São Paulo, Domingo, 19 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MEMÓRIAS

Uma consciência dilacerada

MAURICIO PULS
da Redação

A consciência de um militante comunista é atravessada por um conflito trágico: ele é obrigado a realizar tarefas das quais frequentemente discorda, mas suporta os sacrifícios porque teme ser excluído da comunidade revolucionária, o que o relegaria a uma existência alienada e inautêntica.
"Cartas ao Comitê Central", do teatrólogo Hersch Basbaum, narra o doloroso processo de rompimento de seu pai, o historiador Leôncio Basbaum (1907-1969), com o Partido Comunista do Brasil. Leôncio ingressou no PCB aos 19 anos e um ano depois já era eleito para o Comitê Central. Em 1928, representou o partido no 6º Congresso da Internacional Comunista, em Moscou, e no ano seguinte foi enviado a Buenos Aires para discutir a formação de uma aliança com Luis Carlos Prestes.
Em 1933, porém, foi expulso do Comitê Central, com outros intelectuais, durante a campanha de "obreirização" do PCB. Três anos depois, após o fiasco da Intentona, foi readmitido no Comitê Regional da Bahia. Nos anos 40, recebeu tarefas importantes (esconder Prestes, dirigir a editora do partido), mas continuou marginalizado pelos novos dirigentes, que desconfiavam de suas obras, publicadas sem autorização ("A Caminho da Revolução", "Fundamentos do Materialismo").
É nessa época que decide escrever cartas ao Comitê Central. Uma delas, de 1945, relata as sucessivas afrontas que sofria da direção: "Mais da metade de minha vida foi dedicada a trabalhar pelo P. e não será pela circunstância momentânea de alguns membros da direção não gostarem de mim que eu vou embora. Muitos, antes disso, também não gostaram de mim, mas eles é que foram embora, e eu ainda estou aqui. Depois de mim muitos vieram, subiram e desceram e foram embora, mas eu continuo no mesmo lugar".
Em 1951, Leôncio não consegue persuadir Otávio Brandão, do Comitê Central, a formar uma frente para renovar a direção. "Não, Leôncio, não posso! Embora eu concorde com tudo o que você diz, não posso. Preservo a unidade do partido!" Desiludido com a reação, Leôncio observa: "Eu já pensei que nem ele. Como pude ser assim, é o que me pergunto".
Em 1952, recusa-se a continuar financiando o PCB: "Desde que vim para São Paulo, há quatro anos, tenho sido procurado por inúmeros camaradas... Mas nunca recebi uma visita que não fosse para me pedir dinheiro... Será que essa é a única forma de eu poder ser útil ao P.? Serei assim tão incapaz para qualquer outra tarefa?". Começa aí a redigir sua conhecida "História Sincera da República".
Em 1956 e 1957, ele participa dos intensos debates que se seguiram à divulgação do relatório de Nikita Kruschev sobre os crimes de Stálin. Conversa com Astrojildo Pereira, fundador do PCB, que lhe conta as humilhações a que era submetido, "de como não lhe permitiam falar ou escrever, tratando-o como "um mero intelectual pequeno-burguês". Convidei-o a tomar uma atitude qualquer, porque eu estava pensando em fazer qualquer coisa... Insinuou que estava velho e doente e que, o que quer que acontecesse, preferia morrer dentro do partido que ele havia fundado. O que lhe pude responder é que aquele não era mais o partido que ele havia fundado". Leôncio redige então sua última carta ao Comitê Central ("Eu acuso!") e deixa o PCB.



A OBRA
Cartas ao Comitê Central: História Sincera de um Sonhador - Hersch W. Basbaum. Discurso Editorial (av. Prof. Luciano Gualberto, 315, CEP 05508-900, SP, tel. 0/xx/11/814-5383). 210 págs. R$ 20,00.




Texto Anterior: Réplica - Horácio Costa: Sobre o estado das coisas
Próximo Texto: Teatro - Adélia Bezerra de Meneses: Uma reencenação histórica
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.