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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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PARA NÃO COLOCAR EM RISCO SUA PRÓPRIA SOBREVIVÊNCIA, SOCIEDADE PRECISA CRIAR UM NOVO MODO DE VER A MORTE

AS FACES DA EXTINÇÃO

David Gray - 31.mai.2003/Reuters
O médico e defensor da eutanásia Philip Nitschke explica seus métodos em conferência em Sydney


Hans Ulrich Gumbrecht
especial para a Folha

Há mais ou menos uma década, a morte tem desafiado as sociedades ocidentais de tantas formas novas e inesperadas que ainda parecemos aturdidos, sem ação, bem distantes, portanto, de encontrar soluções efetivas. Em junho deste ano, por exemplo, a mídia alemã noticiou a moção parlamentar de corte, para os cidadãos acima de 80 anos, de certo seguro-saúde público, até então responsável pelos gastos com tratamentos médicos caros. A longo prazo, argumentaram alguns deputados, seria mais importante garantir esse benefício aos jovens membros da sociedade do que continuar a oferecer um seguro universal precário. Dadas as taxas de natalidade drasticamente declinantes na Europa (bem abaixo de um filho por casal) e dada a situação econômica internacional, tais discussões não surpreendem nem um pouco. No entanto foi unânime o choque dos escandalizados comentaristas políticos. Só alguns se abstiveram de usar termos como "desumano" ou "brutal" para condenar o primeiro sintoma de uma nova forma de cinismo político, segundo eles. No primeiro semestre deste ano, sir Martin Rees, o astrônomo real britânico, publicou um livro com o inábil título de "Our Final Hour. A Scientist's Warning - How Terror, Error, and Environmental Disaster Threaten Humankind's Future on Earth and Beyond" (Nossa Hora Final. O Aviso de um Cientista - O Terror, o Erro e os Desastres Ambientais Ameaçam o Futuro da Humanidade na Terra e no Universo, Basic Books, US$ 25). O argumento de Rees, porém, é bem mais sóbrio e alarmante que o título de seu livro. Com base nas novas tecnologias, sobretudo a engenharia genética e os nanocomputadores, estima em 45% a chance de sobrevivência da espécie humana no século 21. E essa previsão não leva em conta nenhum uso deliberadamente destrutivo das tecnologias em questão. Baseia-se na possibilidade estatística de erros e de reações em cadeia provocadas por tais erros. Nenhum outro cientista tentou provar que sir Martin Rees está equivocado, ninguém nem sequer questionou suas afirmações. Largamente divulgado na mídia, o livro não obteve grande repercussão (excetuando artigo publicado no Mais! de 25/5/2003). Sua prospectiva talvez seja mais do que possamos suportar tanto no plano individual quanto em termos coletivos. De qualquer modo, seria um equívoco atribuir os novos desafios apresentados pela morte apenas às interações entre crescimento demográfico, ambiente e desenvolvimento tecnológico. Outro fenômeno ameaçador e historicamente novo que por ora ainda nos empenhamos em explicar como diferença cultural é a inédita proliferação de homens-bomba, ou seja, indivíduos prontos a sacrificar a própria vida no intuito de destruir muitas outras.

