99/ Sábado/ e o hino dos dias".
Nessa retomada da noção clássica, que vê a palavra poética como
instrumento apto para a captação
da música das esferas ou "música
dos limbos", reapresenta-se a instabilidade referencial já aludida.
Se, por uma via, afirma o "quid"
do verbo e da tradição poética,
por outra esse "perder-se" nessa
repetitividade calendárica (como
"avião vazio" contra "vidro cego",
em sua perpétua busca do nímio
ou do nada), de um dia que se prevê circularmente passado um ano
e, em sua supina insignificação,
aponta para o sentido contrário:
palavra e experiência destituídas,"hino" que se balança entre
ser e deixar de ser.
Escreveu acertadamente Claude
Royet-Journoud ao falar da poesia de Bonvicino: " ...Na minuciosa lentidão do mundo (...) um imperceptível movimento abala a
superfície, que, sob nossos olhos,
se arruína e num instante se reconstrói". "Céu-Eclipse" dá conta
dessa configuração problemática
e fala ao tempo por vir.
Horácio Costa é poeta, ensaísta, doutor em
literatura pela Universidade Yale e professor
titular de literatura da Universidade Autônoma do México.
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