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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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+ cultura

Substituição de temas bucólicos por bélicos marca a chegada da modernidade à tapeçaria do Oriente

Cicatrizes no paraíso

Tomas van Houtryve - 6.ago.2002/Associated Press
Tapete afegão representa o 11 de Setembro


Walnice Nogueira Galvão
especial para a Folha

Novas do saque do Museu de Bagdá, depositário de despojos milenares das fontes da civilização -de sumérios, caldeus, babilônios, assírios-, vieram somar-se numa contabilidade de danos e perdas ao do Museu de Cabul, arrasado pelo bombardeio invasor. Tanto mais de notar, num tal cenário, a irrupção de um testemunho artístico até agora inédito. Entre esses despojos, ocupa posição de destaque o tapete, que constituiu por séculos o único mobiliário numa civilização de tendas. Além de aconchego ao dormir, sentar e palmilhar, revestindo um piso irregular, serve de cama, de coberta, de sofá, de mesa, de biombo, de parede, de teto, de reposteiro. Apesar de comumente chamado de "persa", não é vinculado às nacionalidades porque as precede, podendo provir do Irã, do Iraque, do Afeganistão, do Egito, da Índia, ou mesmo da China. A arte da tapeçaria, criação do Oriente, é várias vezes milenar. A obediência à proibição corânica da figuração, monopólio de Alá, em prevenção à idolatria não é inflexível nessa arte. Mesmo nos desenhos geométricos (os "arabescos") predominam a flora e em menor grau a fauna, reconhecíveis, embora estilizadas. Um dos pontos altos na história da arte, escapa à concepção ocidental que exige originalidade, antes aplicando-se a copiar os riscos tradicionais e a repeti-los da maneira mais fiel possível. O mais comum é aquele que traz para dentro da tenda ou da casa o jardim. As dimensões da peça, determinadas pelo tear, impõem o retângulo, cujos lados paralelos indicam os muros que contêm a profusão vegetal em meio à qual reponta em silhueta o bestiário. E, compondo uma mandala, deflagrada pela dinâmica centrípeta da própria forma do retângulo, surge um medalhão central com o croqui de uma fonte, a qual pode se repetir nos quatro cantos do tapete; outras vezes, em lugar de uma, há três fontes em linha reta, no meio, entre guirlandas. Por contraste e a bem de confortar o espírito, propõe-se à vista a negação da natureza circundante do deserto, trasladando para o recesso da morada um simulacro de oásis urdido pela mão humana. As crônicas guardam a lembrança do palácio em Ctesiphon, sede da dinastia dos Sassânidas (então na Pérsia, hoje no Iraque e bem perto de Bagdá), cujo salão nobre ostentava o descomunal tapete Primavera, o qual, se não fosse documentado historicamente, passaria por mais uma das "ficciones" de Jorge Luis Borges. A obra reproduzia um jardim formal com todas as minúcias de seu quadriculado, arroios coleando entre sebes, caramanchões, repuxos, canteiros de flores, árvores frutíferas, pássaros e animais povoando as alamedas, passeios de saibro, cercas vivas e touceiras, renques de palmeiras.

Jardim do paraíso
Tesouro real à vista de todos, era de valor incalculável: frutos e aves canoras incrustavam-se de pedras preciosas, fios de ouro e prata recamavam as figuras. Com sua pompa, a peça encarnava materialmente o poder do rei e a opulência de seu reino. Mas o tapete Primavera proclamava igualmente a investidura do monarca, que, por direito divino, tinha jurisdição sobre a natureza, sobre a fertilidade e sobre a abundância, de que era penhor diante dos súditos e das potências do alto. Mais que símbolo ou emblema, era um "modelo reduzido" dos atributos políticos e cósmicos do rei. Dessa maneira, compreende-se melhor a arte da tapeçaria quando se pensa que para esses povos do deserto a idéia de paraíso era inseparável da noção de jardim, ao que parece uma criação também persa. O próprio vocábulo é persa, com o significado de horto recluso ou jardim murado, vocábulo que o léxico grego absorveria ("parádeisos").

Arestas de tanques
Assim sendo, o desaparecimento que ora se constata nos tapetes afegãos, e pela primeira vez na história, de temas tão intrincados quanto as "mil flores" ou a "árvore da vida" -ligados a anseios pacíficos que enfatizam a continuidade vital, implícita no ciclo da vegetação- é gravíssimo e desfigura como uma cicatriz a face da tapeçaria.
Agora se vêem as arestas de tanques e mísseis onde durante milênios pontificaram as efígies da pujança da natureza. Domina o padrão e proporcionalmente em escala muito maior -aquele que é o ícone de todo "freedom fighter", da Palestina à Tchechênia, passando pelo Afeganistão: o rifle Kalashnikhov, mais conhecido como AK-47. Resultando em obras nas quais as rígidas normas da tapeçaria são subvertidas, siderando de horror quem as contempla.
Se o tapete-jardim afirmava uma positividade a muitos graus de elaboração estética e cultural, ao contrário, o tapete-"máquina mortífera" implicaria numa perda da capacidade de imaginar e de sublimar. Rejeitando seu compromisso com o jardim, o tapete passou a reproduzir apenas o imediato, a simbolização tendendo a zero. A crueza daquela destruição blindada que despenca dos céus acarreta a perda do sentido e da função da arte, pervertendo o tapete que antes se destinava a embelezar e alegrar a vida cotidiana. A modernidade chegou lá, e não é coisa bonita de ver.


Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de "Guimarães Rosa" (Publifolha) e "No Calor da Hora" (ed. Ática).


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