Perda de tempo
Contudo é obviamente problemático associar tal atitude aos ensinamentos do Corão, segundo sugeriram alguns observadores ocidentais, uma vez que o Antigo e o Novo Testamentos não hesitam mais do que o livro sagrado do islã em incentivar atos de auto-imolação. É igualmente ocioso preocupar-se com a possibilidade de o governo americano declarar "estado de emergência" em resposta a essa provocação, desconsiderando assim o risco objetivo de um suicida com uma bomba nuclear explodi-la no centro de uma grande cidade do Ocidente. Transformar um hipotético "estado de emergência" em ameaça maior que uma possível explosão atômica em Londres ou Los Angeles não passa de mais um desses afetados rituais de autoflagelação, tão caros aos intelectuais.
Ambas as atitudes levam a uma perigosa perda de tempo numa situação que deveria nos forçar a refletir analítica e construtivamente sobre estratégias de autodefesa. Afinal, e esse é o ponto a destacar, ninguém dispõe de nenhuma solução prática convincente até o momento. Nada mais danoso que pensar o contrário.
Mas por que temos tanta dificuldade em reagir às novas faces da morte? Não é porque a cultura ocidental tenha reprimido com êxito a presença da morte, como a intelectualidade costumava alegar alguns anos atrás.
Pelo contrário, ao menos nós intelectuais oferecemos um amplo leque de opiniões sólidas a respeito da morte, opiniões tornadas públicas da maneira mais estridente e cujas contradições internas preferimos ignorar, embora cometam a indelicadeza de lembrar-nos. A grande maioria de nós defende o direito ao aborto ("pró-escolha!", como alardeiam tantos adesivos nos pára-choques dos carros que circulam pelas cidades universitárias americanas). E, com o mesmo ardor, censuramos a pena de morte, por nossa incondicional defesa da vida humana. Muitos de nós querem ver a eutanásia legalizada, para facultar aos doentes incuráveis a possibilidade de dar fim à própria existência. Mas aplaudimos cada avanço científico, cada progresso econômico, em suma, cada passo para estender nossa expectativa média de vida à utópica fronteira dos cem anos.
Cresce o número de intelectuais defensores dos "direitos animais": segundo esse grupo, cada vez maior, os bichos, tal qual os humanos, sofrem ao pressentir a proximidade da morte. Reduz-se a uns poucos o número daqueles que consideram o poder militar um instrumento legítimo em política. Nunca antes de nossa época o número de mortos do lado inimigo foi usado como argumento político contra a guerra. Entretanto, se a morte se tornou um de nossos assuntos prediletos, por que ficamos sempre estranhamente paralisados diante das últimas ameaças demográficas, tecnológicas e políticas? As formas corriqueiras de ver a morte, arriscaria dizer como provocação, são próprias de um sujeito pertencente a uma classe média moderadamente hedonista, cujos valores sagrados são o direito absoluto do indivíduo à autodeterminação e o imperativo de evitar o próprio sofrimento.
A essa justificativa se some uma incompatibilidade entre semelhante visão da morte e os atuais desafios enfrentados por todos. A idéia de uma criança que não "se encaixa" no plano de vida individual de alguém se tornou tão intolerável para nós, almas sensíveis, quanto o exercício imaginativo de nos pôr no lugar de um criminoso no corredor da morte e sentir seu tormento às vésperas da execução. O direito de acabar com a própria vida, seja quando for, mediante uma decisão individual nos parece tão incontestável quanto o direito de esperar uma longevidade cada vez mais próxima da eternidade.
Embora, com base na infinita reciclagem dos discursos do Iluminismo, continuemos a acreditar que nossas mais caras idéias, expectativas e afirmações no tocante à morte sejam "naturais" e portanto invariavelmente justificadas, é fácil mostrar como estiveram sujeitas a constantes mudanças históricas. Uma reconstrução microscópica dessa história revelaria incontáveis detalhes (não desprovidos de interesse), porém não deixa de ser uma solução rica em termos conceituais (e não redutora) descrever a pré-história de nossa morte como alternância entre duas perspectivas básicas bem distintas. A visão individualista da morte talvez tenha sido formulada plenamente pela primeira vez com o estoicismo, sobretudo nos textos de Sêneca. Como sua filosofia não se baseava em nenhuma dimensão