São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Leia trecho de "Papéis de Picasso", de uma das críticas de arte mais influentes e que sai no Brasil em outubro pela Iluminuras

FOTO SÍNTESE

Rosalind Krauss

O fato de que Picasso despreza a fotografia, a não ser como um modo de documentar seu próprio trabalho, tem sido há bastante tempo um pressuposto adotado por seus estudiosos. O cubismo era, afinal de contas, a desmontagem trabalhosa e minuciosa do espaço unificado, em perspectiva, o próprio espaço que a câmera, com sua ótica específica, não poderia ir além de reproduzir quantas vezes se desejasse. Brassaï [1899-1984] parece captar a atitude de Picasso na década de 1950 quando o registra exclamando, ao descobrir que outrora o fotógrafo tinha sido um desenhista talentoso: "Por que você não leva isso adiante? Você tem uma mina de ouro e está explorando uma mina de sal". Fernande Olivier parece confirmar isso com um caso dos primeiros dias da colagem cubista: um explorador contou a Picasso [1881-1973] que havia mostrado uma fotografia de si mesmo a um escultor de uma tribo, que não conseguiu entendê-la como uma imagem. O explorador lhe disse que a foto representava ele próprio, e então o africano o contradisse fazendo um desenho do seu verdadeiro "aspecto" no estilo de um objeto de fetiche, tendo o cuidado de envolver-lhe a cabeça com um trançado dourado e contornar o seu corpo com botões para registrar os detalhes do uniforme europeu.

O projeto fotográfico de Picasso
Entretanto estudos muito recentes estão tentando descobrir um "projeto fotográfico" de Picasso que até agora era desconhecido: demonstrar o papel que a fotografia deve ter desempenhado em alguns dos seus insights cubistas mais ousados, como as extremas ambigüidades espaciais de Horta em 1909, ou asseverar que a própria idéia da colagem se deve aos poderes de síntese automáticos da fotografia, seus "meios de esclarecer relações de obra para obra, de permitir o jogo de associações, de contrastes, de possíveis novas transformações", de tal modo que foram as fotografias tiradas por Picasso de instalações de sua última obra na parede do estúdio que deram início a uma "viagem de ida e volta por meio da química do filme: do desenho para o clichê, da impressão em papel para os papéis colados". Essa afirmação se baseia no que me parece ser uma interpretação exagerada e insensatamente projetiva das fotografias que Picasso fez como documentação e também no que me parece uma observação claramente absurda feita por Gertrude Stein [1874-1946] em 1938, segundo a qual, as poucas fotografias que Picasso fez dos arranjos de natureza-morta em 1911 foram uma transformação visual tão bem-sucedida "que ele nem mesmo precisou pintar a pintura"; a afirmação também induz um dos casos contados por Fernande Olivier a confirmá-la. Assim começa "Picasso, Photographer", de Anne Baldissari: ""Descobri a fotografia. Eu deveria me matar. Não tenho mais nada a aprender", gritou Pablo Picasso no paroxismo de um "ataque de nervos" provocado pelo consumo de haxixe". Assegurando que essas "palavras surpreendentes deviam ser levadas ao pé da letra em referência à especificidade da sua experiência como fotógrafo", a escritora quer afirmar que a ""descoberta da fotografia" por Picasso significava, sem sombra de dúvida, que ele considerava ter se apropriado de seus recursos formais, (...) havia descoberto que ela era capaz, na mesma medida da pintura, de ser uma obra de arte. Descoberto que, nas trocas entre os dois meios, nada havia sido ainda decidido, nada fora ainda proibido". [...] Olivier quer falar da paixão de Picasso pelo desenvolvimento constante, pela pesquisa formal incessante que leva à mudança. O caso que ela escolhe para ilustrar essa determinação, por meio do exemplo negativo, é o ataque de ansiedade provocado pela droga por "não ter mais nada para aprender", que ela leva adiante especificando como a revelação, baseada na fotografia, "de que um dia ele estaria paralisado em seu desenvolvimento. Ele chegaria ao final, a um muro; não poderia avançar nem mais um pouco; não teria mais nada para aprender, para descobrir, para saber, para penetrar pouco a pouco todos os segredos de uma arte que ele queria que fosse como nova".

Automação da arte
Longe de ser uma entusiasmada "descoberta" das possibilidades criadoras da fotografia, essa seria uma terrível revelação da possibilidade não muito distante da automação da arte, com um desmoronamento concomitante da análise paciente da visão e de sua cuidadosa construção de um análogo pictórico que se torna seu hediondo oposto, ou seja, a imagem como "ready-made". A linguagem do movimento paralisado, do muro, de nada de novo para aprender porque tudo é exposto instantaneamente -tudo isso fala de uma reação fóbica à mecanização da visão.
E, nos primeiros anos da segunda década, a fotografia, na verdade, estava sendo anunciada como o modo recém-objetivado de produzir arte, uma arte adequada à "era da máquina". Um exemplo típico dessa discussão foi publicado [...] no número de setembro-outubro de 1915 da revista "291", no qual Marius de Zayas [1880-1961] louva "The Steerage", de [Alfred] Stieglitz [1864-1946], como resultado do desejo de expressão das artes plásticas modernas "de criar para si mesmas uma objetividade" e Paul Haviland [1880-1950] fala da fotografia como o meio para essa objetividade, sendo o fruto da união de homem e máquina; "a câmera", acrescenta ele, "é a imagem do olho do homem; a máquina é a sua "filha nascida sem mãe'".


Tradução de Maria Cupertino.


Texto Anterior: O xeque-mate cibernético
Próximo Texto: Ponto de fuga - Joege Coli: O coelho de Bayreuth
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.