transcendental após a morte do indivíduo, concedia a este o direito de determinar o momento da própria morte. Os estóicos recomendavam a seus seguidores concentrar-se em atividades suscetíveis de produzir grande satisfação individual. Excluíam, por conseguinte, o engajamento em causas sociais e descartavam até mesmo o êxito profissional como objetivo no qual se devesse investir energia. Importa aqui, de um ponto de vista analítico, a configuração de um modo de enxergar a morte como acontecimento estritamente individual, modo esse ligado à suspensão de qualquer interesse pela esfera social e ao direito irrestrito à autodeterminação. A visão mais distante desse conceito estóico da morte talvez tenha sido a da baixa Idade Média, segundo expressa tão ricamente na arquitetura cósmica da "Divina Comédia", de Dante. Com menos dúvidas que em qualquer época anterior e talvez também posterior, nos séculos 13, 14 e 15 as pessoas esperavam uma vida eterna após a morte, vida na qual seriam recompensadas ou punidas pelas ações praticadas durante sua existência terrena. Nesse período, o recém-inventado purgatório seduzia ao extremo como espaço propício a uma infindável diferenciação na forma de conceber o equilíbrio entre punições e recompensas transcendentes. Algumas biografias exemplares e principalmente a história das ordens religiosas na baixa Idade Média mostram como essa concentração na estrutura paraíso-purgatório-inferno se aliava a uma dedicação muito maior à esfera da vida social. "Boas obras", capazes de contribuir para a "santificação do mundo", eram consideradas o investimento mais seguro no intuito de garantir a felicidade eterna. Até mesmo aqueles que, descrentes de sua própria felicidade eterna, resolvessem entregar-se a uma vida pecaminosa seriam tidos como descumpridores de suas obrigações sociais. A era do Iluminismo talvez tenha sido o começo da transição desse modo predominantemente social de ver a morte, em sua interseção com a esperança de vida eterna, para a perspectiva extaticamente individualista ainda vigente hoje. No âmbito de uma lógica da justiça cujas dimensões continuavam a ser cosmológicas, Kant queria conservar o princípio tradicional da equivalência exata entre crime e castigo ("ius talionis"). Segundo ele, só a pena de morte constituía uma punição adequada para o assassinato: qualquer outra medida deixaria de atender à exigência básica de simetria. Com esse argumento, porém, Kant já respondia à opinião do marquês de Beccaria, que em 1756 contestou a base jurídica da pena capital. Para o italiano, não tendo o direito de dispor da própria vida, nenhum cidadão pode aceitar, no contrato social, a possibilidade de sua própria execução. Em sua habitual severidade, Kant acusou o argumento de desonesto, rejeitando-o como mera "deturpação" ("Rechtsverdrehung"). Afora essas polêmicas iluministas, é fascinante observar como valores fundamentais começam a mudar assim que a perspectiva do indivíduo entra na equação transgressão-castigo. Num estranho e notável romance utópico, publicado em 1771, com o título de "L'An 2440" (O Ano 2440, ed. La Découverte, 276 págs., 13,57 euros), o francês Louis-Sébastien Mercier tentou conciliar a visão predominantemente social da morte e a idéia individualista a respeito desta. A religião e a crença na vida eterna ainda representariam uma possibilidade legítima, embora não mais um imperativo em sua visão de um futuro ideal. Além disso, crimes quase não aconteceriam mais. E, se algum ocorresse, toda a sociedade, de luto, lamentaria e acusaria a si mesma de não ter oferecido uma educação adequada e condições de vida apropriadas a quem tivesse virado criminoso. Nesse universo duplamente ambíguo, moldado por uma religião que teria deixado de ser um horizonte existencial obrigatório e por uma divisão instável da responsabilidade ética entre indivíduo e sociedade, Mercier deu uma solução narrativa peculiar para o problema de como a sociedade ideal do futuro deveria reagir ao crime de homicídio. No romance, é oferecida ao assassino confesso a possibilidade de decidir o próprio destino. O sentimento de culpa e a contrição o levam a escolher a pena de morte. Essa decisão é vista como um mérito ético suficiente para reintegrar o então ex-criminoso na comunidade de cidadãos. A execução passa a ser uma celebração pública de suas virtudes cívicas.

Corpos descartados
Cem anos depois, Nietzsche formulou o conceito de "morte em vida", insistindo numa compreensão da morte como parte da vida humana, em lugar de uma passagem para a vida eterna na qual filósofos e intelectuais deixaram de acreditar no fim do século 19. Conforme sugere nossa classificação binária, a perspectiva exclusivamente imanentista de Nietzsche precisava ver na morte um elemento da vida individual. Dois anos antes do começo da Primeira Guerra, Thomas Mann publicou "Morte em Veneza", programática ilustração literária do novo conceito nietzschiano. E, já em 1915, numa obra pouco citada, "Pensamentos para os Tempos de Guerra e Morte", Freud interpretou o crescente e obsessivo interesse por uma antecipação individual da experiência da morte como reação coletiva à nova forma de morrer na guerra de trincheira: morria-se sem encontrar ninguém, e os soldados mortos não passavam de corpos a serem destruídos e descartados na disputa entre máquinas de guerra cada vez mais poderosas.
Dificilmente seria mera coincidência o fato de Freud ter antecipado nesse texto alguns dos conceitos e sobretudo o tom das partes mais famosas de "Ser e Tempo", aquelas em que Heidegger desenvolve uma filosofia existencial da morte. Nenhuma outra reflexão filosófica se tornou tão canônica quanto a dele (que, aliás, nunca voltou ao tema depois da publicação do livro em 1927), nenhum tratado filosófico está tão próximo daquele, que desde então é o modo dominante de conceber o fim da vida. A visão heideggeriana tem quatro componentes principais: (1) a exemplo de Nietzsche, Heidegger enfatiza uma compreensão da morte como parte da vida, e não como "limiar"; (2) não há experiência "social" da morte, sublinha, ela só é acessível ao indivíduo; (3) sendo o fim absoluto da existência individual, a morte necessariamente provoca angústia em cada um de nós; (4) tendemos a fugir dessa angústia individual lançando-nos no anonimato (e no entorpecimento) da esfera social, e, para Heidegger, só há um modo autêntico de superar a angústia -a antecipação deliberada e confrontadora da morte ("Vorlaufen in den Tod").
O mérito de Heidegger, contudo, não foi o de propor um entendimento inédito, mas apresentar uma tradução conceitual do novo modo de enxergar a morte que permeara a cultura ocidental desde a Primeira Guerra. De forma um tanto surpreendente, o fascínio por uma visão tão individualizada da morte conquistou até mesmo a esfera do lazer na década seguinte. Hoje consideramos os anos 20 do século passado a época de ouro da tauromaquia e do boxe. Naquele período, as chamadas "maratonas de dança" eram tão populares quanto as corridas de longa distância em pistas cobertas ou ao ar livre, e havia até um gênero de cinema mudo especializado em associar acidentes de alpinismo ao mais alto grau de prazer erótico.
Na Europa dos anos 20, começou a prevalecer na história da legislação uma tendência que se converteu num gigantesco problema prático para a atualidade. Inaugurada com eficácia nos julgamentos de vários genocidas, essa tendência consiste em tomar o criminoso como vítima ou ao menos como sintoma de uma sociedade que se julga culpada. Eis a perfeita realização da promessa humanista presente no romance utópico de Mercier. A longo prazo, atribuir a condição de réu ao conjunto da sociedade é um recurso capaz de paralisar o sistema legal. Além disso, cabe indagar se a visão exclusivamente individual do fim da vida, já institucionalizada ao extremo, não teria impedido os intelectuais europeus de compreender a industrialização da morte na Alemanha nazista e na União Soviética stalinista, levando-os a defender com veemência os direitos dos genocidas.
No começo do século 21, ainda nos prendemos à mesma visão individualista da morte, e, para piorar o quadro, a maioria dos intelectuais continua a demonstrar certo orgulho humanitário desse tradicional individualismo. Mas temos a necessidade urgente de uma perspectiva distinta, outra forma de ver, adequada aos últimos desafios demográficos, tecnológicos e políticos enfrentados pela humanidade. Sentir-nos responsáveis pelas frustrações individuais dos que cometem assassínios em massa não nos protegerá contra homens-bomba. Negligenciar a necessidade de um novo modo de ver a morte pode pôr em risco nossa sobrevivência coletiva. O retrospecto histórico aqui apresentado serviu ao menos para identificar um problema na situação atual. No passado, visões da morte com um sentido social sempre foram acompanhadas da crença numa vida transcendente. Para muitas sociedades contemporâneas, pode revelar-se difícil -se não impossível- reviver tal crença. Por isso, o simples retorno a antigas visões, a modelos e modos de vida anteriores, não será uma reação à altura do que exigem as novas faces da morte.


Hans Ulrich Gumbrecht é teórico da literatura e professor no departamento de literatura comparada da Universidade Stanford (EUA). É autor de, entre outros, "Modernização dos Sentidos" (ed. 34).
Tradução de Bluma Waddington Vilar.


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